Preso desde abril, soldado Felipe Nunes mudou versão sobre “disparo acidental” e disse que atirou em legítima defesa contra Tiago Batan, morto em fevereiro em Paraibuna (SP). Câmeras de segurança registraram a abordagem [veja vídeo]
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) condenou a 14 anos de prisão e à perda do cargo público o soldado Felipe Nunes dos Santos pela morte do ajudante-geral Tiago Henrique de Oliveira Batan, de 27 anos, agredido e baleado em uma abordagem policial durante o carnaval de rua de Paraibuna, no interior paulista, em fevereiro. O júri popular aconteceu nesta quarta-feira (11/12).
Os jurados reconheceram que o policial matou Tiago com emprego de arma de fogo de uso restrito, ou seja, de propriedade da corporação.
Na sentença, o juiz Pedro Flavio de Britto Costa Junior, ao determinar a pena a ser cumprida, descreveu que o soldado junto com seu colega de farda praticaram “covardes agressões físicas com tonfas [tipo de cassetete] contra a vítima e, logo em seguida, praticou o homicídio, com abuso de autoridade e fora dos limites do uso da força, outorgado pelo Estado”.
O magistrado ainda sustentou que Tiago, ao agredir os PMs, apenas havia se defendido dos “injustos ataques”. Ele determinou que a pena seja cumprida em regime fechado e que o soldado, preso desde abril, não poderá recorrer em liberdade. O juiz também decidiu pela perda do cargo de PM porque a pena é superior a quatro anos de prisão e “o réu cometeu o gravíssimo crime de homicídio qualificado no exercício de sua função pública, o que revela a nocividade de sua permanência no serviço público”.
À Ponte, o advogado Eduardo Camargo, que representa a família de Tiago, disse que “a justiça foi feita”.
O advogado Mauro Ribas, um dos que representam o soldado, informou que vai recorrer e pedir um novo julgamento. “A defesa entende que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos. Tem um vídeo no processo que demonstra que o Tiago Batan atingiu quatro socos na face do soldado Felipe logo antes de ele efetuar os disparos. Ou seja, ele efetuou os disparos em legítima defesa dele e do parceiro dele que também estava sendo agredido pelo Tiago Batan. Ele já tinha retirado a tonfa da mão do Felipe, ele estava extremamente alterado e foi necessário o disparo de arma de fogo”, declarou.
Relembre o caso
Tiago Batan foi morto em 11 de fevereiro após uma abordagem do soldado Felipe Nunes e do cabo Carlos Pedroso durante o carnaval de rua. Segundo a investigação da Polícia Militar, quatro pessoas, sendo três homens e uma mulher, disseram que os policiais foram chamados porque Tiago estaria alcoolizado e teria discutido com o namorado de uma mulher depois de assediá-la e dizer “essa eu queria provar”.
Esse momento não consta nos dois vídeos anexados no inquérito da Polícia Civil, provenientes de uma câmera de segurança do Mercado Municipal e outra da Prefeitura, localizadas próximo à Praça Manoel Antonio de Carvalho — que foram obtidas pela Ponte. Essas pessoas também não tinham sido formalmente ouvidas em delegacia nem em juízo.
No vídeo do mercado, é possível ver Tiago, sem camisa, caminhando pela rua. Ele para e vira de costas, parecendo ter sido chamado pelos PMs que estão mais atrás e caminham em sua direção. A câmera do mercado, que é móvel, amplia o enquadramento da imagem até onde os três estão.
Os três aparecem conversando, momento em que Tiago chega a levantar os dois braços para cima, com a camisa em uma das mãos. Nesse momento, o soldado Felipe Nunes bate com a tonfa (um tipo de cassetete) na altura da barriga do jovem. Tiago levanta os braços mais uma vez e Nunes o agride de novo. O cabo Carlos Pedroso também passa a agredi-lo com a tonfa.
É possível ver que Tiago tenta revidar com um soco e a câmera se movimenta novamente em direção a um poste, tirando o campo de visão do que acontece entre os três. A câmera da prefeitura, que está mais diante, mostra que o jovem revida com socos para cima do soldado.
A câmera do mercado mostra Felipe Nunes sem tonfa e pegando sua arma enquanto Pedroso continua batendo em Tiago. Em determinado momento, depois de se afastar, Nunes se aproxima, aponta a arma e é possível ver um clarão do disparo. Tiago cai no chão, próximo ao poste, e ainda recebe mais um golpe de tonfa de Carlos no braço.
O ajudante-geral levou um tiro no peito. Ele foi socorrido pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), mas já chegou morto à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Paraibuna.
‘Histórico de agressividade’
No dia, os PMs não se apresentaram na delegacia. Quem relatou a ocorrência foi o policial Ronaldo Alexandre Diniz, que não participou da abordagem. Ele disse, sucintamente, que a dupla foi acionada por populares por causa de uma briga, sendo que Tiago agrediu o soldado Nunes que, por sua vez, “para se defender teria efetuado um disparo com sua arma”.
