Na terceira apreensão, jovem de Itu (SP) foi apreendido e denunciado sem passar por audiência e sem ser ouvido pelo Ministério Público ou pelo Judiciário. ‘Essa injustiça muda a gente’, lamenta mãe
“Como vai ficar a cabeça desse menino?”. A pergunta é repetida todos os dias pela diarista Gislaine Marcolino Dalbello, 50 anos. O filho, João (nome fictício), um adolescente negro de 17 anos, foi apreendido no mês passado e condenado por tráfico de drogas, em Itu, no interior paulista. Antes disso, já havia sido apreendido e cumprido pena, pelo mesmo crime, outras duas vezes, desde abril de 2022. Nas três vezes, dois dos policiais civis que detiveram seu filho eram os mesmos.
Em todas as ocasiões em que detiveram João, os investigadores Cirineu Yasuda Alves de Lima e Moacir Cova alegaram que flagaram João vendendo drogas. Moradora de Rancho Grande, um bairro pobre da cidade, Gislaine nega que o filho tenha cometido qualquer crime e luta para tentar provar que o jovem é alvo de uma perseguição.
Na primeira apreensão, ocorrida em abril de 2022, João ficou internado na Fundação Casa por nove meses. No ano passado, foram sete meses. Ele não teve nenhum pedido de habeas corpus aceito e cumpriu todas as penas por completo. Em 2024, o jovem foi apreendido em 23 de janeiro e condenado, no último dia 21, a cumprir medida socioeducativa de até três anos.
Sem entender o que motiva a suposta perseguição, Gislaine conta que o filho já teria sido alvo de agressões físicas pelos investigadores durante as abordagens. Na última, João teria sofrido chutes, socos e sido alvo de tiros. Dessa vez, ela temeu pela vida do filho. “Essa injustiça muda a gente. Nós ficamos com uma angústia, uma coisa inexplicável”, conta.
Na busca por inocentar o filho, Gislaine deixou de lado os amigos e as aulas de muay thai que praticava com regularidade. Passou a ler processos, ir atrás de advogados, peregrinar em visitas à Vara da Infância e Adolescência de Itu. A situação financeira também se complicou, já que ela parou de trabalhar em um serviço fixo. Luz e água muitas vezes ficam em segundo plano para arcar com gastos da defesa do adolescente.
“Eu estou sobrevivendo aos dias. Para mim, a minha vida já… Não vou dizer que não tenha mais sentido, porque eu tenho muita fé. Eu acredito muito que um dia a justiça vai ser feita”, conta Gislaine
Antes alegre e brincalhão, o adolescente agora tem crises repentinas de choro. “Ele olhava para mim e começa a cair lágrimas. Eu abraçava, tentava entender”, conta a mãe.
Em conversa com a Ponte, Gislaine reitera a pergunta que se faz diariamente: “como vai ficar a cabeça desse menino?”.
Denunciado sem ter sido ouvido
A mãe relata que, em 23 de janeiro, o adolescente saiu de casa para dar uma volta pelo bairro e encontrou amigos em uma adega não muito distante de onde moram. Em um carro descaracterizado, os três policiais civis faziam campana na área.
No boletim de ocorrência, os investigadores Cirineu Yasuda Alves de Lima, Moacir Cova e Bruno Bolpete Ceccolini contaram que estavam no local apurando uma denúncia de tráfico de drogas. Disseram ter visto João vendendo entorpecentes na rua e entregando dinheiro a uma pessoa, descrita por eles como o gerente do tráfico no bairro.
Ao se aproximarem de João, ele teria corrido e supostamente jogado fora 77 porções de cocaína no caminho. Com ele, os policiais afirmaram terem encontrado R$ 70 em dinheiro.
Gislaine conta que o filho deu uma versão diferente. O adolescente disse que estava conversando com amigos quando notou a presença dos policiais, os mesmos que já haviam o apreendido outras duas vezes. Com medo de ser novamente incriminado, ele correu tentando chegar em casa.
