Jovem de Expressão: desde 2007 mudando a vida da juventude da Ceilândia (DF)

Programa multidisciplinar vai do atendimento psicológico ao curso pré-vestibular, investindo na cultura periférica e reduzindo a violência no território: “a cultura traz essas proezas”, comenta pedagoga

Imagem interna da sede do Jovem de Expressão | Foto: Giullia Vênus

O Distrito Federal (DF), apesar de estar em primeiro lugar em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre as unidades federativas do país, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), é marcado por uma série de desigualdades e controvérsias históricas. Ao mesmo tempo em que abriga a região mais rica do país, o Lago Sul, a capital federal também comporta a maior favela do Brasil, a Sol Nascente. 

A geografia política do Distrito Federal funciona de uma forma diferente dos demais estados brasileiros: é composto por 35 Regiões Administrativas (RA’s), que seriam o equivalente a cidades e bairros. Desde 2019, Sol Nascente é uma RA, mas por 20 anos foi o equivalente a um bairro de Ceilândia, a RA mais populosa do DF.

Ceilândia era considerada uma grande favela da cidade de Taguatinga até 1989, quando passou a ser a IX Região Administrativa do DF. A cidade surgiu a partir da política pública segregatória da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), no início dos anos 70. Tratava-se de uma política higienista que pretendia afastar a população pobre que ocupava regiões centrais. Localizada a 26 km da região central do DF, seu nome vem da junção da sigla “CEI” com o sufixo “lândia” (“território”).

Conforme Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) de 2021, 9,5% da população de Ceilândia passa por insegurança alimentar grave, enquanto a média do Distrito Federal é de 3,9%. Sua vizinha, Sol Nascente, apresenta o maior índice do DF, com 12,7% da população em situação de insegurança alimentar. Em níveis educacionais, 36% da população do DF acima de 25 anos possui nível superior completo: regiões centrais apresentam índice acima de 70%. Enquanto isso, regiões periféricas têm índice abaixo dos 15%.

A comunidade de Ceilândia  tem uma importante história de participação popular e de movimentos sociais. Formada originalmente por migrantes nordestinos, responsáveis pelos trabalhos braçais para a construção da capital federal. Os filhos e netos de seus fundadores ajudaram a renovar a matriz cultural da cidade com movimentos culturais e sociais, sendo fortemente envolvida com a cultura hip-hop.

É nesse contexto que, em 2007, surge o Programa Jovem de Expressão (JEX), um movimento de produção cultural e educacional que ocupa espaços públicos, reconquistados e transformados. Há 16 anos, o JEX reúne o setor público, o setor privado, organizações da sociedade civil e milhares de jovens para conduzir a transformação de espaços, corpos e consciências no DF, ressignificando as realidades e possibilidades de regeneração dos tecidos sociais, construindo uma educação horizontal e coletiva.

O JEX é  um local para fomento de discussões, ampliação de debates e união de jovens da comunidade. A pedagoga Rayane Matos, que começou sua trajetória no programa como aluna, depois como voluntária e atualmente coordenadora do programa (um ciclo comum entre todos os gestores), realça que a ocupação de espaços, compreender o direito à cidade e proporcionar a quebra de estereótipos sociais são pontos focais que estruturam o programa.

O Jovem de Expressão

Em dezembro de 2006 foi lançada a pesquisa “Fatores Determinantes da violência interpessoal entre jovens no Distrito Federal”, encomendada pelo Instituto CNP Brasil. O estudo chegou à conclusão de que não faltava autoestima à juventude do DF, o que faltava eram oportunidades para desenvolver todo seu potencial. O estudo indicava que, quanto maior tempo dedicado à educação, menor é a chance de um jovem com idade entre 18 e 24 anos vivenciar atos de violência, assim como, quanto menos oportunidades de se expressarem sobre conteúdos de natureza pessoal (sexo, drogas), maiores são as chances de vivenciar a violência.

Fachada da sede do Jovem de Expressão | Foto: Giullia Vênus

O estudo concluía que a violência não ocorria da mesma forma com todos os jovens do DF, ela tinha raça, gênero, classe social, e endereço, com rapazes negros como alvo preferido da polícia. Além disso, os jovens de uma região administrativa periférica estavam 102,3% mais propensos a sofrer uma coação física do que os moradores do Plano Piloto, região central de Brasília. 

