Decisão do tribunal de segunda instância ocorreu depois de oito anos do início da ação. ‘Moradores começaram a entender que o melhor caminho para a sobrevivência é a denúncia’, diz liderança da Rocinha, no Rio de Janeiro
Uma decisão do Tribunal de Justiça da 24ª Câmara Cível do estado do Rio de Janeiro (TJRJ) publicada em 18 de agosto determinou que o estado do Rio de Janeiro deverá pagar uma indenização no valor total de R$ 110 mil ao comerciante e líder comunitário da Rocinha, favela da zona sul do Rio, Carlos Eduardo da Silva Barbosa, apelidado de Duda, 45 anos, e também à sua esposa e caixa de loja, Ilma Maria dos Santos, 49 anos, e sua filha Taina dos Santos da Silva Barbosa, 24 anos.
O acórdão (decisão conjunta dos desembargadores) com o voto do relator desembargador Álvaro Henrique Teixeira de Almeida é uma resposta à denúncia feita por Duda após sofrer ameaças constantes de policiais militares, que culminaram com a invasão de oito PMs do Batalhão de Operações Especiais (Bope) em sua residência no dia 4 de novembro de 2014. Sua esposa foi agredida pelos policiais por gravar a invasão.
O caso ocorreu por volta das 7h20 da manhã. Na ocasião, os policiais, que participavam de uma operação contra o tráfico de drogas na comunidade, também ameaçaram Tainá, filha do casal que estava em casa, por tentar defender a mãe.
“Primeiro eles ameaçaram apontando um fuzil para ela [Ilma], falando que ela tinha que apagar o vídeo deles invadindo a nossa casa. E como ela se negou a apagar, eles tentaram tomar o celular à força, ela não entregou o celular e eles acabaram batendo nela. Jogaram ela no chão, ela ficou com diversos hematomas no braço, nas costas”, diz Duda, lembrando-se que no momento das agressões estava com as mãos amarradas do lado de fora da casa. “Eu escutava os gritos da minha mulher e da minha filha pedindo pra eles pararem de bater na minha esposa.”
No mesmo dia, Duda e a família registraram um boletim de ocorrência na 11ª Delegacia de Polícia Civil da Rocinha e realizaram exames de corpo e delito no Instituto Médico Legal (IML). Apesar da presença dos diversos hematomas pelo corpo, o Inquérito Policial Militar (IPM) concluiu que não houve qualquer transgressão cometida pelos policiais.
Diante disso, o líder comunitário ingressou com uma ação civil contra o estado do RJ em dezembro de 2014, reivindicando uma indenização por danos morais, dano estético (lesão à saúde ou integridade física de alguém, que resulte em constrangimento) no caso de Ilda, que também sofreu agressões, e o reembolso de todas as despesas e pagamentos dos prejuízos havidos em razão do evento.
Na petição, o advogado João Tancredo solicita ainda a produção de provas documentais “inclusive com ofícios necessários, oral e pericial médica”. Segundo informações dos autos, apenas dois dos oito PMs que participaram da ação na casa de Duda tinham identificação na farda.
O acórdão expedido neste mês de agosto triplica os valores determinados pela magistrada de primeiro grau Maria Paula Galhardo, do TJRJ, em 2020, no qual cada integrante da família receberia R$ 10 mil. Com a nova sentença, o estado será obrigado a pagar R$ 30 mil para Duda e a filha e R$ 50 mil para Ilda, que foi agredida fisicamente.
Na visão de Tancredo, a decisão atual é um reconhecimento de que o ocorrido se configura como uma grave violação de direitos. “É um recado ao governante para que não permita isso porque viola garantias individuais. A ideia é a seguinte: a casa é o asilo inviolável, é o que diz a Constituição, no artigo 5º, inciso XI.”
Ele explica ainda que a uma residência não pode ser invadida “salvo se for para intenção de ocorrência de crime e para proteger alguém, ou com mandado de prisão e de busca, o que não é a hipótese do caso”.
Tancredo ainda ressalta que houve a tentativa de solicitar à Justiça o tratamento psicológico de Duda e de sua família, o que foi negado. “Isso vem de um grande preconceito, da ideia de que ‘pobre não tem dano psicológico, porque a vida deles já é tão dura’. No entender de quem julga, isso é um detalhe. É um absurdo.”
Ao longo do acórdão, o relator chama a atenção para o fato de que o laudo pericial de exame audiovisual conclui que há compatibilidade entre a farda do cabo da PM Maicon Ricardo Alves da Costa e a farda que aparece no vídeo gravado por Ilma. Lembra ainda que uma das testemunhas afirma que viu os PM’s “entraram na casa chutando o portão” e que “ouviu gritos de Ilma e viu quando a mesma começou a falar pedindo que os mesmos apresentassem o mandado”.
Diante destas circunstâncias, o magistrado reconhece que “o acervo probatório é claro quanto à ilicitude da conduta adotada pelos respectivos agentes (policiais militares) que, sem autorização dos moradores e destituídos de qualquer ordem judicial, adentraram na residência dos autores, de forma truculenta e ameaçadora, em manifesta violação às garantias constitucionais”.
