Justiça absolve PMs e acusados de tentativa de homicídio contra empresário de pirâmide de bitcoin

Apesar de três dos quatro réus, incluindo PMs, terem afirmado que fizeram disparos contra BMW de vítima, jurados entenderam que não deram tiros; golpe financeiro motivou homens a irem atrás de empresário em Atibaia (SP), em agosto de 2021

BMW blindada de Eneas de Lima Tomaz atingida por disparos feitos por três dos quatro acusados por tentativa de homicídio em agosto de 2021 | Foto: Polícia Científica

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo absolveu os policiais militares Claudemir Bomfim Alves, 37, e Ricardo Botelho da Mota, 29, e os empresários Felipe de Souza Torresi e Felipe Alves de Jesus, ambos com 26 anos, por tentativa de homicídio qualificado por motivo fútil contra o empresário Eneas de Lima Tomaz, 35. Torresi também foi inocentado da acusação de falsa identidade por ter apresentado uma carteira de “delegado dos direitos humanos” no momento da prisão, ocorrida em 8 de agosto de 2021 na cidade de Atibaia, interior de São Paulo.

Os quatro tinham sido presos em flagrante ao terem perseguido Eneas Tomaz, que, até aquela data, estava foragido por conta de um mandado de prisão aberto em outubro de 2020 decorrente de um processo por crimes tributários, sobre um suposto esquema de pirâmide financeira, pelo qual responde no Tribunal de Justiça. Torresi teria perdido R$ 400 mil, e Alves de Jesus R$ 15 mil, em investimentos em criptomoedas com promessa de lucro.

Eles foram julgados por um Conselho de Sentença (grupo de sete jurados que formam um júri popular) em 19 de maio. O júri tinha cinco quesitos para avaliar em relação a cada acusado. O primeiro era “No dia 8 de agosto de 2021, por volta das 16 horas, na Estrada do Mingu, 500, Vila Dom Pedro, nesta cidade e Comarca, foram efetuados disparos de arma de fogo na direção de Eneas de Lima Tomaz, que se encontrava no interior de seu veículo e não chegou a ser atingido?“.

Como a maioria dos jurados votou “Não”, todas as demais questões foram automaticamente afastadas, já que o júri entendeu que não houve elementos concretos do principal crime (tentativa de homicídio) pelo qual todos foram denunciados. No entanto, Torresi e os dois PMs confirmaram durante o processo que atiraram contra a BMW de Eneas sob alegação de legítima defesa.

Exemplo da série de quesitos que os jurados avaliaram para cada um dos acusados. No caso dos PMs, a redação da última pergunta era se o crime foi cometido por eles por motivo torpe consistente em vingança pela vítima ter praticado golpe financeiro contra os dois Felipes | Foto: reprodução

A juíza Carolina Cheque de Freitas, da 2ª Vara Criminal do Foro de Atibaia, também entendeu que Felipe Torresi não teve a intenção de obter vantagem em proveito próprio porque os PMs já estavam detidos ao se apresentar como “delegado dos direitos humanos”. Os quatro foram soltos no mesmo dia, já que estavam presos preventivamente (por tempo indeterminado). Cabe recurso à decisão.

Os dois Felipes denunciaram ter sido vítimas de um golpe praticado por sócios da empresa Arbcrypto, que Eneas integra, e disseram que viram uma postagem no Instagram de que ele estava hospedado em um hotel no município e, segundo eles, queriam confirmar a presença dele no local para acionar a polícia e acompanhar a prisão. Alves de Jesus se hospedou no hotel e Torresi, acompanhado dos PMs, foi até o estabelecimento dizendo que havia um procurado pela Justiça. Funcionários estranharam a alegação e acionaram os policiais militares rodoviários Rangel Gomes e Alessandro Rizzardi, que foram informados que os ocupantes de um Toyota estavam fazendo disparos contra uma BMW.

Eneas teria percebido que estava sendo fotografado e monitorado e saiu do estabelecimento em uma BMW blindada. O grupo passou a persegui-lo: Torresi, Claudemir e Ricardo em um Toyota, enquanto Alves de Jesus estava em um Ônix branco, ainda de acordo com a Polícia Civil. As versões acabaram se contradizendo, pois no decorrer do processo, Torresi disse que foi atrás de Eneas sozinho no Toyota e que utilizou a arma de Claudemir, “esquecida” no carro, para disparar contra Eneas — que, segundo ele, tentou jogar a BMW contra ele, o que Eneas negou — e que tinha ciência de que o veículo era blindado e, por isso, a vítima não se feriria, sendo que os tiros eram para afastá-lo.