De acordo com dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF), a taxa de ocorrência de crimes letais intencionais em Ceilândia é de 10.6 crimes por grupo de cem mil habitantes, quase um ponto acima da média do Distrito Federal, cuja taxa é de 9.9. A taxa do Plano Piloto é de 3.6. 

Em 2007, com a missão de reduzir a exposição dos jovens a situações de violência, nasce o Jovem de Expressão, um programa que fugiria do padrão assistencialista para investir no desenvolvimento pessoal de jovens. Essa intervenção foi feita a partir da construção de espaços onde a juventude pudesse se expressar por meio da arte e encontrar apoio psicológico para resolver problemas, angústias e conflitos pessoais.

O projeto piloto aconteceu em duas Regiões Administrativas, Sobradinho II e Ceilândia. As localidades foram escolhidas devido ao grau de violência identificado nessas cidades e a quantidade de jovens que nelas habitavam. Além disso, o estudo identificou que era onde havia maior número de jovens que se interessavam por programações educativas na TV.

Rayane Soares, pedagoga e atual gestora do Jovem de Expressão | Foto: Giullia Venus

A sede do programa foi instalada na Praça do Cidadão, ocupando um espaço que no passado fora utilizado para políticas assistencialistas  e também um ponto de conflito entre traficantes de drogas pela demarcação de território.“A praça fica entre duas quadras e as pessoas não passavam por ela, era preferível contornar porque havia receio de caminhar por dentro dela”, relata a coordenadora do programa, Rayane Soares. Com a ocupação do território, gradativamente o índice de violência na região foi caindo. “A cultura traz essas proezas”, complementa a pedagoga.

Logo após o primeiro ano de implementação o Jovem de Expressão mostrou que o investimento social nos jovens reduz a violência, aumenta a empregabilidade dos beneficiários e ainda gera riquezas para a sociedade. De acordo com a Avaliação do Impacto do Programa na Vida dos Jovens e na Sociedade, realizada em 2008, a cada R$1 investido no projeto, foi gerado R$1,87 de riqueza à população.

O JEX estabeleceu parcerias com a Organização das Nações Unidas (ONU), seu modelo foi amplamente divulgado e discutido. Tornou-se referência em estratégias de redução do impacto da violência entre jovens, e também garantiu um maior conhecimento dos problemas que geram barreiras para o desenvolvimento das juventudes.

Praça do Cidadão, onde fica a sede do Joivem de Expressão | Foto: Giullia Venus

Ocupar onde quisermos

Davidson Pereira tem 38 anos, é jornalista e trabalha em projeto do Serviço Social da Indústria (Sesi) sobre educação livre, traçando trilhas de aprendizagem. Conheceu o JEX há 13 anos, quando tinha 25 anos. O JEX para ele foi crucial, sem o programa acredita que provavelmente não teria concluído o curso de jornalismo: “Nos primeiros dois anos foi muito difícil, sofria racismo sem nem reconhecer que era racismo. Só consegui ter força por causa do JEX e da rede de apoio que tinha lá, porque me mostravam meus direitos de ocupar aquele espaço”.

Ele conta que conheceu o programa por acaso, quando saiu do emprego de caixa de supermercado e foi dar baixa na Agência do Trabalhador, que fica em frente à sede do JEX. O rapaz viu que estavam oferecendo uma oficina de produção de eventos, bateu lá e assim começou sua trajetória. Logo que terminou a oficina, foi chamado para colaborar em eventos organizados pela iniciativa, colocando em prática os ensinamentos das aulas. Com o tempo foi participando de outros projetos e criando uma rede profissional.

Na época, ele atuou como Agente de Expressão, participando de reuniões, encontros, conselhos e debates. Davidson reflete como o programa foi importante para saber que a juventude periférica pode ocupar qualquer espaço.

Davidson Pereira, jornalista que chegou na carreira via Jovem de Expressão | Foto: Arquivo pessoal

“A gente se vê representado em vários lugares. Há pessoas que passaram pelo JEX que hoje estão fazendo eventos pelo Brasil e no exterior, há pessoas que estão nas câmaras legislativas criando políticas públicas. É difícil para o jovem ocupar determinados espaços, o JEX mostra que podemos ocupar onde quisermos e não apenas onde estão nos limitando”, diz o jornalista.

Outro ponto destacado por Davison é sobre se entender como um cidadão de direitos na sociedade, o que engrandece a autoestima e previne conflitos. “Por exemplo, quando alguém quer produzir um evento, ensinamos como ter toda uma documentação para não sofrer repressão policial. Porque sabemos que um evento aqui não vai ter a mesma abordagem que um evento realizado por algum milionário, que pode ter droga e o que for que o policial mal pisa na calçada próxima ao evento”, detalha.

Dar vida ao talento que tá dentro

Ricardo Palito tem 30 anos, trabalha com audiovisual e começou a fazer parte do projeto aos 18 anos, entre 2010 e 2011. Conheceu o JEX por meio do basquete de rua e apresentações da Central Única das Favelas (Cufa). Depois disso, logo se inscreveu para a oficina de audiovisual, que já era uma área de seu interesse. “Não tinha nada assim que eu conhecia, na época pesquisei e somente havia cursos muito caros, lá era gratuito, se não fosse o JEX eu não estaria onde estou hoje”, conta. Logo após concluir o curso, se envolveu com a webtv que o programa tinha na época, a TV de Expressão. Lá ele foi apresentador, cinegrafista e editor. O grupo da TV realizava cobertura de eventos em Ceilândia, no DF e pelo Brasil afora.

Ricardo Palito começou como aluno e hoje dá aulas no ciclo audiovisual do Jovem de Expressão | Foto: Arquivo pessoal

Palito, que ingressou como aluno, hoje é professor nos ciclos de audiovisual, em aulas na área de edição, e participa de vários ciclos do curso desde 2016. “O impacto é gigante e a tendência é crescer ainda mais. Não é só uma oficina, há um vínculo muito forte e todo um suporte para evoluir profissionalmente. Meus primeiros trabalhos pagos foram lá, ter passado pelo Jovem de Expressão fez toda a diferença na pessoa que sou hoje. Tenho orgulho em ver alunos que foram das oficinas crescendo, sinto muita gratidão. Eu tinha várias ideias que não sabia como colocar pra fora e lá eu aprendi como fazer isso. O programa salva muitas pessoas, dá vida ao talento que tá dentro”, revela.

Tecnologias sociais

A perspectiva do projeto parte da compreensão de que moradia e violência não são pautas únicas dos jovens periféricos e que, para garantir seu real bem estar, outros movimentos precisam ser feitos. Existe assim o foco em direcionar ações de reconhecimento, diversidade e afetos. A metodologia do Jovem de Expressão foi criada a partir de uma pesquisa científica e o estudo foi validado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

Os envolvidos no programa acreditam que o sucesso alcançado até o momento está ligado à formação de uma rede social de promoção da saúde, com foco na redução da violência juvenil. O Jovem de Expressão é um ambiente sem pressão, sem fingimentos, sem censura. Trata-se de um espaço onde pessoas comumente discriminadas falam o que pensam, refletem sobre a vida, divertem-se e encontram alternativas criativas de geração de emprego e renda. Empoderados, adotam comportamentos mais seguros em relação a si mesmos e aos outros. Essa mudança, aliada aos cursos de capacitação, torna os integrantes do programa mais atraentes para o competitivo mercado de trabalho e os deixa cada vez menos expostos à violência.

O JEX apresentou inicialmente duas tecnologias-base: a “Expressão Jovem”, voltada para promoção da cultura, e a “Fala Jovem” , direcionada à promoção da saúde mental. Com o passar dos anos, outros projetos foram sendo implementados, como o Laboratório de Economia Criativa (Lecria), ligado ao empreendedorismo, e o curso preparatório para o acesso à universidade, retratado pelo JEX como uma uma iniciativa que vem operando uma revolução silenciosa.

