Adolescentes da Fundação Casa e familiares afirmam que funcionários promoveram série de agressões após um dia de visita; instituição diz que ‘precisou controlar os mais arredios’
Uma carta, escrita a lápis no dia 8 de fevereiro, diz assim: “Venho escrevendo essa carta para as autoridades, querendo e pedindo a ajuda de vocês. Domingo, dia 5 de fevereiro, período da tarde na Fundação Casa Jatobá, dia de visita, estávamos no pátio e não poderíamos tirar a camisa, diziam os funcionários. Mas naquele dia estava muito calor e acabamos tirando a camiseta”.
O autor é um interno da Casa Jatobá, uma das cinco que formam o Complexo da Raposo Tavares, na zona oeste de São Paulo. Na continuação, o jovem explica as consequências de terem tirado a peça de roupa: “Pediram para nós colocarmos a camiseta e eu coloquei. Mesmo assim, no período da noite, os agentes se reuniram, entraram nos quartos e agrediram eu e mais 12 adolescentes. Só que os jovens que foram agredidos estão com muito medo de dizer algo e acabar apanhando novamente. Irei escrever os nomes dos envolvidos nos acontecimentos: Patrício, Cristiano, André, Leandro, Marão, Diego e Hamilton. Todos juntos nesse acontecimento. Mas não foi apenas desta vez. Existiram outras. Nesse acontecimento do domingo, eles agrediram com pontapés, socos, madeira, enforcamento e soco inglês. Estou marcado com vergões e sangue pisado nos olhos. Estou disposto a mudar e crescer fazendo o bem, mas assim do jeito que estou sendo tratado, sofrendo agressão, não está ajudando. Tenho medo do que pode acontecer comigo se descobrirem que eu escrevi isso, por isso não irei me identificar. Aguardo resposta das autoridades e espero que seja o mais rápido possível. Boa tarde”.
A mãe de uma das vítimas, Sandra Silva da Costa, confirmou as agressões.
“É verdade, sim. Meu filho me disse que o funcionário chamado Thiago agrediu ele com um pedaço de pau”, conta. O filho dela, Gabriel, ficou quase 4 meses na Fundação Casa do Brás – que é uma unidade de passagem –, depois de ser detido por roubo de carro, e chegou à Jatobá há pouco mais de duas semanas.
“Um funcionário chegou dando um tapa na cara do meu filho e perguntando se ia agredir ele. Como vai agredir se está preso? Ele está aqui para ser corrigido não agredido. Não pode. Como é que vai ser corrigido se ele vem aqui e apanha do funcionário? Ele vai sair daqui e vai querer matar todo mundo. Nem em bicho a gente bate, imagina o ser humano”, desabafa Sandra. “Isso aqui não corrige ninguém. É escola do crime”.
Além dessa carta, há pelo menos outras cinco que, se não relatam o episódio do dia 5 de fevereiro, falam sobre condições de higiene, problemas com as atividades internas e outras situações de violência.
A Ponte Jornalismo teve acesso a esse conteúdo e decidiu não publicar as imagens das cartas, para que a caligrafia não seja identificada.
“Meu filho sente muito medo de denunciar. Já aconteceu de ele esconder o braço quando tem algum hematoma. Ele nunca fala. Eu pergunto se está tudo bem, ele diz que sim e já muda de assunto. É complicado, porque eu estou aqui fora, mas ele está lá dentro”, diz uma mãe que conversou com a reportagem na frente do Complexo, em um dia de visita.
A Casa Jatobá é onde aconteceu a agressão mais recente, mas os outros prédios do Complexo são alvos de críticas. Em uma das cartas, o adolescente escreve: “Eles deixam a gente sem tomar banho, sem papel higiênico, humilham a gente. Deixam a gente de castigo, deitado na tranca, nos dormitórios durante a tarde toda, sem fazer nada. Isso acaba atrasando a gente. Rodo, vassoura, está tudo quebrado. Não tem televisão, roupas sujas, coisas sem lavar direito, eles não ligam para nós. Como querem que os adolescentes respeitem eles?”.
Denúncia no escuro e o silêncio do medo
Nos dias 11 e 12 de fevereiro, dias de visita no Complexo da Raposo tavares, a Ponte Jornalismo coletou alguns relatos de familiares. Todos são anônimos e a justificativa para isso varia muito pouco. Na maior parte das vezes é o medo que impede de mostrar o rosto. Uma das mães tem o filho na ala A da Casa Jatobá e explicou um pouco do esquema: “É assim: quando eles chegam eles ficam na ala B, aí conforme eles vão se desenvolvendo vão para a ala A. Mas não é progredindo para o bem, tá? É progressão para o mal que eu tô falando. Uma pessoa que trabalha aí me disse: ‘Se seu filho for para a ala A é porque caiu'”, relata.
