Simone de Castro percorreu mais de cinco quilômetros da Radial Leste, em SP, atrás de imagens que pudessem tirar seu filho Kadu da cena do crime; criminalistas apontam diversos erros na condução do processo, como falta de reconhecimento adequado e ausência de interesse nas provas da defesa
“Mãe, a gente foi forjado. Vai atrás das filmagens”. A frase não sai da cabeça da diarista Simone de Castro Antunes, 46 anos, e a que a faz de todas as maneiras há mais de seis meses tentar provar a inocência do filho Kadu Henrique Belmonte Rodrigues, 19, preso junto a mais dois amigos, acusado pela tentativa de roubo a um trio de mulheres, entre elas, uma policial militar.
Simone nega que o filho tenha cometido o roubo na noite do dia 21 de outubro de 2020, já que, segundo ela, naquele dia o rapaz tinha saído de casa, no bairro Jardim Santa Etelvina II, na região da Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital, para um passeio junto aos amigos no Shopping Tatuapé, localizado em área nobre da zona leste. Uma carta escrita pelo filho em papel de caderno e caneta vermelha reforça sua certeza de que ele não cometeu o crime do qual é acusado. “Estou tirando esses dias aqui como aprendizado, mesmo estando forjado”. O bilhete ainda traz um coração desenhado pelo jovem.
Segundo o boletim de ocorrência, os policiais militares Ronaldo Soares Bilha, 37, e Caio Cesar Silva Costa, 31, estavam a bordo de uma viatura da 3ª Companhia do 8° Batalhão Metropolitano, quando, por volta das 21h30, foram informados pela base da própria companhia que uma policial militar havia sido vítima de tentativa de roubo na esquina da Avenida Aricanduva com a Avenida Conde de Frontin, nome dado à Radial Leste naquele trecho, nos baixos do Viaduto Engenheiro Alberto Badra, na Penha. A informação via rádio era de que “a tentativa de roubo foi praticada por três indivíduos, sendo que um era magro, branco, vestia blusa preta e calça jeans, o outro era alto e vestia blusa cinza, e o terceiro era negro e vestia blusa com duas cores”.
Segundo a dupla de PMs, eles chegaram ao local em poucos minutos, e “praticamente no mesmo local onde ocorrera a tentativa de roubo, mais precisamente próximo a um ponto de ônibus existente na Radial Leste, avistaram três indivíduos exatamente com as mesmas características informadas pela base”. Os policiais militares soldado Bilha e cabo Caio sustentam que, ao realizaram a abordagem, os três indivíduos tentaram se separar e saírem andando, todavia, logo foram todos abordados. No momento da abordagem, os policiais perceberam que o indivíduo que vestia blusa preta “jogou algo ao solo”, que depois se constatou ser uma arma de brinquedo na versão dos policiais.
Na abordagem se identificou que o trio era Kadu Henrique Belmonte Rodrigues, Eduardo Coelho Anunciação e Wallacy Queiroz da Silva, todos com 19 anos de idade, e moradores do mesmo bairro. Pela descrição dos PMs, foi Kadu quem “dispensou” a simulacro ao avistar a viatura. Avisada pelos PMs da localização de três suspeitos do crime, a soldado Fernanda Melo Norberto Santos, 31, lotada na mesma unidade dos PMs que efetuaram a abordagem, retornou ao local junto de sua irmã e sua prima, que também estavam no carro no momento em que foram atacadas no cruzamento.
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No local, as mulheres contaram que trafegavam pela Radial Leste, quando, por volta das 21h15, pararam em um semáforo e um indivíduo, que foi apontado como Kadu, “quebrou o vidro dianteiro do passageiro. Ato contínuo, Kadu passou a exigir a entrega dos pertences de uma das vítimas”. Foi nesse momento que a soldado Melo, que conduzia o Honda Fit, acelerou com o veículo. Nada chegou a ser levado das vítimas.
O documento elaborado no 10° DP (Penha) e assinado pelo delegado Weider Angelo, ainda indica que “os três indivíduos foram reconhecidos pelas vítimas no próprio local”. A única menção a fala dos jovens é que “os presos negaram os fatos”. O boletim de ocorrência ainda aponta que as vítimas reconheceram Kadu no próprio local, mas “que não chegaram avistar com nitidez os rostos de Eduardo e de Wallacy, em razão da rapidez da ação, todavia, também os reconheceram por conta das vestes e da compleição física”.
Para o delegado Weider Angelo, “os depoimentos dos policiais militares, o simulacro apreendido, as declarações prestadas pelas vítimas, o reconhecimento por parte das vítimas e os danos causados no veículo consubstanciaram-se em indícios de autoria e de materialidade suficientes à lavratura do auto de prisão em flagrante delito”. Não há menção se as mão ou os braços do jovem apresentavam ferimentos pelo vidro quebrado.