Apesar da vitória na segunda instância, o advogado chama a atenção para o fato de que casos como o de Duda continuam acontecendo nas comunidades do Rio. “Teve uma pesquisa onde a maioria dos moradores se queixam de invasão das suas casas e isso continua acontecendo rotineiramente, em todas as comunidades. O Estado prega e sustenta que o favelado é um cidadão de segunda categoria que não tem direitos.”
O estudo ao qual Tancredo se refere mostra que 50% dos moradores do Jacarezinho entrevistados no levantamento relatam que policiais do programa Cidade Integrada invadiram suas casas sem mandado. A pesquisa foi divulgada em 19 de agosto e produzida por instituições como a Casa Fluminense, o Lab Jaca, o Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Instituto de Defesa da População Negra (IDPN).
Histórico de perseguições e o caso Amarildo
Alvo de perseguições recorrentes por PMs na Rocinha, Duda diz que virou “figurinha marcada” dos militares quando passou a sofrer pressões para indicar suspeitos de atuarem no narcotráfico na Rocinha.
Junto do amigo, o pedreiro Amarildo Dias Souza, torturado e morto por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em julho de 2013, o líder comunitário que atuava na associação de moradores da Rocinha desde 2006 sempre se posicionou contra a violência policial e junto de Amarildo passou a sofrer ameaças cada vez mais graves.
“O Amarildo trabalhava comigo, abastecia a minha lanchonete e toda vez que esses policiais chegavam nos cobravam de falar onde que estavam os fuzis, as pistolas e os bandidos, e nós como moradores de comunidade, não podemos apontar o dedo, citar nomes. Se for caguete na favela você perde a vida”, lembra Duda.
Apesar das pressões, Duda se recorda que tentava conversar com os policiais, mas a coação só aumentou até ele se deparar com o desaparecimento do colega Amarildo. As ordens, segundo ele, vinham do major Edson Santos, condenado a 13 anos de prisão por participar da morte e tortura do pedreiro e que passou ao regime semi aberto em 2019. “Eu sabia que o que eles fizeram com o Amarildo iriam fazer comigo e iriam fazer com qualquer um que entrasse no caminho deles.”
A casa da família já havia sido alvo de outra invasão ocorrida em 13 de dezembro de 2013, depois do desaparecimento de Amarildo. O caso do pedreiro ganhou repercussão internacional e Duda prestou total apoio à família, inclusive denunciando o envolvimento do major Edson no caso, que comandava a UPP Rocinha.
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve uma condenação que obriga o governo do RJ a indenizar familiares de Amarildo em R$ 500 mil para cada pessoa da família, sendo seis filhos e a companheira e assegurou uma pensão para os filhos do pedreiro até eles completarem 25 anos.
Atualmente oito dos 25 policiais denunciados são considerados culpados. Os PMs foram condenados pelos crimes de tortura seguida de morte, fraude processual e ocultação de cadáver.
Quase dez anos depois das ameaças vividas, Duda ainda se sente vulnerável e carrega o trauma dos acontecimentos ocorridos com a família e vizinhos. “Aquele trauma fica registrado na tua memória de uma forma que você não deseja aquilo ali pra ninguém, nem pro seu pior inimigo.”
Hoje ele deseja um maior controle social e fiscalização das atividades policiais nas comunidades do Rio. “Eu sonho um dia em que todos os moradores abram a câmera do seu celular quando um policial entrar em algum beco e gravem. A gente espera que a mudança seja política, a política pública tem que mudar. Que a gente possa um dia ter o nosso direito de ir e vir.”
A reportagem procurou as Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro para saber se as investigações sobre o caso foram concluídas. Perguntamos ainda se as corporações vêm tomando alguma medida para conter as invasões irregulares de policiais em residências localizadas em favelas do RJ e se sim, quais.
A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar (SEPM) informou que “o comando da corporação não tolera qualquer desvio de conduta praticado por seus entes, punindo com rigor os envolvidos quando constatados os fatos. Disse ainda que o comando da PM “também colabora integralmente com todos os trâmites do Poder Judiciário.”
À PM ainda foi questionada qual a posição da corporação sobre a alegação do desembargador de que “o acervo probatório é claro quanto à ilicitude da conduta adotada pelos respectivos agentes (policiais militares)”. Questionamos também por que a PM concluiu que não houveram agressões físicas contra Ilma Maria dos Santos e se o Major Edson Santos envolvido no caso Amarildo foi investigado por ameaçar Duda.
As perguntas não foram respondidas.
Procurado, o governo do estado do Rio de Janeiro não respondeu se irá recorrer da decisão e como se posiciona frente às agressões físicas praticadas por policiais militares sofridas por Ilma Maria dos Santos reafirmadas pelo desembargador. A Ponte também questionou quais medidas vêm tomando para conter as invasões irregulares de policiais do programa Cidade Integrada em residências localizadas em favelas do RJ.