Justiça aceita falso flagrante da PM contra jovens negros: ‘acho que foi racismo’, diz mãe

Luiz Henrique Brito e Tauã Ribeiro foram detidos ilegalmente pela PM e levados a delegacia, onde foram alvo de um reconhecimento irregular. ‘Polícia não tem nenhum elemento contra eles’, diz especialista. Amigo branco que estava com eles foi liberado

Luiz Henrique Policarpo de Brito, à direita, e Tauã Ribeiro dos Santos à esquerda estão presos desde a madrugada do dia 15 de janeiro | Foto: Reprodução/Facebook

A madrugada de 15 de janeiro virou um pesadelo para Luiz Henrique Policarpo de Brito e Tauã Ribeiro dos Santos, ambos de 20 anos, negros, donos de lava-rápidos e moradores da periferia na zona oeste da cidade de São Paulo. Suspeitos do roubo de um carro, os dois foram detidos por policiais militares durante uma falsa prisão em flagrante que, apesar das irregularidades, foi aceita tanto pelo Ministério Público Estadual como pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Por isso, Luiz e Tauã seguem presos.

Os dois, junto com mais um amigo, o cozinheiro Matheus Estenio Alves, 22, foram abordados pela PM apenas por estarem próximos ao local onde um carro roubado havia sido encontrado. Mesmo sem ter provas contra eles, os policiais militares levaram os três jovens até o 72º DP (Vila Penteado), com a justificativa de que se tratava de uma “prisão em flagrante”.

Somente na delegacia, para onde os três foram levados ilegalmente, é que apareceu a única prova usada contra eles: um reconhecimento feito pela vítima do roubo, que descumpriu as regras previstas no Código de Processo Penal. É que, além de colocar os suspeitos juntos diante da vítima, o reconhecimento formal, no DP, teria repetido um outro reconhecimento que já havia sido feito na rua e que não consta dos autos, mas que foi relatado à Ponte por Matheus.

Único branco entre os três suspeitos, Matheus acabou liberado, enquanto seus amigos, negros, foram autuados por roubo. “É uma situação muito difícil, e acho que foi racismo”, afirma Alexandrina de Jesus, mãe de Luiz, que duvida da versão policial. Ela conta que sente muito a falta do filho, que morava com ela.

Falso flagrante

À Ponte, Matheus deu sua versão sobre o que aconteceu na noite em que seus amigos foram presos. O cozinheiro relata que tinha comprado seu primeiro carro, um Volkswagen Polo, e Luiz, único dos três que sabia dirigir, havia combinado de lhe dar uma aula informal de direção em um lugar conhecido como Retão, na Rua Professor Onesimo Silveira, no Jardim Pirituba.

Segundo Matheus, Luiz e Tauã, após sair do trabalho, encontraram com ele em sua casa e foram dali para o Retão, no início da madrugada do dia 15. Por volta de 1h, antes mesmo de começarem as aulas de direção, foram abordados por policiais militares. “O Luiz desceu do volante para dar lugar para mim e a gente já tomou um enquadro da Força Tática. A gente achou que fosse um procedimento normal”, lembra.

Os policiais que abordaram os três jovens eram Alessandro Floriano da Costa Scamilha e Thiago Vicente Bonfim dos Santos, do 18º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), e estavam em busca dos suspeitos de roubarem um Chevrolet Onix, de acordo com o boletim de ocorrência registrado no 72º DP (Vila Penteado) pelo delegado Anselmo Carvalho Santalena.

O dono do Onix havia procurado um batalhão da PM e contado que havia sido abordado em um semáforo da Rodovia Raposo Tavares por três motos, com duas pessoas em cada. Três dos criminosos, um deles com uma arma de fogo, entraram no carro e o obrigaram a dirigir. Os criminosos levaram o celular da vítima e a obrigaram a fazer uma transferência bancária, via Pix, no valor de R$ 5.000. Segundo os policiais, a vítima teria descrito dois dos ladrões como “um homem negro, vestindo uma camiseta azul, que segurava uma arma de fogo do tipo revólver, e outro pardo, com um penteado bem característico (cabelo alto, penteado para trás)”. O boletim não informa o horário do crime.

Em patrulhamento pelo bairro, os policiais encontram o Onix abandonado na Avenida Nelson Palma Travassos e, a cerca de 500 metros dali, abordaram os três jovens negros que estavam no Retão. Segundo Matheus, os policiais fizeram perguntas a ele, Luiz e Tauã e depois tiraram fotos dos jovens. “Eles falaram para aguardar, depois para a gente ajoelhar e nos algemaram. Eles disseram: ‘teve um roubo de um Onix duas ruas acima, vocês são suspeitos e a vítima reconheceu os dois [Luiz e Tauã]”.

Os jovens foram encaminhados até o local onde o carro da vítima estava. Chegando lá, Matheus diz que os policiais mandaram os três fecharem os olhos e pediram para que uma pessoa confirmasse se eram os suspeitos. Esse reconhecimento informal, descrito pelo cozinheiro, não foi informado pelos policiais militares nos registros oficiais.

Em seguida, os PMs levaram os três, contra sua vontade, para o 72º DP. Segundo a advogada criminal Débora Nachmanowicz de Lima, que analisou o processo judicial a pedido da Ponte, os policiais agiram fora da lei ao levar os jovens à delegacia. “É como se eles tivessem sido detidos para uma averiguação, o que não pode. Os policiais não tinham uma investigação contra eles, ou seja, não tinha nenhum elemento ali que indicava que eles poderiam estar envolvidos”, afirma.

O delegado Anselmo Carvalho Santalena não viu ilegalidade da detenção dos jovens e aceitou que se tratava de uma prisão em flagrante, quando um suspeito é detido logo após praticar a infração. Para Débora, é interpretação sem sentido. “Eles não foram encontrados cometendo o crime, não foram encontrados logo após cometer o crime, tanto que o BO fala em ‘poucas horas’. Eles não foram perseguidos e nem foram encontrados com objetos, arma”, diz.

Durante a madrugada, no 72º DP, Matheus, Luiz e Tauã participaram de um reconhecimento com outros dois homens, contrariando o que é recomendado pelo artigo 226 do Código de Processo Penal que diz que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança”. O documento não informa se a vítima descreveu as características dos suspeitos antes de fazer o reconhecimento, como prevê a lei, apenas que o dono do carro roubado reconheceu “sem sombra de dúvidas” Luiz e Tauã, que acabaram presos “em flagrante”.

“Na delegacia, submeteram os jovens a um reconhecimento completamente fora dos requisitos da lei”, afirma Débora. Segundo a advogada criminalista, cada um dos suspeitos deveria ter sido apresentado separado dos amigos e ao lado de pessoas parecidas.

“A gente implorou, tentamos provar de todos os jeitos que não era a gente que estava envolvido nisso. A gente queria mostrar áudio, queria mostrar que os meninos tinham acabado de chegar do trabalho. Foi um choque terrível para a gente, só a gente sabe o que sofremos esse dia. Foram sete horas presos na mão da polícia”, lamenta Matheus, que seguiu sendo investigado no caso.

Sem a realização de uma audiência de custódia presencial, por conta de uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça no período de pandemia, o Ministério Público e a Defensoria Pública se manifestaram por escrito. A promotora Juliana Carosini considerou que “o procedimento mostra-se formalmente em ordem, não havendo ilicitude ou ilegalidade”. Sem entrar no mérito do crime, o defensor público Marcus Vinicius Ribeiro limitou-se a pedir a liberdade provisória dos jovens por terem residência fixa e serem menores de 21 anos.

A juíza Débora de Oliveira Ribeiro, do Tribunal de Justiça de São Paulo, homologou a prisão em flagrante de Luiz e Tauã e aceitou o pedido da promotora, convertendo a prisão em preventiva (sem prazo). “O auto de prisão em flagrante encontra-se formalmente em ordem, não havendo nulidades ou irregularidades a serem declaradas ou sanadas”.

“A gente não tem um flagrante e só por isso a decisão deveria ser pelo relaxamento da prisão e não só pela liberdade provisória”, critica a advogada criminal Débora Nachmanowicz de Lima, ouvida pela Ponte. Para ela, a Polícia Civil não cumpriu seu papel de investigar o crime, já que não solicitou a perícia papiloscópica (para identificar impressões digitais) no carro da vítima. “No mundo ideal, a defesa não tem que provar a inocência, a acusação que tem que provar que eles são culpados. Mas a gente sabe que, na nossa realidade de prisão seletiva, a pessoa tem que se provar inocente. Então, eles não pediram a perícia do carro roubado, de acordo com o BO, que é incompleto e não fala como o roubo acabou e se eles levaram o carro”, destaca.

Na visão da advogada, era possível fazer uma investigação a partir do acesso às câmeras de segurança em estabelecimentos da Raposo Tavares, da rua onde pararam o carro e até do local em que Luiz e Tauã foram abordados. “A polícia segue batendo metas”, critica. “Encontraram os meninos novos, na periferia, dirigindo à noite e já utilizaram, nas palavras da [pesquisadora] Jessica da Mata, a política do enquadro. Usa-se uma tática punitivista mesmo sem nenhuma atitude suspeita, simplesmente abordaram”, analisa.

Desde então, Luiz e Tauã seguem presos no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros. A advogada Helena de Jesus, que representa Luiz, entrou com um pedido para que empresas e condomínios próximos aos locais por onde os rapazes passaram apresentassem as imagens das câmeras de segurança. O Ministério Público foi contra o pedido da defesa e a juíza Adriana Barrea negou a solicitação. No dia 25, o MP ofereceu denúncia contra os jovens e, agora, o caso tramita em segredo de justiça.

‘Foram condenados pela cor, pela raça’

“A gente está agora tentando entender como isso aconteceu”, critica Thayliane dos Santos Neiva, irmão de Tauã. À Ponte, ela afirma que o irmão é inocente e lamenta a forma e a rapidez como tudo aconteceu. “Ele lavava carro, moto e usava o dinheiro para ele comer, mais essas coisas, porque ele mora com a minha mãe e ela ainda é responsável mesmo ele já sendo de maior. Ela está despedaçada, tem chorado bastante”, conta.