Preso por tráfico pela segunda vez aos 16 anos, o filho de uma outra mulher apanhou muito quando chegou: “Eu acho errado. Ele já está pagando pelo que fez, não precisa bater. Ele disse que não sabia nem porque tava apanhando. Tudo bate, tudo bate. Como vai melhorar? Mas é difícil comprovar, porque a gente não pode entrar com nada, com um celular, por exemplo, para tirar uma foto. Ele me contou de um amigo, que apanhou de um funcionário e ficou com a barriga roxa. Aí diz que o funcionário chegou e falou: ‘Você sabe o que aconteceu aqui, né?’, e ele: ‘O que aconteceu, senhor?’, ‘Você estava jogando bola e caiu, entendeu?’. Aí ele: “Sim, senhor'”, contou a mãe na saída da visita do domingo.
Outra mãe de um adolescente que cumpre a medida por roubo de carro pela segunda vez, conta que o filho, na Jatobá desde dezembro, está cada dia mais sem esperança. “Outro dia ele me disse que para ele tanto faz morrer ou ficar vivo, que não sabe mais se vai pro inferno ou pro céu, porque o inferno ele já tá”, disse com disfarçada emoção. “Na semana passada, na visita, tinha um moço do meu lado que começou a chorar e dizia pra mãe: ‘Eu não aguento mais. Eu desisti. Fui esquecido aqui'”, contou a mulher.
Na sexta-feira (10/02), o Complexo recebeu a visita de um juiz para iniciar a apuração das denúncias com relação a Casa Jatobá. Os adolescentes ficaram bastante agitados. O fim de semana passou, houve visita normalmente, mas na segunda-feira (13/02), 15 homens do Choquinho – grupo de funcionário da segurança interna da Fundação, batizados dessa forma em alusão ao Choque da Polícia Militar – entraram em um dos prédios para conter o que foi definido como tensão entre os internos.
O outro lado
A Casa Jatobá comporta 76 adolescentes e hoje está com 51.
O local das agressões foi a ala B, formada majoritariamente por jovens reincidentes, com idade entre 16 e 21 anos incompletos.
Segundo o diretor regional da Divisão Regional Metropolitana 4, Guilherme Astolfi Caetano Nico, o que aconteceu no dia 5/02 foi um ato de indisciplina envolvendo 4 adolescentes, que teria obrigado os servidores a agir para conter os mais arredios.
“Foi mais uma molecagem, você sabe que na Fundação tem alguns procedimentos, normas. Esses quatro se recusaram a cumprir e tentaram incitar alguns outros adolescentes para uma revolta maior, mas ninguém mais aderiu. É uma unidade que está melhorando muito o comportamento. Nós temos trabalhado muito para promover a cultura de paz e o bom relacionamento entre servidores e adolescentes e entre eles mesmos”, explicou Guilherme, que também ressaltou que no exame de corpo de delito não houve constatação de qualquer marca de violência, o que, para ele, prova que há exagero no relato dos meninos.
“Eu tenho dois filhos, pré-adolescentes também. Em casa, às vezes, tenho que separar confusão, você imagina numa unidade da Fundação Casa com 50 adolescentes, de vez em quando acontece alguma coisa, né? Então o que houve foi um ato de indisciplina que a própria equipe da unidade conseguiu conter, não precisou de apoio externo”. Além do chamado RO, o registro de ocorrência interno, foi feito um boletim de ocorrência no 75º DP [Jardim Arpoador] e o caso foi remetido à Corregedoria da Fundação, que tem 90 dias para concluir a investigação.
O diretor regional também fez questão de dizer que foi uma minoria: “Foram quatro adolescentes de um total de 26, 30 jovens. Se a revolta tivesse corpo, algo mais grave teria acontecido. Eles têm se comportado de forma excelente”.
Para Guilherme, o caso foi de pequena monta e não é verdade que há distinção entre os garotos da ala A e B. “A gente garante atendimento a todo adolescente, não há distinção entre eles. Todos têm acesso às atividades pedagógicas de 40 horas semanais, além dos outros atendimentos de saúde, práticas esportivas. É uma unidade que vem evoluindo muito. De fato, existiam problemas há alguns anos. Eu cheguei há menos de 2 e tenho 15 unidades sob minha responsabilidade. E posso lhe assegurar que estou muito confiante com a evolução da Jatobá. A verdade é que os adolescentes estavam acostumados com uma unidade mais desorganizada e agora tem horário para tudo, tem regra. E a parte boa é que muitos estão se animando e cooperando para abreviar a permanência aqui”, explicou por telefone. Guilherme Astolfi destacou que a instituição não é perfeita, mas é garantidora dos direitos humanos.