Para juíza, não foi possível comprovar de quem partiu disparo que atingiu menino dentro de casa, no Rio de Janeiro, em 2020, e agentes agiram em legítima defesa; Ministério Público diz que vai recorrer de decisão
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) absolveu, nesta terça-feira (9/7), os três policiais civis que foram acusados pela morte do estudante João Pedro Matos Pinto. O adolescente foi morto aos 14 anos com um tiro na barriga dentro da casa de parentes, enquanto brincava com um primo, após uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em 2020.
A juíza Juliana Bessa Ferraz Krykhtine, da 4ª Vara Criminal de São Gonçalo, descreveu que, apesar dos depoimentos de testemunhas, “ninguém consegue afirmar de onde partiu o único tiro que alvejou a vítima”, nem mesmo o laudo de confronto balístico, e considerou que os policiais agiram em legítima defesa.
Ela acatou a versão de que os agentes foram recebidos a tiros por traficantes quando entraram na área externa da residência do menino. “A agressão sofrida pelos réus era atual, face aos disparos efetuados em sua direção, bem como o lançamento dos explosivos, além do que os mesmos se utilizaram dos meios necessários que possuíam para repelí-la. A prova produzida nos autos não deixa dúvidas que a conduta dos réus se deu em legítima defesa e como tal deve ser reconhecida”, escreveu na sentença.
A decisão é passível de recurso. Em maio, quando a morte do adolescente completou quatro anos, a professora Rafaela Matos, 40, mãe de João Pedro, falou que a expectativa da família era de que os policiais fossem levados a júri popular. “A gente, enquanto família, não espera que nenhuma outra família sofra da forma que nós sofremos. Mas realmente isso não aconteceu”, desabafou na ocasião. “Depois do João, tiveram muitos outros jovens que já perderam suas vidas pelo Estado e não vimos nenhuma mudança”.
A data da morte do adolescente passou, neste ano, a fazer parte do calendário oficial do estado do Rio de Janeiro como “Dia de Luta Jovem Preto Vivo” a fim de que sejam feitas campanhas e eventos que discutam sobre racismo, genocídio da população negra e periférica e encarceramento em massa
À Ponte, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) disse que vai recorrer da decisão.
Relembre o caso
João Pedro foi baleado dentro da casa de parentes, em São Gonçalo, na Baixada Fluminense. enquanto brincava. O adolescente chegou a ficar horas desaparecido após ser resgatado por um helicóptero do Corpo de Bombeiros. A família só o encontrou no dia seguinte, no Instituto Médico Legal de Tribobó, na mesma cidade. Já nessa épca, a família denunciava a alteração de provas. “Os policiais invadiram a casa”, declarou na ocasião à Ponte o autônomo Neilton Pinto, 41, pai de João Pedro.
“Se tivesse bandido para o lado, como alegaram que estava no quintal, era para o helicóptero dar suporte para a pessoa não fugir e cercarem a casa. Entraram com morador, já atirando”, denunciou ele. “Como quem pulou no quintal fugiu com vários helicópteros dando rasante? Forjaram muitas coisas ali dentro [da casa]. Fizeram uma bobagem, a casa está cravada de bala. Se aquilo foi fora da casa, o tiroteio, por que dentro estava cravado de bala?”.
O jornal Extra apontou, em agosto daquele ano, uma série de falhas na perícia e irregularidades na cadeia de custódia da investigação, como transporte inadequado de provas, acesso às evidências pelos investigados e entrega das armas dos agentes uma semana depois do crime. Também houve mudança de depoimento por parte dos policiais civis que atuaram na operação. Segundo o Extra, que acessou o inquérito, os agentes disseram primeiro que deram, ao total, 23 disparos. Uma semana depois, mudaram para 64.
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A Polícia Civil entendeu que os policiais praticaram homicídio culposo (quando não há intenção de matar), mas o (MP-RJ) discordou e apresentou a denúncia por homicídio qualificado e fraude processual. A promotoria não pediu a prisão dos agentes, mas solicitou o afastamento das atividades na Polícia Civil e a não aproximação de testemunhas.
Segundo os promotores Paulo Roberto Mello Cunha Jr., Allana Alves Costa Poubel e Andréa Rodrigues Amin, os agentes Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister, lotados na Coordenadoria de Recursos Especiais (Core), atuaram por motivo torpe (desprezível) e com recurso que dificultou a defesa da vítima por terem efetuado diversos disparos contra um grupo de jovens desarmados, atingindo o menino, e, depois, de manipular a cena do crime para se eximirem da responsabilidade.
Os promotores afirmam que o trio plantou artefatos explosivos, uma pistola Glock calibre 9 mm, além de posicionar uma escada “junto ao muro dos fundos do imóvel em questão” e produzir “marcas de disparos de arma de fogo junto ao portão da garagem” para simular confronto.
Os três estavam em um helicóptero e desceram até um campo de futebol no bairro Itaoca, juntamente com o delegado e coordenador da Core Sergio Sahione Ferreira e o policial civil Jair Correia Ribeiro, “com a intenção de interceptar homens armados que teriam sido observados” durante o sobrevoo fugindo da residência atribuída a Ricardo Severo – conhecido como Faustão, um dos integrantes da facção criminosa Comando Vermelho. De acordo com a polícia, o objetivo da operação era cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão.
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A pedido do MP-RJ, o tribunal determinou que os policiais fossem afastados das atividades de polícia e não pudessem acessar as dependências da corporação, não ter nenhum tipo de contato com a família da vítima ou com testemunhas, nem se ausentar da cidade por mais de 30 dias sem autorização, além de comparecer mensalmente em juízo. Em caso de descumprimento, o Tribunal de Justiça poderia decretar a prisão preventiva (sem tempo determinado).
Em janeiro deste ano, a promotora Silvia Regina Aquino do Amaral pediu que os policiais fossem pronunciados, ou seja, levados a júri popular. Ela argumentou que “os acusados assumiram o risco de matar inocentes, visto que efetuaram disparos de arma de fogo em um imóvel que nem sequer tinham visibilidade do seu interior”.
Durante o processo, um dos principais argumentos dos advogados dos policiais era de que o fragmento de projétil retirado do adolescente não permitiu verificar de qual arma partiu o disparo.
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O caso de João Pedro, morto dentro de casa no auge da pandemia, tomou tamanha repercussão que foi citado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635, como ficou conhecida a ADPF Favelas, em que o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), restringiu em junho de 2020 a realização de operações policiais em comunidades, salvo em casos excepcionais. A ação virou uma demanda por um plano de redução da letalidade policial no Rio de Janeiro, que ainda não se efetivou.
Em outubro de 2023, a 8ª Vara Cível da Vara de São Gonçalo do TJRJ condenou o governo estadual a pagar R$ 300 mil de indenização por danos morais, além de dois terços de salário mínimo de pensão aos pais e à irmã mais de nova de João Pedro até a data que ele completaria 65 anos, mas não acatou os pedidos de oferecimento de auxílio psicológico nem de que o Estado deveria fazer um pedido formal de desculpas.