Os policiais teriam agredido João e atirado em sua direção, sem acertá-lo, segundo a mãe. Levado à Delegacia de Polícia de Itu, o adolescente acabou apreendido sem passar por audiência de apresentação (semelhante à audiência de custódia, mas voltada para adolescentes), instrumento previsto pelo Estatuto da Criança e do adolescentre (ECA).
O promotor André Pereira da Silva Bruncro, da Promotoria de Justiça de Itu, dispensou tanto a audiência como a oitiva informal. Esses procedimentos servem para o adolescente apreendido relatar sua versão dos fatos.
Baseado apenas no depoimento dos policiais, já que o delegado da Polícia Civil Wesley Franklin de Paula não requisitou nenhuma diligência, Bruncro representou pela internação de João. “A representação é oferecida sem prévia oitiva informal do adolescente, pois os elementos de informação contidos nos autos já fornecem subsídios suficientes que evidenciem a existência de prova da materialidade e inícios (sic) de autoria do ato infracional”, escreveu o promotor na decisão.
O adolescente só foi ouvido após pedido da advogada de defesa, Priscilla Mauricio. A defensora questionou isso e o fato de não ter havido audiência de custódia, nos moldes seguidos pela justiça para aprisão de adultos.
O juiz Cassio Mahuad pediu que fosse feita oitiva, mas justificou que audiência de custódia para apuração de ato infracional não é regulamentada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
O questionamento não foi por mera formalidade. Gislaine conta que o filho estava machucado e tinha ferimentos pelo corpo. A esperança era de que, ao ouvir o relato de João, promotor e juiz pudessem perceber que ele havia sido agredido e reverter a internação.
O advogado Guilherme Perisse, especialista em direitos humanos e das crianças e adolescentes, ouvido pela Ponte, explica que a Constituição Federal e as normativas internacionais das quais o Brasil é signatário garantem uma série de princípios interpretativos para crianças e adolescentes. Alguns deles são a proteção integral, a prioridade absoluta e a garantia do melhor interesse da criança.
“Considerando que as normas devem ser interpretadas com toda essa proteção para crianças e adolescentes, será evidente que, uma vez que se cria um direito para os adultos acusados de crime, que esse direito seja também estendido aos adolescentes. Ainda que exista a oitiva informal por parte do Ministério Público, que no caso nem foi realizada no momento certo aqui, não é igual a uma audiência judicial porque só tem o Ministério Público. Não tem juiz oficiando, não permite que o adolescente tenha contato direto com o juiz”, fala Perisse.
Na visão do especialista, se há entendimento de que adultos têm direito à audiência de custódia, os adolescentes também têm. Perisse diz que, apesar de a maioria dos tribunais não aplicar o instrumento, nada impediria que ele fosse feito.
“Esses procedimentos protetivos são fundamentais de serem cumpridos para que a lei possa, talvez, funcionar, tenha alguma chance de funcionar como ela foi pensada”, diz.
Mesmos policiais, mesmas versões
Na primeira apreensão, ocorrida em abril de 2022, os investigadores Cirineu Yasuda Alves de Lima e Moacir Cova disseram terem encontrado três porções de crack com João. A mãe diz que os entorpecentes foram “plantados”. O adolescente também relatou ter sido agredido. Teria sofrido um mata-leão de um terceiro agente, que não é citado no boletim de ocorrência.
O relato de agressões feito pelo adolescente não chegou a ser apurado pela polícia e nem foi mencionado pelo promotor Christiano José Poltronieri de Campos. Ele representou contra o adolescente por ato infracional análogo ao tráfico de drogas com base na versão dos investigadores.
No ano passado, segundo a mãe, João estava em frente a uma tabacaria próxima à casa onde mora. Ele teria sido colocado numa viatura descaracterizada com outros suspeitos e levado até a delegacia.
