Não foi tiro acidental, diz irmão de jovem morto pela PM na zona leste de SP

    ‘Eu fui falar com a polícia, meu irmão estava longe, como poderia ter tirado a arma?’, contesta Bruno, irmão de Rafael Aparecido Almeida de Souza, sobre versão de que vítima teria tentado tirar arma da PM

    Bruno ao lado do irmão Rafael, morto no domingo, na Arena Corinthians e, ao lado, foto de Rafael que deixou um filho de 2 meses | Foto: arquivo pessoal

    Pelo menos 4 testemunhas contestaram versão dos PMs envolvidos na ação que terminou com a morte de Rafael Aparecido Almeida de Souza, 23 anos, em uma travessa da Avenida Aricanduva, em São Mateus, na zona leste de São Paulo, no domingo (5/5). Umas das testemunhas é Bruno Aparecido Almeida de Souza, 26 anos, irmão de Rafael, que chegou a conversar com os policiais segundos antes do disparo ocorrido na Rua das Capitanias. Rafael era o irmão do meio e Bruno explica que o irmão mais novo era o alvo da abordagem policial.

    “Eu tava numa rua ao lado indo para casa, quando eu me deparei com meu irmão mais novo sendo abordado. Eu me aproximei da abordagem e perguntei ao policial se precisava do RG do meu irmão. Ele disse que não e que meu irmão estava liberado. Quando, de repente, o Rafael apareceu acenando para a gente e gritando ‘vem pra cá’. Nisso, eu ouvi o polícia falando: ‘aqui quem manda é nóis’ e só escutei o disparo. A hora que escutei o disparo eu tava de costas e agachei. Quando eu olhei meu irmão estava no chão”, contou Bruno à Ponte.

    Os depoimentos foram coletados na terça-feira (7/5) pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), responsável pelo inquérito. No primeiro registro da ocorrência, feito no 49ºDP tomando por base apenas os depoimentos dos dois policiais que estavam na cena, a versão é que um grupo estaria em atitude suspeita no local e que os PMs, fazendo patrulhamento de rotina, decidiu realizar a abordagem. Nesse momento, as pessoas passam a hostilizar os agentes e, na sequência, um dos jovens do grupo – que mais tarde seria reconhecida por um dos PMs como sendo Rafael – teria tentado tomar a arma, provocando movimento brusco e ocasionando o disparo.

    Abalado, Bruno faz questão de dizer que a versão da polícia é fantasiosa. “Foi um tiro fatal. Eles estão dizendo que meu irmão tentou tomar a arma deles, mas não tinha nem como. Ele estava a uma longa distância, muito longe”, destaca.

    A Ponte obteve imagens da perícia e do exame no corpo de Rafael realizado no IML (Instituto Médico Legal) que mostram o disparo do lado direito do peito. Após ser alvejado, Rafael chegou a ser socorrido e levado até o pronto-socorro de São Mateus, mas não resistiu ao ferimento de arma de fogo. O autor do disparo citado no inquérito tratado como “morte decorrente de oposição a intervenção policial” é o soldado Charles Henrique Godoi Pereira.

    “Os depoimentos desmontam o álibi dos policiais que disseram que Rafael teria tentado tirar a arma do autor do disparo. Como alguém distante mais de 30 metros poderia tentar tirar a arma? Além disso, conforme as testemunhas, o irmão do Rafael que foi abordado tinha acabado de ser liberado. O DHPP pretende fazer uma reconstituição para esclarecer melhor os fatos e a distância de Rafael com relação ao policial”, explica o advogado e integrante do Condepe (Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana) Ariel de Castro Alves, que acompanhou os depoimentos.

    Sonho interrompido

    Uma semana antes da morte de Rafael, ele e o irmão mais velho, Bruno, tinham iniciado um negócio: uma fábrica de roche, uma espécie de bowl ou suporte onde se coloca a essência do narguilé. A marca foi batizada como Desert Bowl. “Ele gostava muito de narguilé e nós estávamos começando essa fábrica que iríamos fornecer o nosso produto para as tabacarias e lojas virtuais. Eu também trabalho com outra coisa, com venda de cursos profissionalizantes, mas eu vou seguir nessa ideia aí, porque era o sonho dele. Ele queria ter uma marca conhecida no mercado. Por ele, vou seguir”, conta.

    Logomarca do negócio de Rafael e Bruno | Foto: divulgação

    Ao ser perguntado pela reportagem da Ponte sobre a relação que tinha com o irmão, Bruno se emociona e repete várias vezes: “sem palavras”. “Nós éramos irmãos lado a lado. A gente ficava o tempo todo junto. Ele era o melhor irmão do mundo, um homem família, não saía de casa, não era de balada. Não brigava com ninguém, mal abria a boca, só dava risada das nossas palhaçadas”, lembra.

    “Ele tirou o dia todo para ficar com o filho. eu via ele todo bobo brincando com o filho, trocando o filho. Ele tinha um amor enorme pelo filho, só falava dele”. Além dos negócios do narguilé, os irmãos também dividiam a paixão pelo Corinthians. Quando a reportagem pediu uma foto dos dois, Bruno nem titubeou: mandou uma na Arena Corinthians. “Essa ficou top”.

    Após a ocorrência, moradores da região se revoltaram e fizeram um protesto nas imediações. A Ponte obteve um vídeo que mostra um grupo de policiais militares em frente a uma casa próxima do local onde Rafael foi atingido. Sem motivo aparente, um dos agentes lança uma bomba dentro da residência. Segundo relato do tio do Rafael, Rogério, uma criança que mora na casa teve que ser levada ao pronto socorro porque passou mal com o gás.

    Outro lado

    A Ponte procurou a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo), através da assessoria de imprensa privada, a In Press, e questionou sobre a divergência entre as versões e se o PM que é citado no inquérito como autor do disparo, Charles Henrique Godoi Pereira, segue trabalhando normalmente ou será afastado.

    Em nota, a pasta informou apenas que todas as circunstâncias referentes a ação policial são apuradas por meio de IPM (Inquérito Policial Militar), além da investigação civil, tocada pelo DHPP.

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