Os PMs junto com Alves de Jesus foram atrás em um Ônix. Claudemir e Ricardo também fizeram disparos com a mesma justificativa de legítima defesa e relataram que estavam no local apenas para dar “apoio” a Torresi, que teria dito ao PM Claudemir que tinha “medo” de Eneas por ele andar armado e ter registrado um boletim de ocorrência um mês antes por supostas ameaças que teria recebido. Na ocasião, não foi encontrada arma com Eneas. Os quatro acusados disseram que o empresário teria batido no Toyota e no Ônix enquanto Eneas relata que foram os réus que investiram contra o seu veículo.

Toyolta Fielder dirigido por Felipe Torresi (à direita) e Ônix ocupado por Felipe Alves de Jesus e pelos PMs Claudemir Bomfim e Ricardo Botelho (à esquerda) | Foto: reprodução/Policia Científica

Os policiais rodoviários relataram que avistaram a BMW próximo à Rodovia D. Pedro I, para dentro de uma propriedade rural, da qual desceu Eneas dizendo que estavam tentando matá-lo e que estavam armados, apontando para um homem que se aproximava, que seria Claudemir, que estava à paisana e portava uma pistola .40, de uso exclusivo das forças de segurança pública. Segundo os policiais rodoviários, a arma estava quente, sinal de que tinha sido usada recentemente. O empresário confirmou que tinha um mandado de prisão aberto com ele por crime financeiro e que não se feriu porque o veículo que dirigia é blindado.

Em seguida, chegou Felipe Torresi, que teria se identificado como delegado de polícia. Os policiais rodoviários disseram que, ao solicitarem a carteira funcional de identificação, Torresi apresentou uma carteira de “delegado federal dos direitos humanos”, e disse que tentava interceder e que estava investigando o caso. O soldado Ricardo Botelho da Mota, que também se aproximou, foi detido com uma pistola Glock da corporação e um revólver particular, assim como Felipe Alves de Jesus, que não estava armado. Torresi declarou durante as audiências que não tentou se passar por delegado de polícia e que os policiais rodoviários teriam interpretado de forma errada a sua atribuição pois avisou a um escrivão do 47º DP (Capão Redondo) que havia tido informações sobre o paradeiro do empresário e apenas queria garantir que Eneas tivesse a prisão cumprida. No processo, não consta nenhum depoimento de integrantes dessa delegacia.

Reprodução da carteira de delegado federal dos direitos humanos apresentada por Felipe Torresi (à direita) e “distintivo” da carteira (à esquerda) | Foto: reprodução/Polícia Cientifíca

A carteira de “delegado federal de direitos humanos” apresentada por Torresi consta estar vinculada a uma associação chamada Federação Brasileira de Defesa dos Direitos Humanos (FBDH), cuja finalidade, segundo o site, é “mediar conflitos, promover, proteger e defender os direitos da pessoa humana” e que não tem poder de polícia. No documento, é apontado que a associação é qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública. A reportagem consultou o CNPJ da associação no site do ministério, mas não encontrou resultados. Já pela consulta do Serviço Eletrônico de Informações da pasta, o processo administrativo sobre a associação mostra conclusão da verificação administrativa de qualificação como OSCIP em dezembro de 2021, mas não apresenta documentos. Procuramos a assessoria do ministério, mas não houve resposta.

Pela insígnia do distintivo ser parecido com o logo da Organização das Nações Unidas (ONU), perguntamos à assessoria se havia tinha algum vínculo com a associação. A ONU disse que a Federação não consta na lista pública de OSCIPs vinculadas. A Ponte procurou a FBDH, mas não teve retorno.

Já o Ministério Público Estadual entrou com apelação para que um novo julgamento seja realizado por entender que júri decidiu contra as provas, tanto pela questão de legítima defesa pelos réus estarem armados e a vítima não, quanto pela ação dos quatro a irem a Atibaia. “As próprias condições de perseguição e disparos afastam também a narrativa da defesa de que a vítima deveria na verdade se entregar, ciente de que havia mandado de prisão contra si. Ora, nenhum deles teve qualquer conduta funcional, a indicar estarem em exercício de função pública. No mais, quem cumpre mandado é a Polícia Civil, que pode até ter apoio da Polícia Militar, mas a regra é a utilização de veículos caracterizados, e não civis”, argumentou a promotora Regina Barbara de Camargo Murad.

