Jovem negro foi preso em flagrante forjado da GCM de São Bernardo do Campo (SP), denuncia família

Vídeo mostra população revoltada com a prisão de Renato, 24, que ficou preso por oito dias por suposto tráfico de drogas; “o que eles fizeram foi muita covardia”, desabafa mãe

A comunidade do Botujuru, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, acompanhou com indignação a abordagem truculenta de Renato de Jesus Valadares da Silva, jovem negro de 24 anos, que foi preso “em flagrante” na noite do último dia 23 de junho, por volta das 23h30, acusado de tráfico de drogas. Nas filmagens feitas por testemunhas, é possível ouvir gritos de “estão forjando o moleque” em meio à confusão em frente a um bar do bairro. Em outro vídeo que mostra a viatura da Guarda Civil Municipal (GCM), a dona do estabelecimento diz: “isso não é justo, olha. Pegaram o menino que estava aqui no bar bebendo e estão fazendo isso”.

Apesar de alegar que as drogas apreendidas não eram dele, o jovem ficou preso por oito dias no Centro de Detenção Provisória (CDP) da cidade e foi solto no dia primeiro deste mês. À Ponte, Renato e sua mãe Edilza Maria de Jesus, de 54 anos, relatam que naquele dia os guardas chegaram a utilizar spray de pimenta contra eles. Renato tinha saído para beber com um amigo e tinha avisado sua mãe que voltaria para casa para jantar.

“Eu estava dentro do estabelecimento da amiga da minha mãe, quando, do nada, na hora que olhei para trás, um guarda já estava assim ‘é você mesmo, a gente já está vendo você não é de hoje’ e já jogou um tráfico em cima de mim. E eu falei ‘não senhor, não existe nada’. Eles me atravessaram de um lado da rua para o outro, chegaram e perguntaram se tinha alguma conversa com eles e eu falei que não tinha. A ‘conversa’, para eles, pelo tom de voz e pelo jeito deles, era algum dinheiro que eles estavam querendo, mas até aí não sei”, recorda o jovem.

Renato conta que na hora ficou nervoso com as acusações, começou a gritar pedindo socorro e que foi jogado no chão, agredido e algemado antes de ser levado para o 3º DP de São Bernardo do Campo. “Em oito dias preso eu não sabia que eu fazia. As únicas coisas que pensava era na minha família e a única coisa que o governo fazia era falar que você era uma pessoa ruim, que você merecia isso. Tudo isso vai acabando com nossa mente, pois eu não fiz nada”, lamenta.

Renato de Jesus ficou preso por tráfico de drogas por oito dias mesmo após GCMs não acharem entorpecentes com ele. | Foto: arquivo pessoal e reprodução

De acordo com o boletim de ocorrência assinado pela delegada Carolina Nascimento S. Aguiar, os guardas civis William Almeida Fernandes e Leonardo Fabiano da Silva relataram que receberam uma denúncia anônima de que um rapaz “magro, estatura mediana, de jaqueta branca da ‘Nike’ estaria vendendo drogas na Avenida Nicola Demarchi”. Ao avistarem Renato com características semelhantes, os guardas o abordaram, mas nada foi encontrado. Segundo eles, ao lado de uma banca de jornal, foi encontrada uma pochete contendo 14 mini tubos de cocaína, seis mini tubos de crack e 59 envelopes plásticos com maconha.

A prisão “em flagrante” do jovem foi convertida em preventiva pelo juiz Fernando Martinho de Barros Penteado, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), no dia 24 de junho. A conversão da prisão só foi decretada na última sexta-feira (1/7) pela juíza Fernanda Alves da Rocha Branco de Oliva Politti, que rejeitou a denúncia oferecida pelo promotor Edivon Teixeira Junior contra Renato e arquivou o processo.

Na decisão, a magistrada argumentou que “não há qualquer indício de que o denunciado tenha praticado o crime que lhe foi imputado, uma vez que não foi surpreendido em poder das drogas e das anotações do tráfico, muito menos praticando algum ato de comércio”. A reportagem entrou em contato com a Corregedoria da Guarda Civil Metropolitana de São Bernardo do Campo para saber se o caso será apurado, mas não obteve retorno.

O que eles fizeram foi muita covardia, eles bateram muito nele. Além deles baterem muito nele e eu pedindo que era meu filho para que não fizessem isso, eles não me respeitaram como mãe, jogaram foi spray de pimenta na minha cara, saíram me empurrando, jogaram ele dentro do camburão da polícia parecendo um lixo, parecendo um cachorro. É isso que eu não aceito”, desabafa Edilza, a mãe de Renato.

Ela conta que esta já é a terceira vez que o filho mais velho é alvo de abordagem truculenta por parte de agentes da segurança pública. Segundo Edilza, Renato teve uma passagem pela Fundação Casa quando era mais jovem e só saiu quando foi provado que era inocente da acusação de tráfico de drogas.

Atualmente, ele faz bicos como serralheiro, ajuda a mãe que trabalha vendendo espetinho de churrasco e está em tratamento do alcoolismo pelo Centro de Atendimento Psicossocial (Caps). Renato diz ter medo de encontrar com os guardas na rua novamente. “Eu tive que comprovar para o meu patrão que não era traficante. Nunca estive nessa vida, mas a partir do momento que o pessoal fala que eu estou é outra história. Uma mentira de farda vale dez mil verdades”, aponta.

Agora, Edilza procura a ajuda da Defensoria Pública para processar o Estado. “Eu vou fazer isso para eles respeitarem o ser humano, que respeitem quem está sendo abordado e respeitem a mãe”, afirma.

GCMs agiram fora de suas funções

A abordagem e a prisão de Renato, segundo a especialista em Direito Penal e Criminologia e mestranda em Processo Penal, Josianne Pagliuca dos Santos, não é compatível com as funções da Guarda Civil Municipal. As funções de cada agente de segurança estão expressas no artigo 144 da Constituição. “A GCM é uma guarda que cuida do patrimônio da cidade, por exemplo se tem alguém pichando um monumento ou prédio público, se há algum ato de vandalismo”, explica.

“Em denúncia assim, o que a GCM deveria ter feito, se houvesse de fato uma pessoa vendendo droga, era chamar policiais militares que estão os policiais encarregados dessa parte”, reitera. Segundo a especialista, o flagrante precisa ser explícito para que aconteça, o que não era o caso de Renato. “Uma simples denúncia não sei seria elemento suficiente [para a abordagem], mas seria menos violador da Constituição. O ideal seria que a pessoa com essa competência ficasse no comércio olhando por horas para ver se a pessoa que estava lá parada fez alguma coisa ou foi embora”.

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A pesquisadora também diz que ação dos moradores em filmar a abordagem pode ajudar na defesa do rapaz e no pedido de indenização. “É sempre bom que, podendo, as abordagens sejam filmadas, sempre que isso não colocar a outra pessoa em risco. E se filmar algo que achar estranho, entrar em contato com a Defensoria Pública do local para encaminhar”, sugere.

O que diz a polícia

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP), do governo Rodrigo Garcia (PSDB), para questionar sobre as orientações que existem para o atendimento de denúncias anônimas e o procedimento da Polícia Civil na prisão. Até o momento, a pasta não respondeu.

O que diz o Ministério Público

O MP também foi questionado sobre as provas utilizadas para a denúncia e o pedido de prisão preventiva de Renato, mas não retornou o contato da reportagem.

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