A pistola que Nunes usou também não foi apreendida na delegacia. Diniz disse que o Comando da PM fez a apreensão. Com Tiago, segundo o policial, havia 2,85 gramas de maconha.
Em depoimento na Polícia Civil, Nunes relatou que um grupo de pessoas disse que um homem sem camisa estaria chamando os demais para uma briga, mas o orientou a não dar atenção porque teria reconhecido Tiago e, segundo ele, “sabia do histórico de agressividade dele”. O soldado afirmou que, mesmo assim, o grupo teria retornado e dito que Tiago continuava importunando e que assediou a namorada de um deles e, por isso, comunicou ao seu superior que ele e o cabo iriam intervir.
Quando foram em direção ao ajudante-geral, Nunes disse que Tiago passou a caminhar para se afastar gritando “vai tomar no cu, não quero falar com vocês não, nem de polícia eu gosto”. Ao realizarem a abordagem, Nunes disse que Tiago “se mostrou ainda mais agressivo” e continuou com xingamentos. Ele disse que, por isso, pediu para o jovem colocar as mãos na cabeça, mas ele não teria obedecido porque “apenas levantou a mão, mas não entrelaçou os dedos” e ainda teria dito que “quebraria quem chamou a polícia e que quebraria os policiais”.
Nesse momento, afirma Nunes, “percebendo uma desobediência, utilizando força moderada, desferiu dois golpes de tonfa”. Com isso, prossegue o policial, Tiago passou a dar socos e o atingiu no rosto. O cabo Pedroso passou a dar golpes em Tiago para, segundo ele, “estancar as agressões”. Já próximo do muro do mercado, Nunes disse que Tiago conseguiu arrancar sua tonfa e jogar no chão, sendo que, enquanto Pedroso continuava a agredir o jovem, restou a ele “apenas sacar a sua arma, posto que estava sem o cassetete, e ordenar que o implicado parasse com a injusta agressão, pois seu objetivo era conduzir Tiago à delegacia por desobediência e desacato”.
O soldado disse, em sua primeira versão, que acabou dando um disparo acidental ao dar um golpe no ferrolho da pistola, que é a parte superior da arma, e que não tinha a intenção de puxar o gatilho. E argumentou que tanto não queria efetuar o disparo que o tiro quase se deu pelas costas do colega, o qual não percebendo que Tiago tinha sido baleado, ainda deu um golpe de cassetete.
Nunes alegou também ter acreditado que Tiago poderia ter pego a arma do colega. Já perante ao juiz e à promotoria, ele mudou a versão: disse que “foi mal orientado por seu defensor para seguir esta tese, mesmo não concordando com ela” e que atirar era o único meio de defender a si e ao colega.
O cabo Carlos Pedroso disse inicialmente, no inquérito da PM, que Tiago tentou tirar sua arma, mas em depoimento à Polícia Civil explicou que fez essa declaração porque Nunes o perguntou se o jovem tinha feito isso e por isso acreditou que o colega tivesse visto algum movimento da vítima que não percebeu.
O cabo, que deu uma versão praticamente idêntica à do colega, disse que mandou Tiago parar de resistir e que, em determinado momento, o viu cair no chão. Pedroso alegou que não ouviu o disparo e não percebeu que o jovem tinha sido atingido, por isso deu o outro golpe de tonfa. Depois, percebeu que a vítima estava sangrando e acionaram o resgate.
Com base nas imagens, o delegado Rafael Pellizzola indiciou o soldado Felipe Nunes por homicídio qualificado com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido. Para ele, quem agiu em legítima defesa foi Tiago ao tentar se desvencilhar das agressões.
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A promotora Julisa Helena do Nascimento teve o mesmo entendimento e pediu a prisão de Felipe Nunes, citando o fato de que ele e o cabo Pedroso estão sendo investigados em outros três inquéritos por suspeita de prática de violência, incluindo tortura, agressão, provas forjadas e invasão de residência em 2023. Por isso, segundo ela, o soldado poderia ameaçar ou influenciar testemunhas como teria feito com o cabo Pedroso. A promotora também acusou o cabo de violência arbitrária, mas não pediu sua prisão.
A representante do MP-SP afirmou, ainda, que as denúncias anteriores foram levadas à Corregedoria da PM em Jacareí, cidade vizinha e onde os policiais trabalham, mas não houve qualquer providência cautelar para “salvaguardar a ordem pública”. Uma medida cautelar, por exemplo, seria o afastamento dos policiais enquanto a investigação acontece. Para ela, houve “omissão” da corporação, que resultou em mais um caso de violência, com a morte de Tiago.
O que diz o governo
A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre as medidas tomadas contra o soldado e se houve alguma responsabilização contra o cabo que participou da abordagem. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu as perguntas e enviou a seguinte resposta:
O caso foi investigado pela Delegacia de Paraibuna e o inquérito policial foi relatado para apreciação da Justiça em 10 de abril de 2024. Novos questionamentos devem ser encaminhados ao órgão judicial.