Já as defesas, que são de advogados diferentes para cada um dos réus, argumentaram que Eneas tentou jogar o veículo blindado contra eles, não tendo como outra opção de defesa efetuar disparos e que queriam ajudar a polícia. “Ficou claro, afastando a materialidade de crime de homicídio, até mesmo por se tratar de crime impossível, diante a blindagem do veículo, bem como os disparos terem sidos efetuados apenas com o condão de parar o veiculo que se tratava de um tanque de guerra, por força de sua blindagem sendo que tais disparos, jamais atingiria a vitima ficando claro que o nível da blindagem, aguenta disparos até mesmo de fuzil”, escreveu o advogado Francisco Carlos Bueno, que representa Felipe Alves de Jesus.

E pontuaram que não houve intenção de matar o empresário “pois restou claro que os disparos efetuados pelo Apelado [Torresi] não foram em direção à vítima e com o dolo de matar, mas sim para salvar sua vida, em direção ao carro”, justificaram Alexandre J. Budemberg Filho e Glauber Bez.

O soldado Claudemir e o sargento Ricardo também respondem, na Justiça Militar, inquérito por suspeita de peculato, que é quando um funcionário público se apropria de um bem do Estado para benefício próprio, e que ainda não foi concluído. Na ocasião, além de os dois estarem com armas da PM, foram apreendidos dois espargidores (spray de pimenta), sendo um da corporação, e munições lacrimogêneas, elastômeros (balas de borracha) e carregadores para pistola .40 com Claudemir. A dupla argumentou no processo que carregava as armas da corporação consigo porque não tinham locais seguros para deixar por morarem em áreas periféricas. “Os aspergidores (sic) de gás de pimenta são de carga e responsabilidade dos policiais e, portanto, estavam sob sua responsabilidade até mesmo porque possuem autorização para ter em sua posse, da mesma forma é um utensilio que obrigatoriamente estão acoplados em seus materiais de trabalho”, argumentaram os advogados Renato Soares e Mauro Ribas.

Pirâmide financeira

Em outubro de 2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo acolheu a denúncia e o pedido de prisão preventiva da 5ª Promotoria de Barueri contra Eneas e outros três homens acusados de de crimes contra a economia popular, induzir o consumidor ou usuário a erro e organização criminosa. Ao menos 10 pessoas, incluindo Felipe Torresi, denunciaram à delegacia da cidade que Eneas e outro empresário se apresentavam, em fevereiro de 2019, como sócios de uma empresa denomina Arbcrypto, que seria especializada em investimentos e captação de recursos de operações com criptomoedas a qual geraria, por meio do site, uma conta bancária em dólar para o investidor em um “escritório virtual”. A promessa, segundo eles, seria de uma rentabilidade de até 2,5% e os recursos deveriam ser depositados em contas bancárias da empresa Rickinvest.

Além disso, denunciam que eram ofertados prêmios, como carros, que nunca eram entregues, caso os clientes convidassem novas pessoas para participar. Um dos empresários acusados seria responsável pela transação. Desde agosto daquele ano, as vítimas afirmam que não receberam os valores prometidos e que tinham indícios de ser um esquema de pirâmide financeira, um esquema fraudulento em que a pessoa paga uma taxa e tem que convidar novas pessoas para participar a fim de obter ganhos.

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À Polícia Civil, um desenvolvedor da plataforma do site da empresa disse que foram cadastradas 50 mil pessoas, com faturamento superior a 10 milhões de dólares. A Justiça também determinou o bloqueio de bens e quebra de sigilo bancário dos acusados. O processo segue em segredo de justiça.

Eneas e outro empresário também respondem a processo por situação parecida na Comarca de Ribeirão Preto. O ex-jogador Cafu chegou a mover ação judicial com pedido de indenização por danos morais contra a Arbcrypto ao alegar que teve a sua imagem utilizada em propagandas da empresa, mas cujo pagamento não foi cumprido, além de ter sido associado como integrante do esquema.

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