Júris condenaram menos de 2% dos PMs que mataram na cidade de São Paulo

Foram apenas 20 condenações diante de 1.224 investigações concluídas entre 2015 e 2020 na capital paulista. Dados integram dissertação defendida na USP, que investiga atuação de jurados em julgamentos de policiais

Ilustração: Antonio Junião/Ponte Jornalismo

Policiais militares que se envolveram em mortes foram condenados por júris populares em apenas 20 casos de um universo de 1.224 investigações concluídas entre 2015 e 2020 na cidade de São Paulo.

Os dados, inéditos, foram levantados pela advogada e pesquisadora Debora Nachmanowicz como parte da sua dissertação de mestrado intitulada “Assim o prometo”: um retrato sobre os jurados e o julgamento de policiais militares no Tribunal do Júri em São Paulo, aprovada na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) em setembro.

A Ponte foi convidada a assistir a defesa da banca e teve acesso ao material — que ainda será divulgado no repositório de trabalhos acadêmicos da USP.

De acordo com a pesquisa, quem lidera o número de condenações é o ex-soldado Eduardo Alexandre Miquelino, com quatro sentenças. Tido como “justiceiro” pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), contra ele recaíram ao menos 10 inquéritos por assassinatos ocorridos entre 2014 e 2015 na região do Capão Redondo e Jardim Herculano, na periferia da zona sul da capital paulista. Ele foi expulso da corporação em 2017, ano em que teve suas duas primeiras condenações num intervalo de 14 dias. Hoje, suas penas somam 46 anos de prisão.

Apenas quatro condenações foram relacionadas a policiais que mataram durante o serviço. Duas delas foram reportadas pela Ponte. Uma é a do ex-soldado Jefferson Alves de Souza, conhecido como “Negão da Madeira”, por matar a pauladas o estudante Gabriel Alberto Tadeu Paiva, de 16 anos, em 2017. Ele foi expulso da Polícia Militar no ano passado, depois que um novo júri foi realizado e o sentenciou a 18 anos de prisão.

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Outra é a do ex-soldado Francisco de Assis Pinheiro Silva, condenado a 12 anos de prisão pela morte do estudante universitário Matheus Santos de Freitas, 24. O jovem foi baleado dentro de uma escola estadual da região do Grajaú, periferia da zona sul paulistana, na véspera das eleições municipais de 2016. O ex-PM foi expulso da corporação porque omitiu o disparo feito contra a vítima e, na avaliação do Comando-Geral, atirou de forma desnecessária.

As demais condenações levantadas por Debora se referem a brigas e discussões em bares e eventos, feminicídio, discussões familiares, atuação de milícia e uma chacina — esta última em relação ao ex-soldado Gilberto Eric Rodrigues, que foi sentenciado a 125 anos de prisão por um ataque que deixou sete mortos em 2013, episódio que ficou conhecido como Chacina do Jardim Rosana, na região do Campo Limpo, também na zona sul da cidade. Gilberto ainda será julgado em 2025, junto com outro ex-PM, pela morte do estudante Guilherme Guedes, 15, no bairro da Vila Clara, na zona sul, em 2020.

‘Palavra do PM tem mais força’

Para a pesquisadora, existe uma pressuposição — por parte dos jurados e do sistema de justiça como um todo — de legitimidade das ações policiais. Dos 39 casos em que PMs alegaram algum tipo de revide a um suspeito, em suposta situação de confronto e houve acusação por parte do Ministério Público, ocorreram 14 absolvições sumárias (quando são decretadas por um juiz que pode ter o entendimento de que o policial não matou ou participou da morte, ter atuado em legítima defesa etc., e que não segue para a fase de júri popular) e 14 absolvições pelo júri.

“A palavra do policial acaba tendo maior força, especialmente quanto ao ponto da legítima defesa”, explica Debora. “Por mais que existam casos com imagens, com vídeos, a argumentação da defesa e a palavra do policial de que seria uma situação de perigo em que ele estava ali, ou defendendo a si próprio ou a terceiros, acaba tendo relevância e força muito grandes para os jurados, para o juiz que vai decidir ou para o promotor nas alegações finais [última oportunidade de argumentar se o acusado deve ser absolvido ou condenado]”.

Desde 1996, cabe à Justiça Comum julgar crimes dolosos (com intenção) contra a vida praticados por policiais militares — que antes eram da competência da Justiça Militar.

A lei que mudou esse quadro é conhecida como Lei Hélio Bicudo em homenagem ao ex-deputado e defensor dos direitos humanos que denunciou o Esquadrão da Morte, grupo de extermínio formado por policiais na época da ditadura militar. Isso significa que se o tribunal de justiça comum entender estar configurado um crime doloso contra a vida, o juiz determina que esse policial seja levado a júri popular.

O júri é composto por membros da sociedade civil convocados para compor um conselho de sentença de sete jurados, que vai avaliar se o policial acusado por um crime como o homicídio doloso, por exemplo, deve ser condenado ou absolvido. O júri já acontecia e continua acontecendo em relação a pessoas que não são da carreira policial, caso também cometam crimes dolosos contra a vida.

Respaldo da sociedade?

Para a pesquisadora, no entanto, apesar dos números, a ideia de que o policial mata porque tem respaldo da sociedade para fazer isso, o que se refletiria no alto índice de absolvição no júri, não é uma verdade absoluta que se aplique a todos os casos.

Em um questionário que Debora fez a um grupo de jurados cujos e-mails foram obtidos junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), a maioria discordou totalmente de que policiais possam atirar, mesmo com risco de matar, em situações como:

  • assaltante armado fugindo sem disparar ou apontar arma para os policiais (32,8%);
  • suspeito armado fugindo de local movimentado sem disparar arma (41,6%);
  • policial que dá tiro de advertência para controlar discussão de rua (46,6%);
  • traficante armado vendendo drogas sem apontar arma para ninguém (38,6%);
  • suspeito de homicídio desarmado que tenta agredir policial para evitar ser preso (30,7%);
  • durante blitz policial, se a pessoa não atende ordem de parada e foge (32,9%).

Foram 1113 respostas de jurados da 1ª vara do Tribunal do Júri — dos quais 22% afirmaram já terem participado de julgamentos de policiais. O perfil majoritário desses respondentes é de mulheres (59,3%), brancas (56,3%), com idade entre 35 a 44 anos (30,8%), com ensino superior completo (37,8%) e renda média de R$ 3.701 mil a R$ 6 mil (27,6%). A maioria informou morar em bairros localizados na zona leste da cidade, como Itaquera (42 respostas), Tatuapé (31), São Miguel Paulista (24), Itaim Paulista
(22) e Penha (22), por exemplo.

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A cidade tem cinco varas de júri e a 1ª foi a que apresentou maior quantidade de processos de homicídio com réus PMs (1.106, o que equivale a 45,1% desse tipo de processo). A maior parte desse grupo também respondeu que teria “nenhum medo” de condenar policiais em julgamento (51,6%). Já 27,5% sinalizaram “um pouco de medo”, 14,2% “muito medo” e 6,4% não souberam responder

Como a dissertação buscou analisar as percepções dos jurados, um dos pontos que chamaram a atenção da pesquisadora foram as condições externas que podem ter influência na tomada de decisão deles.

Em outro questionário com 69 jurados que efetivamente integraram julgamentos de policiais e forneceram contato para participar da pesquisa, 57,2% responderam concordar totalmente e 15,41% concordar parcialmente com a afirmação “A plateia não deveria reagir (de qualquer maneira) ao que ocorre no julgamento”.

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Isso porque o controle da plateia vai depender do(a) juiz(a) de cada caso. Há os que avisam inicialmente que o público não pode se manifestar ou fazer registro visual, há os que não avisam e apenas repreendem alguma situação e há os que repreendem alguma situação apenas mediante provocação da defesa ou da acusação. Há, ainda, os que pedem que o público não se sente próximo aos jurados.

Debora assistiu a 17 júris e fez 11 entrevistas com jurados que integraram julgamentos de policiais. Algumas respostas, como essa, surgiram: “Acho muito incômodo não ser preservado o anonimato e estar cara a cara com os acusados e amigos dele. […] Percebi um certo receio de retaliações”.

Outras situações relatadas nas entrevistas é de jurados que criticam o fato de que a mesma saída do tribunal é usada por eles e pelos acusados. Ou, ainda, ter de pegar transporte público para casa após o julgamento e acabar encontrando o réu ou amigos e familiares dele, o que causa constrangimento. Para a pesquisadora, esses são indicativos de que os jurados não se sentem seguros para julgar, ainda que a maioria concorde totalmente (44,3%) que familiares e amigos do réu possam assistir ao julgamento.

