‘Estava ansioso e tive vários pesadelos. É uma cicatriz que não dá para esquecer’, diz Marcelo, cuja prisão por tráfico de drogas se baseou no depoimento de PMs; ele pretende pedir reparação de danos ao Estado
Por Arthur Stabile e Jeniffer Mendonça
“Finalmente consegui dormir. Estava ansioso e tive vários pesadelos, agora estou melhor, mas é uma cicatriz que não dá para esquecer”, desabafou o educador social Marcelo Dias, após o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) tê-lo inocentado das acusações de tráfico de drogas e associação para o tráfico, na última sexta-feira (5/4). Marcelo e mais quatro pessoas, também absolvidas no processo, foram presas em junho de 2018 acusadas de integrarem uma quadrilha que faria a entrega de uma sacola com 4,9 kg de pasta base de cocaína no bairro do Cursino, periferia da zona sul de São Paulo. O educador ficou seis meses preso no CDP (Centro de Detenção Provisória) II de Pinheiros, quando recebeu habeas corpus em dezembro de 2018 para responder o processo em liberdade.
O juiz Antonio Maria Patiño Zorz, do Foro Criminal da Barra Funda, usou o princípio in dubio pro reo, expressão em latim que significa “na dúvida, a favor do réu”, para fundamentar a sentença, já que destaca a inexistência de “prova mais robusta e objetiva” para basear as acusações feitas pelos policiais militares e o MP (Ministério Público) contra Marcelo e os demais. A decisão fez Marcelo se desligar do mundo por três dias.
“Fui viajar com meu namorado para a praia”, contava com animação. “Desliguei o celular sábado, domingo e segunda. Aqui na região [Vila Clementino, zona sul da capital paulista], não conseguiria ficar de boa. Todo momento encontro alguém que ainda não me viu e relembra, bate papo… Toda hora fico relembrando e preferi ficar distante, onde ninguém sabe dos problemas, do que aconteceu”, explica. O casal viajou para Santos, onde andou pela praia e saiu para restaurantes. Enfim, Marcelo relaxou.
Sua prisão e a dos outro quatro acusados, agora inocentados, foram subsidiadas em dois elementos: a sacola de papel com a droga e o depoimento dos policiais militares, únicas provas em 75% das condenações por tráfico de drogas, segundo estudo da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. No dia 9 de junho de 2018, Marcelo foi o único a prestar depoimento no 16º DP (Vila Clementino). Ele afirmou que estava voltando de uma reunião após ter pego cadeiras emprestadas numa creche para a ONG que preside, na Rua Mario Grazini, onde aconteceu a abordagem. Ao se aproximar da sede do espaço, viu duas pessoas andando em passos largos soltando uma sacola de papelão próximo a um táxi estacionado em frente ao local.
Depois, disse que dois policiais em motocicletas subiram a rua, quando ele parou o carro que dirigia ao lado do táxi, e sinalizou aos PMs que uma sacola havia sido deixada ali. O educador relata que esses policiais foram perseguir a dupla que passou, mas retornaram em seguida. Nesse momento, Marcelo contou que chegou perto da sacola para saber o que havia dentro, quando “uma pessoa de dentro do táxi, de voz masculina, gritou ‘não mexe, não mexe'”. Os PMs abordaram o educador e mais quatro suspeitos que estavam dentro do táxi.
No DP (Distrito Policial), as outras quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, se mantiveram no direito de permanecer em silêncio. Durante o processo, elas afirmaram que dois deles eram um casal acompanhado de uma das mulheres e que pediu uma corrida de táxi a um motorista. Ao pararem na Rua Mario Granzini, teriam avistado duas pessoas, um homem e uma criança, jogando a sacola com cocaína próximo ao veículo. A presença desses dois sujeitos, o homem e a criança, mencionados nos depoimentos dos cinco e não no dos PMs, fez o juiz desconsiderar a versão dos policiais tanto para o caso de Marcelo quanto para o do quarteto do táxi. O Ministério Público havia se manifestado apenas pela absolvição do educador social.
“Ora, se há um princípio de desprestígio da voz dos milicianos [policiais] e se a versão dos réus, guardadas as devidas proporções, mantêm uma linha coerente, o desprestígio também deve ser aproveitado pelos corréus, além do réu Marcelo”, argumentou o juiz Antonio Maria Patiño Zorz. “Seriam estes [o homem e a criança], na ótica dos réus, aqueles que estavam a carregar a famigerada sacola. E se isto ocorreu, por mais duvidosa que seja a versão daqueles que ocupavam o táxi para justificar a presença no local, não vejo como apreciar a existência de prova indiscutível que estivessem relacionados com a droga”, prosseguiu.
De acordo com o boletim de ocorrência, os PMs Luccas Pires e Luiz Felipe afirmaram que estavam em patrulhamento pela Rua Mario Grazini quando teriam visto cinco pessoas com “atitude suspeita” porque presenciaram um veículo Palio estacionado em fila dupla, com a porta aberta e cujo motorista estaria ao lado de um Renault (táxi). Os policiais disseram que acharam que se tratava de um roubo. Ao se aproximarem, teriam visto o passageiro do banco de trás do táxi entregando a sacola de papel a Marcelo. Na versão dos policiais, nesse momento, o educador teria largado a sacola e tentado ficar longe do veículo por causa da presença deles.
O magistrado também argumentou que um dos aparelhos celulares periciados, que continha contato de uma das mulheres e do taxista, tinha número de telefone que não correspondia aos envolvidos. “Certo que cinco aparelhos foram apreendidos, conforme o auto de exibição e apreensão, mas não se logrou vincular o número periciado ou mesmo chegou a ser produzido perícia no outro aparelho!”, escreveu.
Retorno
Por conta do período em que esteve preso no CDP II de Pinheiros, os projetos organizados por Marcelo na ONG em que preside, a Nova Herdeiros Humanísticos, ficaram parados em vista dos esforços dos familiares para provar sua inocência, o que desmotivou muitas pessoas a darem continuidade às atividades na época. “O meu maior sonho é poder estar frente a frente com os PMs e falar sobre o retrocesso social que causaram, conta. “Algumas pessoas têm medo de ir na região, eram pessoas que saíam do bairro e iam ajudar, mas agora ficam com medo de ter represália da polícia”, lamenta.
No entanto, o educador pretende reerguer os projetos culturais com a comunidade do bairro e também com a população carcerária que teve contato no período. No seu aniversário de 40 anos, em janeiro, ele usou a festa para arrecadar camisetas brancas para os presos que não tinham visitas de parentes e os que têm deficiência. “Entreguei as camisetas, foi bacana, o diretor [do CDP] ficou surpreso, não imaginou que eu voltaria”, lembra. “Vou conversar com o diretor para ajudar na reforma da quadra, doar tintas e outras coisas. Quando estava lá, vi que a quadra estava zoada”, disse com entusiasmo. “Pretendo fazer campanha de material de higiene, sabonete, papel higiênico, no segundo semestre, mas vou cuidar primeiro de mim um pouco”.
Apesar de Marcelo ter se engajado na causa de direitos humanos para pessoas presas após ter sofrido a experiência na própria pele, a luta também é por reparação do Estado. “Vai ser outra batalha [para limpar o nome]. É uma sequela que eu não sei se vou conseguir superar porque ela sempre vai me acompanhar. Vou trabalhar o psicológico com a religião para que eu olhe a cicatriz e veja com bons olhos, não com a visão de sofrimento, mas de tirar as poucas coisas boas para poder me manter, se não eu fico doido”, conta.