Expressão Jovem

A promoção da cultura é uma tecnologia social que opera a partir da mobilização das comunidades e na integração das redes sociais de proteção, defesa dos direitos e acesso aos serviços de saúde, educação e cultura. Baseia-se em uma linguagem de grande alcance e adesão à cultura jovem, construída e reconstruída permanentemente pelos próprios integrantes do programa. Para o JEX, é fundamental trabalhar com manifestações culturais legitimadas pelos próprios jovens.

As oficinas são voltadas para o desenvolvimento profissional, da mesma forma que representam um espaço de experimentação para o desenvolvimento pessoal, como destaca a psicóloga Yasmin Moreira: “não é só preparar para o mercado de trabalho, os jovens periféricos também têm o direito de experienciar oficinas como hobby ou lazer”.

Entre as atividades já oferecidas, as mais procuradas comumente são dança e coreografia, audiovisual (direção e roteiro, produção, captação de áudio), mixagem e DJ, fotografia, produção de eventos e atuação, entre outras. Além das oficinas oferecidas pelo próprio JEX, o espaço também é cedido para execução de diversas outras atividades desenvolvidas por projetos parceiros.

Além das aulas, os participantes são incentivados a frequentar outras atividades, como eventos culturais, cine-debate, rodas de conversas e palestras. O JEX promove ainda diversos eventos ao longo do ano, como:

Mês das Minas, Manas e Monas – iniciativa que promove a discussão da pluralidade feminina no mês de março

Cine de Expressão – primeiro Festival de Cinema de Ceilândia, escoa produção audiovisual periférica e formar profissionais capazes de produzir o próprio conteúdo audiovisual na cidade

Elemento e Movimento – além de ser um dos maiores festivais de música e cultura urbana do Distrito Federal, ainda forma e capacita jovens durante todo o festival

CarnaFlow – acontece sob a proposta de descentralizar o Carnaval e mostrar que na periferia também tem folia e cultura

Fala Jovem

Com objetivo de cuidar da saúde mental da juventude e de pessoas do território, o JEX conta com um módulo baseado na terapia comunitária integrativa. Os serviços são oferecidos através de parcerias com instituições e voluntários.

Yasmin Moreira é psicóloga do Jovem de Expressão | Foto: Giullia Venus

No “Fala Jovem”, as pessoas partilham experiências de vida e, juntas, tentam encontrar soluções para os seus problemas. Há ainda plantão psicológico todas as quartas-feiras, aberto a qualquer pessoa que apareça precisando de apoio de forma individualizada.

O “Se Cuida Quebrada” é uma iniciativa que busca oferecer atendimento psicológico e atividades voltadas pro bem-estar incluindo rodas de conversa, oficinas, atividades esportivas e vivências, buscando atender a demanda de casos não atendidos nos centros especializados.

Uma revolução silenciosa

Desde 2016 o JEX oferece ainda cursinho preparatório com objetivo de incentivar a conquista de uma vaga na universidade. O curso funciona por meio de aulas em formato híbrido, há realização de monitoria em horários alternados ao das aulas e apoio gratuito da equipe multidisciplinar de saúde. A escola funciona com apoio de voluntários. Cerca de 360 alunos passaram pelo cursinho até 2021 e mais de 100 conseguiram ingressar no ensino superior. Muitos deles retornaram como professores e voluntários, dando prosseguimento a um ciclo virtuoso.

O Pré-Vestibular Jovem de Expressão tem suas ações pautadas na construção de pontes, proposta de educação e linguagem que facilite o acesso dos jovens moradores da periferia ao conteúdo necessário para passar nas provas de seleção.

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Ao abrir possibilidades de inserção no ensino superior, o projeto gera impacto direto na vida dos alunos e de suas famílias, visto que a cada ano de estudo há uma tendência de aumento de 15% na renda do indivíduo. No Brasil, um trabalhador com diploma universitário ganha, em média, mais que o dobro de quem só cursou o Ensino Médio e, com pós-graduação, pode-se ganhar um salário quatro vezes maior.

*A pauta desta reportagem foi selecionada para o programa de microbolsas de reportagem Comunidades Vivas, desenvolvido por Ponte e Jornalismo e Instituto Sou da Paz para incentivar a produção de reportagens sobre práticas e soluções que melhoram a segurança pública em territórios vulnerabilizados.

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