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“A sensação de exposição que o jurado tem numa sessão plenária [julgamento] e o fato de que há muitos policiais nas plateias desses casos de grande repercussão acabam, de certa forma, influenciando. E podem dar essa impressão de que uma absolvição é uma legitimidade da ação policial sem que isso, na verdade, seja o que o jurado efetivamente pensa”, alerta.

Ela critica também o fato de que “algumas pessoas da plateia ficam de pé do lado dos jurados quando a defesa passa vídeos ou documentos do processo, por exemplo, para eles analisarem”.

Um exemplo em que isso pode ter acontecido foi o júri de dois policiais militares absolvidos após matarem dois jovens suspeitos de roubo com 30 tiros. Nesse julgamento que a pesquisadora acompanhou — assim como a reportagem da Ponte —, os assentos da plateia eram muito próximos dos jurados e estavam cheios de policiais à paisana (sem farda). Era possível ouvir parte deles conversando alto em alguns momentos. Quando o juiz anunciou o resultado do julgamento, os policiais da plateia gritaram e comemoraram como numa final de partida de futebol.

Alguns chegaram a registrar em vídeo a comemoração, o que não é autorizado, e não houve repreensão por parte do juiz. Na ocasião, Debora tentou pedir os contatos dos jurados para a pesquisa, mas nenhum deles aceitou participar.

Foto de plenário da 1ª vara do Tribunal do Júri similar ao utilizado no caso dos 30 tiros. Marcação dos assentos foi feita pela reportagem | Foto: Debora Nachmanowicz

A performance de advogados e promotores também conta, já que os jurados não têm acesso à íntegra do processo, apenas ao que é apresentado a eles, e não existe uma preparação anterior como uma espécie de “manual do jurado”. Muitos têm receio de fazer perguntas ainda que de forma escrita por se sentirem expostos. “Se a pessoa é confusa, se fala baixo, se fala muito alto, grita, isso afeta a maneira como o jurado vai se apropriar daquele processo”, afirma Debora.

“Muitos deles [promotores, advogados ou defensores] vão trazer elementos externos, elementos emocionais. Advogados de policiais fazem isso com constância: trazem as suas experiências próprias como policiais porque praticamente todos eles eram policiais antes de se tornarem advogados e os que não eram policiais têm familiares policiais”.

Por outro lado, ao contrário do que se imagina, os jurados não são totalmente leigos. No questionário que fez por e-mail, as áreas de trabalho mais frequentes entre eles foram jurídico (23,3%), educação (21,9%), administração/contabilidade (14%) e saúde (8,6%). Há uma pequena diferença entre os que trabalham no setor privado (31,7%) e como funcionários públicos (29,9%).

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Para Debora Nachmanowicz, o resultado final dos julgamentos que envolvem policiais militares não é de responsabilidade exclusiva dos jurados. “Eu entendo que é preciso manter esses casos no tribunal de júri, mas ter uma maior supervisão das fases iniciais. Ou seja, do inquérito, da fase da denúncia, quando o juiz vai decidir se vai ser julgado pelo júri”, diz.

É o sistema de justiça que faz esse primeiro filtro do que vai chegar à fase final, que é o júri. Dos 1.224 inquéritos concluídos, as acusações feitas pelo Ministério Público — que é responsável pelo controle externo da atividade policial — representaram 9,9%. Entre as 122 acusações, em 49,1% o tribunal entendeu que o caso deveria ir a júri.

Embora o foco da pesquisadora não tenha sido o papel da Polícia Civil, do MP e dos juízes, ela entende que existe uma dificuldade do sistema de justiça em ir além da palavra dos policiais — especialmente se os casos não têm outras testemunhas que não sejam os próprios policiais, além da necessidade de se discutir o significado de legítima defesa, um tanto abstrato, e de uma cultura de enfrentamento.

“Isso não significa dizer que a polícia não corra riscos e não acabe matando pessoas em legítima defesa, mas a gente vê que os casos que chegam à mídia têm muita arbitrariedade, muita irresponsabilidade”, avalia.

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