Prints mostram o pedido de esfirra feito por Tauã, por volta das 23h, e o recibo do pagamento feito no posto de gasolina, às 00h. | Foto: arquivo pessoal

Thayliane diz que, antes de Tauã se encontrar com Matheus, ele tinha ido na casa de um outro amigo junto com o Luiz e que eles saíram de lá por volta das 22h.  Eles foram até o lava-rápido do Tauã, onde pediram esfirras por WhatsApp, e somente depois foram para o Retão. “Foi tudo muito rápido, eles foram abordados, foram presos, tiveram a prisão preventiva decretada. Não conseguimos ver e nem ter contato com eles”.

Tanto a defesa de Tauã quanto a de Luiz apresentaram prints do pedido de comida, o comprovante de pagamento do posto de gasolina e imagens das câmeras de segurança das ruas que eles passaram para tentar entrar com um pedido de liberdade. Em uma das imagens a que a família de Tauã teve acesso, a câmera de um estabelecimento da Rua Glória dos Dourados registrou às 00h37 o carro de Matheus a caminho do Retão. Como o boletim de ocorrência não informa o horário do roubo, fica difícil confrontar essas informações com a versão policial.

“Foi decepcionante porque acho uma injustiça muito grande com os dois. Quem conhece a gente e eles fica abismado com o que aconteceu. Meu irmão é brincalhão e o mais difícil para minha mãe é aceitar que ele está passando por essa situação e o medo de acontecer alguma coisa com ele lá dentro”, pontua. Passados quase 15 dias, ela conta que o advogado conseguiu visitá-lo e contou que Tauã chora muito e fala para a família “jamais duvidar deles, pois eles são inocentes”.

Ajude a Ponte!

Nas últimas semanas, o primo de Luiz, Michael Dias, que é mestrando em Educação, procurou ajuda de coletivos e buscou denunciar o caso em veículos de comunicação locais. “O Luiz queria fazer um curso de cabelereiro e é aquele garoto que ajuda todo mundo. São meninos que trabalham. A grande desgraça foi eles terem sido condenados pela cor, pela raça”, reforça. “É um desespero e a gente fica meio impotente. Eu pesquiso relações étnico-raciais e ao mesmo tempo que eu sei que poderia acontecer, e comigo também, a gente não imagina que vai acontecer com a nossa família. E quando acontece, o baque é maior. Eu me sinto impotente com meu primo.”

O que diz o governo

A reportagem questionou a Secretaria da Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) sobre a investigação do caso e o processo de reconhecimento. Também perguntou sobre as medidas adotadas para prevenir as prisões injustas. A SSP encaminhou o seguinte posicionamento:

Os dois foram presos em flagrante por roubo com emprego de arma de fogo, no dia 15 de janeiro, e levados ao 72º Distrito Policial (Vila Penteado). Na unidade policial, a vítima reconheceu pessoalmente a dupla, durante o procedimento de reconhecimento. O caso seguiu para o Poder Judiciário e, após análise do Ministério Público, as prisões foram convertidas em preventivas. As ações de policiamento preventivo e ostensivo, assim como as ações de polícia judiciária, foram intensificadas em Vila Penteado, a fim de ampliar a segurança da população e reduzir a incidência criminal, como casos de roubos e furtos. No ano de 2021, as ações de segurança resultaram na prisão de 1.689 criminosos, recuperação de 136 veículos roubados e furtados, retirada de 51 armas ilegais das ruas e 1.049 inquéritos policiais instaurados para investigação de crimes na área do 72° DP.

O que diz o Ministério Público

O Ministério Público também foi questionado pela Ponte. O órgão se manifestou por meio de nota:

“O Ministério Público de São Paulo, atento ao seu dever institucional e aos elementos que constam dos autos, ofereceu denúncia no presente caso, detalhando que: os fatos ocorreram em 15 de janeiro de 2022; a denúncia foi oferecida no mesmo dia da vista, em 25 de janeiro de 2022 – dada a máxima atenção à celeridade em hipótese de indiciados presos -, presentes indícios de autoria e prova da materialidade – prisão em função das características passadas à polícia; próxima do veículo recém roubado; com reconhecimento pessoal positivo e indubitável e sem, até o presente momento, qualquer manifestação diversa da r. Defesa pessoal ou técnica nos autos, senão pedido de imagens de câmeras de segurança do local, o que já foi objeto de concordância por parte do Ministério Público. As provas dos autos continuarão sendo observadas com o mesmo rigor.”

O que diz a Justiça

Já o Tribunal de Justiça de São Paulo, questionado pela reportagem em relação ao reconhecimento e os procedimentos adotados na prisão de Luis e Tauã, disse que “não se manifesta sobre questões jurisdicionais”. Segue a nota:

“Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente. O processo em questão tramita em segredo de justiça.”

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