Com o relatório elaborado pela Polícia Civil, o promotor Paulo Rogério Costa resolveu denunciar os jovens por tentativa de roubo, o que foi aceito pelo juiz Carlos Alberto Corrêa de Almeida Oliveira. O magistrado já negou por mais de uma vez os apelos de revogação da prisão preventiva de Kadu feitos pelo advogado André Filomeno. O mesmo já ocorreu com as defesas de Eduardo e Wallacy, que são realizadas por outros profissionais. O trio segue preso no CDP (Centro de Detenção Provisória) Belém I, na zona leste.
Questionado pela Ponte sobre o reconhecimento não ter sido realizado nas dependências da delegacia, o promotor Paulo Rogério Costa encaminhou resposta por e-mail em que afirmou não vislumbrar problemas. “Como toda prova, a sua produção é livre (e assim o CPP é apenas uma diretiva) e o reconhecimento é repetido com o juiz, e assim, não há prejuízo”.
Diante da prisão do filho, Simone passou a buscar provas que pudessem ajudar a inocentar Kadu e os amigos, como câmeras de segurança no entorno da Radial Leste que os tirassem do local do crime praticado contra a policial militar e suas acompanhantes. Após tanto percorrer a avenida e indagar gerentes e funcionários da maneira como se obter as imagens, ela conseguiu uma que capturou a passagem dos jovens. O relógio marca 21h23 quando o trio caminha junto pela calçada do posto de combustível Habib’s, na Avenida Radial Leste, altura do número 4.800. O local está a dois quilômetros do shopping e a três do ponto onde as mulheres foram abordadas.
Outra imagem que Simone e o advogado conseguiram é do momento da abordagem, ocorrida na calçada do restaurante República dos Camarões, na Avenida Conde de Frontin, 450, na Vila Carrão. O relógio do estabelecimento marca 22h47 quando diversas viaturas com o giroflex aceso param no local. Teria sido nesse instante que o trio foi detido, horário diferente do indicado no boletim de ocorrência, de que a polícia os teria localizado pouco após serem acionados às 21h30.
Questionado sobre a distância nos horários das imagens obtidas, o advogado André Filomeno contou que ouviu de Kadu que o trio andava e parava em lanchonetes da região, como Burguer King e Ragazzo. “A prisão do Kadu afigura-se, a meu ver, ilegal, por diversas razões. Primeiramente pelo fato de não estar assistido por nenhum advogado ou defensor público na delegacia, bem como por inexistir qualquer prova, exceto a palavra da vítima, que também é policial militar”.
A pedido da Ponte o advogado criminalista Renan Bohus da Costa analisou o processo. Para Costa, há uma série de situações que chamam a atenção no processo e que deveriam ter sido levadas em conta para a liberdade do trio. “Não consta nos autos o reconhecimento em delegacia, isso trouxe prejuízos aos acusados”, explicou o advogado ao apontar que no processo não existe menção à realização de reconhecimento como determina o artigo 226 do Código de Processo Penal.
Costa também argumentou que não foi dado o crédito devido as filmagens obtidas pela defesa de Kadu. “A defesa conseguiu imagens que comprovam que os acusados não estavam no momento do delito no local dos fatos, ou seja, a dúvida até agora favorece a defesa”. Costa também fez questão de ressaltar que “a prisão preventiva se mostra excessiva, pois superou o prazo razoável para duração do processo até a sentença, que é de 90 dias”, completou.
A Ponte também procurou a advogada criminalista Débora Roque, que fez ponderações quanto a manutenção da prisão do trio. Para ela, o caso faz parte do “‘espírito do punitivismo’, ou seja, vale tudo para acusar e condenar”. “Podemos notar que a defesa juntou provas importantes que apresentam contradições sobre o horário e o local da abordagem dos acusados. Mesmo assim, a defesa ainda teve pedido negado de ofício ao batalhão para comprovar o momento da ligação que uma das vítimas afirma ter realizado”. Débora explica que tal solicitação, se aceita, “comprovaria o horário exato que se deram os fatos, mas o juiz entende não ser necessário ou importante”.
Marcha pela liberdade
Na iminência da audiência marcada para a esta quinta-feira (6/5), que já foi adiada por três vezes em razão da pandemia, sendo uma delas pela “impossibilidade do reconhecimento pessoal dos acusados por parte das vítimas” devido falhas na conexão para encontro virtual, a família de Kadu resolveu organizar um ato para chamar a atenção pela liberdade do trio. Familiares dos outros dois rapazes não compareceram ao protesto.