No trajeto, o adolescente teria sido alvo de ameaças verbais.“O tempo todo eles vinham fazendo ameaças para ele, querendo saber onde estava a droga, ele falou ‘eu não sei, eu não vendo droga, eu não uso droga’ e nada’”, conta Gislaine.
Em depoimento, Moacir e Cirineu disseram que teriam visto João e outro suspeito que, segundo eles, “já é conhecido dos meios policiais”. Com o adolescente, afirmaram terem encontrado duas porções de crack e R$ 30 em dinheiro. Os agentes dizem ter encontrado também 39 cápsulas de cocaína, que teriam sido escondidas por João e o outro suspeito.
Sonho de conhecer o mar
Gislaine ainda sonha em realizar o maior desejo do filho: conhecer o mar. “Ele pedia para mim que queria conhecer a praia, mas eu infelizmente até hoje não consegui realizar esse sonho dele, que é muito pouco”, afirma.
João é descrito pela mãe como um adolescente prestativo e carinhoso. “Ele tudo para mim, meu companheiro, meu amigo”, relata. Os gostos comuns à idade, como jogar bola, sair com os amigos, são partilhados por ele.
No começo deste ano, João foi convidado a participar de um culto evangélico. Aceitou, mas não tinha tênis para ir ao local. A situação comoveu um casal de vizinhos que havia feito o convite. Deram logo dois pares para o adolescente. No domingo, dia 21 de janeiro, ele compareceu e orou. A mãe acredita que os pedidos foram pelo fim da injustiça.
Dois dias depois do culto e da oração, na terça-feira (23), João foi apreendido. “É muito doloroso tudo isso”, afirma Gislaine.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), questionando os pontos abordados na reportagem.
Também foi solicitada entrevista com o delegado Wesley Franklin De Paula, com os policiais civis Cirineu Yasuda Alves de Lima, Moacir Cova, Bruno Bolpete Ceccolini, com o promotor André Pereira da Silva Bruncro e com o juiz Cassio Mahuad.
O TJ-SP informou que magistrados não podem se manifestar fora dos autos. Sobre a ausência da audiência de custódia, o órgão disse que “não se trata de um posicionamento do TJSP, mas de ausência de previsão legal para tanto”.
“A Resolução CNJ nº 213/2015, que criou a audiência de custódia, prevê sua aplicação para maiores de idade. Deve-se recordar que adolescente infrator não pode e não deve ser tratado da mesma maneira que preso. Ao primeiro é aplicada uma medida socieoducativa, ainda que seja de internação – seu objetivo é socioeducativo. Ao preso é aplicada uma pena. A Constituição Federal proíbe que menores de idade que cometam atos infracionais recebam o mesmo tratamento que adultos que cometem crimes”, escreveu o TJ-SP em nota.
Já a SSP-SP, também em nota, informou que “todas as medidas legais foram tomadas”. “O caso citado foi registrado no plantão da Delegacia de Itu no dia 23 de janeiro. Na ocasião, um homem de 22 anos e o menor, de 17, foram detidos em flagrante. Todas as medidas legais foram tomadas, com elaboração dos atos de polícia judiciária que de praxe são realizados quando uma ocorrência de flagrante é apresentada. Em seguida o flagrante foi comunicado ao juiz e ao Ministério Público e depois, como de costume, remetido para circunscrição dos fatos, que neste caso era o 01 D.P. de Itu, para prosseguimento das investigações”, escreveu.
O MP-SP comunicou que só se manifesta nos autos.
*Matéria atualizada às 14h20min do dia 29 de fevereiro de 2024 para incluir a nota da SSP-SP. O texto foi novamente atualizado às 18h30min do mesmo dia para incluir as notas do TJ-SP e do MP-SP.
Correções
- A primeira versão do texto dizia que João tinha sido levado para a delegacia de Salto. O texto foi alterado às 19h15min do dia 28 de fevereiro com a informação correta.