Soldado Murilo César alegou que Gabriel Gomes dos Santos tentou roubar sua arma assim que colocou algema em um dos seus pulsos e que câmera da sua farda caiu por causa da “luta corporal”, no bairro Rio Pequeno, zona oeste da capital
Em um vídeo, um jovem aparece com uma algema em um dos pulsos, ensanguentado, debruçado no chão enquanto moradores gritam desesperados. Um homem que fez uma das gravações diz que ele foi baleado pela polícia e, ao fundo, aparece um policial militar. É possível ouvir xingamentos de “vagabundo” e “arrombado” direcionados ao PM, que se afasta do rapaz caído.
Tudo aconteceu por volta das 17h20, no bairro do Rio Pequeno, na zona oeste da cidade de São Paulo, no dia 8 de janeiro. O jovem baleado é Gabriel Gomes dos Santos, de 22 anos, que acabou morrendo por conta dos ferimentos três dias depois. Comerciantes e moradores da região disseram à Ponte que ele não residia no local, mas era conhecido de alguns. “Foi muito rápido, eu ouvi só os dois tiros de dentro de casa”, relatou um morador.
De acordo com o inquérito, os soldados Abner Luis da Silva e Murilo César de Oliveira Santos, do 23º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), disseram que estavam patrulhando pelo bairro quando entraram na Rua Abílio Pereira de Almeida, onde, segundo eles, existiria um bar que seria “ponto de tráfico conhecido da população local e dos policiais militares”.
A dupla disse que, para obter “sucesso na abordagem a suspeitos que neste bar estavam”, sem especificar a quantidade de pessoas, decidiu fazer um cerco em que o soldado Abner ficaria com a viatura em frente ao estabelecimento. Como, diz ele, “os suspeitos tentariam se evadir pela vielas ali existentes” ao avistarem a viatura, o soldado Murilo César faria o cerco ao bar por uma viela a pé.
Os policiais afirmaram que Gabriel estava no bar e que, ao ver a viatura, fugiu por uma viela e se deparou com o PM Murilo que, por sua vez, teria feito comando para ele parar. O jovem teria desobedecido e corrido.
O soldado Murilo César afirmou que, por volta das 17h31, sacou a pistola e conseguiu alcançá-lo na Travessa da Paz. Depois, colocou sua arma no coldre e começou a algemá-lo. O policial alega que, após algemar um dos pulsos, Gabriel “iniciou uma luta corporal” e “tentou tomar sua arma de fogo”. Para “desvencilhar das investidas de Gabriel”, diz o PM, atirou duas vezes, mas, mesmo atingido, o rapaz conseguiu correr até a Rua Imperatriz Dona Amelia e caiu.
Murilo relatou que a câmera da sua farda caiu durante a “luta corporal”. Também declarou que o Samu foi acionado logo em seguida e que o jovem foi levado ao Hospital Universitário.
Já o PM Abner disse que permaneceu na viatura, esperando o colega deter o jovem e que não viu a dinâmica dos disparos. Com a demora e sem informações, declarou que ligou para Murilo, mas não foi atendido. Em seguida, afirmou que ouviu dois disparos, saiu do veículo, encontrou o parceiro e viu Gabriel caído na Rua Imperatriz Dona Amelia.
Não havia nenhum objeto ilícito com Gabriel, apenas seu celular, que foi apreendido. Ele foi atingido no abdômen e em uma das pernas.
Policiais ouvidos pela reportagem consideraram que a ação não seguiu os protocolos da PM, uma vez que o Procedimento Operacional Padrão (POP) para abordagens a pé prevê superioridade numérica de policiais ou de meios e que a equipe não se separe em uma área considerada de risco pois pode comprometer a segurança dos policiais. Um PM apontou à Ponte que o registro não deixa claro se os policiais avisaram os superiores por meio do Centro de Operações (Copom) sobre o que estava acontecendo nem se pediram apoio de colegas diante da situação.
José Vicente da Silva Filho, que é coronel reformado da PM paulista e membro do Conselho da Escola de Segurança Multidimensional da Universidade de São Paulo (USP), aponta que era o tipo de operação a ser feita pela Polícia Civil e que toda a situação era evitável. “O policial deve sempre exceder em medidas de redução de risco, principalmente quando ele escolhe a ação a empreender. Há situações inevitáveis em que o policial é surpreendido e deve agir sob risco, mas nesse caso eles tinham opção de segurança e não consta que havia alguém em perigo a socorrer”.
A delegada Lethicia Faria Fadel, do 14º DP (Pinheiros) anotou as inscrições das câmeras das fardas dos PMs, mas não consta solicitação expressa das filmagens nem indicação de as gravações terem sido vistas por ela. Ela solicitou perícia para o local, em que foi localizado apenas um estojo de projétil, e a apreensão da pistola do soldado Murilo, que teria um segundo estojo alojado na arma.
Ela indiciou Gabriel, que no momento do registro estava hospitalizado, por resistência e desobediência ao entender que “agindo de forma audaz e desafiadora, [ele] investiu contra o agente estatal que, para repelir injusta agressão atual a sua integridade física, usou moderadamente de sua arma de fogo, único meio necessário para fazer cessar a desautorizada investida contra o policial militar”.
No dia 11 de janeiro, um tio de Gabriel foi à delegacia para comunicar a morte. Com isso, o caso foi remetido ao 51º DP (Rio Pequeno) e não há informações se passará a ser investigado pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP).
Gabriel estava cumprindo pena de um ano e oito meses de prestação de serviços à comunidade e pagamento de 166 dias-multa por conta de uma condenação por tráfico de drogas de 2020. No registro, os policiais não deixam claro se já sabiam da passagem dele antes da abordagem ou consultaram depois de ele já ter sido baleado.
O que diz a polícia
Antes de ter acesso ao inquérito, a reportagem buscou informações com a Secretaria de Segurança Pública, que encaminhou a seguinte nota:
A Polícia Civil esclarece que foi comunicada quanto ao óbito do rapaz no último dia 11/01. Na ocasião dos fatos, policiais militares estavam em diligências pelo local, visando coibir o tráfico de drogas, quando, em dado momento, o homem, de 22 anos, viu a presença policial e começou a fugir. Os PMs prontamente acompanharam o suspeito, que foi detido. Durante a abordagem, o jovem tentou roubar a arma do PM, que interveio. O indiciado foi atingido e socorrido ao Hospital Universitário. O caso foi registrado como resistência, desobediência, lesão corporal decorrente de intervenção policial e comunicação de óbito no 14° DP (Pinheiros).
Após o acesso, a Ponte voltou a procurar a secretaria sobre a conduta dos PMs e da delegada sobre o caso. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, disse que a Polícia Civil e a PM abriram apurações sobre o caso. “Todas as circunstâncias dos fatos são apuradas pelas forças de segurança”, disse em nota.