A Ponte esteve na manifestação realizada na noite de quinta-feira (29/3) e que bloqueou por cerca de duas horas o sentido centro da Avenida dos Metalúrgicos, uma das principais de Cidade Tiradentes. Durante a marcha, que seguiu da Praça do 65 até o Terminal Cidade Tiradentes, a reportagem conversou com Simone, que contou com detalhes o que ouviu do filho.
“Acordei por volta das 4 horas com ele me chamando, mas quando me levantei ele não estava em casa e achei estranho. Comecei a mandar mensagem para conhecidos, quando me disseram que ele havia ido para o shopping com os amigos. Eu fui trabalhar, mas pensando que havia acontecido alguma coisa. Foi quando o pai dele me avisou que ele já estava em um CDP. Só fui ver meu filho após 25 dias”, contou.
Durante a conversa com o filho, ela disse que Kadu alegou que foram “forjados”, que voltavam para casa após passear no shopping Tatuapé. A abordagem pelos PMs teria ocorrido no momento em que se dirigiam para o ponto de ônibus onde tomariam a condução para casa. “Assim que os policiais chegaram tiraram fotos deles e encaminharam diretamente para uma das vítimas. Por isso ela descreveu a roupa deles, ela já havia visto a foto”, explicou Simone.
De acordo com a mulher, a intenção dos policiais era de que a arma fosse “jogada” ao único rapaz negro do grupo, mas seu filho teria retrucado. “Eles disseram que jogariam a arma para o negro [Eduardo], como meu filho não gostou da atitude jogaram nele a arma. ‘Então você vai segurar a bronca’”.
O ato, organizado pela Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, contou com cerca de 50 pessoas e foi pacífico, sob os gritos de “chega de forjado” e “justiça para Kadu, justiça para Eduardo e justiça para Wallacy”.
Segundo Simone, Kadu estava desempregado no momento, já que trabalhava como atendente de uma loja e foi dispensado devido à queda de clientes durante a pandemia. No processo há uma nota do ex-chefe afirmando que não houve nada que desabonasse a sua conduta enquanto prestou serviços no local.
A Ponte perguntou para a mãe de Kadu se havia algum motivo para o jovem ter se calado no momento da prisão. “Não chamaram para conversar. Tudo que eles falavam não anotavam”. Quando detido, Kadu tinha a quantia de R$ 400 no bolso, valor que foi depositado em juízo. Simone contou que o filho estava “juntando dinheiro para comprar uma moto”. A mulher também explicou que seu filho já estava nos trâmites finais para obtenção da CNH (Carteira Nacional de Habilitação), mas que perdeu prazos e terá que reiniciar o processo. “Com certeza a questão do bairro onde moram pesou [para prisão]”, completou.
“O adolescente de periferia não tem opções de lazer no local onde mora e, quando decide ir a um shopping para se divertir um pouco, corre o risco de ser preso, por ser uma espécie de ‘suspeito preferencial’. Os policiais precisavam encontrar alguém para culpar pela tentativa de assalto”, disse Yandra Lalleska, articuladora da Rede em Cidade Tiradentes.
Outro lado
Procurado para falar sobre o caso, o promotor Paulo Rogério Costa preferiu responder as questionamentos por e-mail. Indagado sobre o reconhecimento não ter sido feito nos moldes como determina o Código de Processo Penal, ele afirmou que a audiência a ser realizada hoje será avaliada como de fato ocorreu tal reconhecimento. Sobre uma possível liberdade dos jovens em caso de novo adiamento da audiência, ele explicou que pode reavaliar a necessidade da manutenção da prisão. “Vai depender de quem der causa ao adiamento à audiência. Por exemplo, se a defesa fizer algum requerimento, então se a denúncia for suspensa, então é mantida a prisão. E do mesmo modo ocorre: se eu fizer algum requerimento, então teria dado causa ao atraso. Neste caso, eu peço a revogação da preventiva”.
Procurado, o Tribunal de Justiça encaminhou nota em que explicou que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais”. De acordo com o texto, “os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.
Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que “na ocasião dos fatos, três homens, dois de 19 e um de 18 anos, foram presos em flagrante suspeitos de tentarem roubar três mulheres, entre elas uma policial militar. Todos eles foram reconhecidos pelas vítimas e um deles estava com um simulacro de arma de fogo, que foi apreendido. O inquérito policial foi concluído pelo 21ºDP sendo encaminhado à Justiça”.
[…] Alberto Corrêa de Almeida Oliveira, da 25ª Vara Criminal de São Paulo, condenou os amigos Eduardo Coelho da Anunciação, Kadu Henrique Belmonte Rodrigues e Wallacy Queiroz da Silva, todos com 19 anos, a quatro anos, um mês e vinte e três dias de prisão em regime semiaberto, […]