Juíza que condenou jovens pobres é casada com desembargador que presidiu votação de recurso do caso

    Para o advogado criminalista Roberto Portugal de Biazi, processo de trio condenado após reconhecimento pelos olhos tem imparcialidade questionável

    Os irmãos Victor Hugo Campos Terkeli, 22 anos, e Tiago Campos Terkeli, 34, e Alex Sandro Ferreira da Silva Catuaba, 40 | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    A juíza Jane Rute Nalini Anderson, da 3ª Vara Criminal de Jundiaí, que condenou Victor Hugo Campos Terkeli, 22, Tiago Campos Terkeli, 34, Alex Sandro Ferreira da Silva Catuaba, 40, e Miguel Azevedo Ramos da Silva, presos por roubo qualificado após serem reconhecidos pelos olhos, é esposa de desembargador Alberto Anderson Filho, presidente da Câmara que julgou e negou o recurso dos réus.

    A história não para por aí. Uma das vítimas, que levou os jovens pobres à condenação e prisão, é a juíza Roberta Cristina Morão, que atua em Jundiaí, interior da cidade de São Paulo. O desembargador Alberto é também o juiz que debochou de uma mulher presa ao negar o pedido de liberdade por causa da pandemia do coronavírus, dizendo que “apenas astronautas estavam a salvo do vírus“.

    “Dos cerca de 7.780.000.000 de habitantes do Planeta Terra, apenas três: Andrew Morgan, Oleg Skripocka e Jessica Meier, ocupantes da estação espacial internacional, o primeiro há 256 dias e os outros dois há 189 dias, portanto há mais de 6 meses, por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado coronavírus”, escreveu o magistrado em decisão do início de abril.

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    Segundo o advogado criminalista Roberto Portugal de Biazi, mestrando em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP, que pesquisa sobre imparcialidade no juízo, todo o processo pode ser questionável uma vez que a imparcialidade não foi respeitada. No entanto, ele alerta que não há impeditivo legal pois o desembargador não votou, mas presidia a Câmara que votou o recurso.

    Biazi também explica que, quando se fala em imparcialidade do juízo, precisamos pensar em três dimensões: processual, que diz respeito aos instrumentos legais para se peça o afastamento de um juiz que não é imparcial, ética, usada quando um juiz é corrupto ou não age de acordo com a ética judicial, e política, que é o caso do processo dos condenados pelos olhos.

    “O marido da juíza presidia aquela Câmara e tem uma posição hierárquica de condução dos trabalhos dentro daquele órgão colegiado”, aponta. “Os pares desse desembargador, que estão ali para realizar um julgamento, no íntimo deles, podem ter um elemento de pressão, mesmo que inconscientemente”, ressalta Biazi.

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    Por isso, continua o criminalista, o direito do juízo imparcial é extremamente relevante e estruturante no processo legal, posição muito consolidada pelas Cortes Internacionais de Direitos Humanos. “Não basta o juiz ou o tribunal ser imparcial, a aparência de parcialidade também deve ser objeto de análise. Sem um julgamento imparcial não existe processo justo”, aponta Biazi.

    Apesar disso, os tribunais brasileiros são “conservadores” quando se fala em imparcialidade do juízo. Segundo o especialista, é muito raro, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, promover a troca de uma Câmara de julgamento, de um julgador em específico ou ser determinado que um juiz não vote uma determinada ação.

    “Existe um entendimento muito consolidado, de uma maneira geral, de que o juiz, pelo mero fato de estar investido da autoridade de magistrado e ter feito um juramento de ser imparcial e independente, não poderia ser questionado sobre a sua legitimidade”, pondera.

    Para criar uma aparência de imparcialidade, e assim transmitir confiabilidade e credibilidade, explica o criminalista, o Judiciário precisa ser diverso, composto de pessoas negras, mulheres e pessoas de diferentes classes sociais, para não ser um tribunal questionável com um “recorte ideológico específico”.

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    Para a advogada criminalista Débora Nachmanowicz de Lima, integrante do Ibccrim, o caso apresenta falhas desde o seu início que culminam em erros também no final dele, chegando à condenação. “Reconhecimento foi feito em desacordo com a legislação, realizado mais de três meses após o crime, quando as pesquisas cada vez mais apontam para a falha desse tipo de prova, além da total desconsideração dos álibis”, aponta.

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    “Deveria haver aperfeiçoamento do sistema de distribuição do TJ-SP, para que, em casos de juízes cônjuges de desembargadores, haja o bloqueio da distribuição para toda a Câmara do cônjuge”, aponta, completando que “a sociedade fica com uma impressão bastante negativa de casos assim em que a estética e aparência de imparcialidade não contaminem o julgamento”.

    Entenda o caso

    Recentemente, contamos a história de três homens pobres que foram condenados pela Justiça paulista depois de serem “reconhecidos pelos olhos” por um crime que eles têm provas de que não cometeram. Também contamos que, essa mesma Justiça, tentou nos impedir de contar essa história, narrada pelos próprios réus. Só pudemos publicar seus relatos sem mostrar seus rostos e nomes.

    Os irmãos Victor Hugo Campos Terkeli, 22 anos, e Tiago Campos Terkeli, 34, foram presos em casa, em Taboão da Serra, na Grande SP, na manhã do dia 12 de junho de 2018. Na noite do crime, em 1º de março de 2018, Victor Hugo estava na escola a 83 km de Jundiaí, interior de SP, onde o crime aconteceu. Tiago estava no trabalho, assim como Alex Sandro Ferreira da Silva Catuaba, 40, que também foi preso. Além do reconhecimento pelos olhos, a vítima disse que identificou a voz de Alex. Um quarto homem, Miguel Azevedo Ramos da Silva, também foi condenado pelo mesmo crime.

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    Na sentença, a juíza Jane afirmou que “as vítimas não teriam qualquer interesse em incriminar os réus” e que “o fato de as vítimas, especialmente Roberta [a juíza assaltada], não ter visto totalmente o rosto dos réus no momento do delito, não tem o condão de enfraquecer a prova trazida ao bojo dos autos”. E termina dizendo que as vítimas foram reconhecidas pela “compleição física e pela voz”.

    Quando os réus recorreram da sentença e, em segunda instância, um acórdão (decisão tomada por mais de um magistrado), relatado pelo desembargador Fernando Simão, manteve a condenação de todos, afirmando que, “em se tratando de roubo, a fala da vítima, quando coerente, como é o caso dos autos, merece credibilidade”.

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    O desembargador não mencionou o fato de que as vítimas nunca viram os rostos dos ladrões, nem os documentos e testemunhos apresentados pelos réus mostrando onde estavam no horário do crime. Ainda assim, o acórdão reconheceu um erro da juíza ao estabelecer as penas, diminuindo o tempo para todos: 16 anos e oito meses para Alex, 14 anos e três meses para Tiago e 11 anos e 11 meses para Victor Hugo.

    Outro lado

    A reportagem questionou o Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a imparcialidade no julgamento do caso e solicitou entrevista com a juíza Jane Rute Nalini Anderson e o desembargador Alberto Anderson Filho. Até o momento da publicação, não houve retorno.

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