Justiça concede liberdade a mulher trans que teve cabelo raspado na carceragem no PR

Decisão chega no mesmo dia em que Eloa Santos foi transferida pelo Deppen, contrariando determinação judicial de mantê-la em Arapongas; advogado diz que vontade dela foi ignorada

Eloa em foto anterior à prisão| Foto: Reprodução / Facebook

A 1ª Vara Criminal de Arapongas, norte do Paraná, concedeu, nesta quinta-feira (14/4), liberdade provisória a Eloa Santos, mulher transexual presa no dia 4 de abril suspeita do crime de roubo e que teve o cabelo raspado na carceragem, numa clara violação de sua identidade de gênero e de portaria do próprio Departamento de Polícia Penal (Deppen), antigo Depen.

A decisão, assinada pela juíza Raphaella Benetti da Cunha Rios, chega no mesmo dia em que Eloa sofreu nova violação de direitos, ao ser transferida para a carceragem de Rio Branco do Sul (região metropolitana de Curitiba) contra determinação da Justiça, como informa seu advogado Luiz Carlos de Lima Junior.

“O diretor do Deppen decidiu transferir ela para Rio Branco do Sul. Ontem mesmo, ela me relatou que não tinha interesse, porque não estava sendo maltratada pelos presos e a única pessoa que mora com ela no Paraná é daqui (Arapongas). Seria difícil poder ajudá-la”, detalha o advogado.

O Deppen garante que a transferência foi aceita por Eloa. A medida é uma resposta do órgão a manifestações de entidades de defesa dos direitos LGBTIQIA+, e divulgada pela Rede Lume na última segunda-feira (11/4). O Centro de Custódia Provisória de Mulheres e Transgêneros e Estudos da Violência do Paraná, em Rio Branco do Sul, é referência em atendimento a esta população. Porém, Eloa, natural do estado do estado do Pará, não tem parentes no Paraná. Sua única ligação na região é com uma amiga, com quem divide a casa em Arapongas.

A partir da vontade expressa pela cliente, Lima Junior pediu à Justiça a suspensão da transferência, o que foi acatado pela juíza em decisão expedida nesta quarta-feira (13/4). “Oficie-se com urgência a Cadeia Pública local, solicitando que eventual transferência seja realizada apenas após a análise do pedido formulado nestes autos”, escreveu a magistrada, em referência ao pedido de liberdade provisória.

“Em nenhum momento foi levado em conta a vontade da Eloa, que apenas queria providências contra seus agressores”, afirma o advogado.

Agora, diante da soltura e com Eloa em Rio Branco do Sul, Lima Junior questiona quem será responsabilizado pelo descumprimento da determinação judicial que impedia a transferência. “Agora quem vai ser responsável de trazer ela de lá, se tinha ordem para ela ficar aqui até o julgamento? Se o Deppen tivesse respeitado a vontade e a ordem da juíza, hoje Eloa já dormiria em casa”, ressalta.

A soltura deve ocorrer com uso de tornozeleira eletrônica. Eloa é ré primária e foi presa em flagrante sob a suspeita de roubar uma mulher. O Ministério Público se manifestou contrário à liberdade provisória. A juíza Raphaella Rios, no entanto, enxergou violações aos direitos humanos de Eloa.

“Noutro lado, tenho muito respeito pela vítima do delito ora aputado na ação principal, completamente olvidada no âmbito das correntes manifestações da mídia e dos órgãos representativos correspondentes. Ocorre que, tenho em minhas mãos situação possivelmente atentatória aos direitos humanos da requerente, que poderá ter desdobramentos ainda piores dos que já ocorreram”, escreveu na decisão.

O advogado Lima Junior ressalta que, antes mesmo de o caso vir à tona, na última segunda-feira, já haviam sido tomadas providências quanto à responsbilização dos agressores de Eloa – especialmente os responsáveis pelo corte de cabelo. Na audiência de custódia, após ouvir seus relatos, a juíza solicitou esclarecimentos à autoridade policial em relação às denúncias de ofensas transfóbicas, bem como do motivo para o corte de cabelo, atentando para o determinado na Resolução 348/2020 do Conselho Nacional de Justiça, que garante o respeito ao gênero autodeclarado.

Na decisão de soltura, datada de hoje, no entanto, a juíza informa que ainda não recebeu resposta ou manifestação de nenhuma das autoridades competentes.

Decisão chegou após transferência, diz Regional do Deppen

Em resposta a questionamento da Rede Lume, o Departamento de Polícia Penal (Deppen), antigo Depen, enviou posicionamento, por e-mail, às 17h48 desta quinta-feira, em que afirma não ter sido notificado, até aquele momento, da decisão judicial contrária ao translado de Eloa Santos. O gerente regional do departamento, Reginaldo Peixoto, no entanto, conta que esteve com Eloa e com uma ativista dos direitos da população trans e travesti ontem e que a própria detida teria concordado com a transferência.

Ele admite ter tomado conhecimento da decisão de não transferi-la, mas somente quando Eloa já havia deixado Arapongas. “Ela já não mais estava na Unidade”, garante.

Comissão da OAB/PR busca dar visibilidade a direitos

A Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil/Paraná (OAB/PR) acompanha o caso de Eloa Santos. Bárbara Helen Turek Rehbein, integrante da comissão, avalia que casos assim não são frequentes, mas podem ser subnotificados por falta de conhecimento dos direitos da comunidade LGBTQIA+.

“Percebo que como é uma resolução relativamente nova (Resolução 348/2020 do CNJ) muitas pessoas ainda não têm contato com o conteúdo e acabam não respeitando. O sistema prisional por si só é complicado. Então, quando não é subnitificado a gente tem uma atuação forte nesses casos. A própria população LGBTQIA+, quando é submetida ao cárcere, não tem noção dos seus direitos”, avalia.

Para Bárbara, falta dar visibilidade ao conteúdo dessas resoluções, bem como da portaria do próprio Deppen, de 2019. “Elas precisam saber que têm direito a um lugar digno, para preservar a identidade de gênero e a integridade física. Sendo o Brasil o país que mais mata transexuais e travestis no mundo, não seria diferente no sistema prisional”.

De acordo com a Resolução do CNJ, pessoas LGBTQIA+ têm o direito de escolher em qual unidade cumprirão pena, de acordo com suas identidades. “O direito dela, Eloa, de escolher não foi oportunizado. O crime que a pessoa cometeu e o tratamento que ela vai ter não têm ligação. Ela tem que cumprir a pena de forma digna”.

Desde que a violação de direitos de Eloa veio a público, ativistas e entidades de defesa dos direitos LGBtQIA+ pedem apuração dos fatos. Leia mais aqui.

Publicada originalmente na Rede Lume

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas