Invasão de casas no Alemão é estratégia para implantar base, admite PM

    “Pra nós é estratégico aquele ponto”, disse oficial em audiência, assumindo que invasões de casas sem mandado no Complexo do Alemão foram planejadas.

    Marcos Borges durante audiência pública | Foto: Radio Mutirão Lab

    Em audiência pública realizada durante a tarde de ontem (24/04) no auditório da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, no centro da cidade, para discutir as violações de direitos humanos praticadas por policiais militares no Complexo do Alemão, o subcoordenador de Polícia Pacificadora, tenente-coronel Marcos Borges, assumiu que as invasões de casas de moradores de favelas do Alemão sem mandado judicial são parte de uma estratégia da PM. A afirmação revoltou pessoas presentes ao encontro.

    Somente nos últimos quatro dias, quatro pessoas foram mortas no conjunto de favelas, na zona norte do Rio, durante operações policiais. Duas delas foram o adolescente Gustavo da Silva Nascimento, de 17 anos, que trabalhava numa padaria na Fazendinha e foi morto na Alvorada quando saía para trabalhar, de manhã cedo, na sexta-feira (21/04), e o soldado do Exército Bruno de Souza, 24 anos,  na mesma manhã.

    “Especificamente sobre a saída dos policiais das casas, isso já está ocorrendo. Nós estamos implantando uma base blindada num local que é estrategicamente muito importante para nós, porque naquele ponto diversos policiais eram vitimados. Então pra nós é importante e estratégico aquele ponto. E hoje, provavelmente, já se encerra a implantação da base e, provavelmente, hoje ou amanhã, os policiais já sairão das residências”, disse o PM, referindo-se à Praça do Samba, na favela Alvorada, no Alemão. “Tudo tem um planejamento e era para acontecer já hoje, mas choveu muito durante o final de semana”, completou, tendo sua voz abafada pelos protestos dos presentes.

    O ativista Raull Santiago e o deputado Marcelo Freixo (PSOL), ao lado de outros componentes da mesa da audiência sobre violações praticadas pela PM no Alemão. | Foto: André Miguéis

    Pouco depois, integrante dos coletivos Papo Reto e Juntos pelo Complexo do Alemão, Raull Santiago, que compunha a mesa e já havia se manifestado, indignou-se e afirmou que deixaria a mesa porque o oficial havia assumido que os crimes praticados por policiais no Alemão eram parte da “estratégia” do Estado para a construção da base na Praça do Samba.

    “Durante todo o início do ano, quando as casas começaram a ser invadidas, a gente se arriscou, foi ameaçado, pessoas morreram, casas foram destruídas, absurdos diversos aconteceram por conta dessas invasões. E quando a gente buscava respostas, os policiais diziam que estavam cumprindo ordens. Quando a gente procurava ordem de quem, ninguém dizia. Várias casas foram violadas e a gente provou. Policiais usando as coisas das pessoas dentro de casas, as casas se tornando alvo de uma guerra, destruições diversas”, disse Raull logo após deixar a mesa. “E ali na mesa, um responsável pelo comando do Complexo do Alemão assume que houve um planejamento para esse processo”, completou, em tom de indignação.

    Santiago fala sobre a violência policial no Alemão na audiência. | Foto: Luiza Sansão

    Invasões acontecem desde dezembro

    Há relatos de invasões de casas ocorridas em dezembro e janeiro últimos, e os casos começaram a vir de fato à tona em 24 de fevereiro, quando integrantes do Coletivo Papo Reto e do DefeZap (serviço que recebe vídeos-denúncias de violência de Estado) fizeram uma filmagem ao vivo flagrando a situação. “Moradores nos procuraram, falaram da situação e nós fizemos um ao vivo, flagrando o que acontecia. O link foi enviado para as autoridades, que viram”, conta Guilherme Pimental, do DefeZap.

    No dia seguinte, 15/02, foi criada uma comitiva de órgãos públicos, que constataram no local a veracidade dos fatos apresentados no vídeo. Essa comitiva também foi gravada e exibida em tempo real no Facebook pelo Coletivo Papo Reto e pelo DefeZap. “A partir daí, começamos a receber uma série de provas dos moradores, que foram encaminhadas ao Ministério Público, à Secretaria de Segurança e à Defensoria Pública, cobrando as medidas institucionais para fazer cessar as violações”, conta Pimentel.

    Os moradores então receberam assistência jurídica da Defensoria, que começou a atuar nos casos de violações. A Auditoria Militar abriu um procedimento apuratório, já tendo ouvido vítimas e PMs.

    Também foi criado o Respeita o Morador, plataforma do Meu Rio, com o objetivo de pressionar o Comandante Geral da PM, Wolney Dias, a intervir no processo de violações que os moradores do Alemão têm denunciado.

    “Eu fico com o que sobra”

    A fisioterapeuta Mônica Cirne, responsável técnica e criadora do Projeto Paloma, criado há 10 anos para atender gratuitamente a comunidade do Complexo do Alemão, recebendo diversas vítimas de violência policial, falou sobre sua experiência.

    “A luta é intensa. Hoje eu não estou de luto. Estou sempre de luto. Porque eu lido com vidas e me entristece muito, choro e me compadeço com o que eu vejo. A cada conflito, a cada confusão, eu já me preparo para o outro dia, porque somente eu atendo a comunidade de graça”, contou. “Eu fico com o que sobra depois dos conflitos. Eu fico tentando juntar pedaços para resgatar a dignidade da comunidade e fazer com que ela vote, fique de pé, para começar tudo de novo”, completou.

    PMs assistem à audiência sobre invasões de casas por policiais no Alemão. | Foto: Felipe Falcão

    Presença de PMs 

    A tarde toda foi de embates intensos. Cerca de 20 policiais militares assistiram à audiência, o que foi criticado por moradores de favelas, que afirmaram que a presença dos policiais tinha o objetivo de acuar testemunhas de violações.

    “Estão todos botando vocês lá pra matar a gente, mas nem com vocês eles estão preocupados”, disse Raull Santiago, da mesa.

    Expressões de ironia e risadas durante falas de moradores de favelas podiam ser facilmente vistas por qualquer observador atento. “Difícil, hein?”, disse um policial ao outro, ao levantar-se por um momento, numa clara referência pejorativa aos discursos indignados proferidos por moradores de favelas que pediam o fim da violência policial.

    Quando um policial da plateia se manifestou, ele perguntou por que é que os integrantes dos coletivos do Alemão filmavam a violência policial e não a de traficantes. A comparação do PM irritou os presentes, que imediatamente começaram a criticar sua colocação, em coro. Foi o estopim: um bate-boca tomou conta do auditório e os policiais se retiraram.

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