Pesquisa da FGV analisou 859 processos judiciais encerrados e identificou que falta responsabilização em casos de violência policial. Estudo relata ainda que há tratamento institucional divergente em relação às vítimas negras

Casos de letalidade policial no estado de São Paulo têm tido como padrão a falta de responsabilização dos agressores pelo sistema de justiça. O desfecho comum desses processos é o arquivamento a pedido do Ministério Público paulista (MP-SP), que, em geral, não oferece objeção a inquéritos policiais — mesmo quando fundados em alegações genéricas e sem sustentação pericial. O tratamento institucional desses episódios, ainda, diverge em relação às vítimas negras.
Esse é o cenário descrito pela pesquisa Mapas da (In)justiça, desenvolvida pelo Centro de Pesquisa Aplicada em Direito e Justiça Racial da Fundação Getulio Vargas (FGV) e lançada no último dia 5.
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O estudo parte da análise dos 4.568 registros de mortes decorrentes de intervenção policial praticadas por policiais civis e militares no estado de São Paulo entre 1º de janeiro de 2018 e o dia 30 de abril de 2024. Desse total, a pesquisa identificou que 2.451 dos episódios contavam com um Número CNJ — trata-se de uma numeração única conforme padrão previsto pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que permite acompanhar a tramitação de um caso do inquérito policial ao processo judicial. Após esse recorte, foram selecionadas ao final 859 ocorrências, excluindo as que estão sob sigilo.
Abordagem por justificativa genérica
Desses casos que puderam então ser acompanhados do princípio ao fim da tramitação, a pesquisa identificou que, já na altura do registro do boletim de ocorrência (BO) pela Polícia Civil, há um padrão narrativo que tende a legitimar preventivamente as ações dos policiais autores das mortes. Em 83% desses boletins, a abordagem que resultou em óbito foi justificada por uma alegação genérica de “prática de crime”. A segunda motivação mais comum (8%) foi uma suposta “atitude suspeita” da vítima.
Ainda em relação a esses 859 casos, pessoas negras, de pele parda ou preta, representaram 62% das vítimas registradas, enquanto brancas compuseram 25%. Entre as abordagens justificadas pela suposta “prática de crime”, 51% eram negras. Naquelas motivadas por “atitude suspeita”, a proporção vai a 75%.
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Uma maior parte dessas ocorrências fatais (63%) teve, em média, 4,24 tiros dados pelos policiais. Entre os casos com mais disparos (entre 4 e 69), negros eram 23% das vítimas, enquanto brancos somavam 9%. O estudo mostra ainda que, em 83% dos boletins, há indicação de alguma assistência médica às vítimas. “A literatura aponta que a alegação de socorro pode, em certos contextos, servir como mecanismo de alteração da cena do crime e de esvaziamento das possibilidades de investigação rigorosa, o que levanta a necessidade de atenção crítica a esse tipo de registro”, argumentam os autores.

Falta de laudo em alegação de confronto
Quanto à etapa pericial desses casos, a pesquisa diz haver lacunas alarmantes: em 85% deles, não foi feito exame residuográfico das vítimas, o que confirma se ela tinha ou não pólvora nas mãos, uma prova essencial para alegações de confronto armado. Entre os casos em que houve esse exame, só 1% teve resultado positivo para disparos feitos pela vítima. Só em 8,9% dos casos houve laudo do local do crime.
“A investigação técnico-científica, portanto, restringe-se majoritariamente ao laudo necroscópico, presente em 79,7% dos casos, enquanto exames capazes de revelar inconsistências, como reprodução simulada, perícia de armas e resquícios de disparo, são sistematicamente negligenciados”, aponta. A pesquisa indica que, também nesta etapa, há disparidades raciais: “Enquanto a maioria dos laudos entregues até 33 dias após o crime envolvia vítimas negras (pardos e pretos) (61%) e brancas (30%), nas perícias concluídas entre 198 e 231 dias, 88% das vítimas eram negras, sem registro de vítimas brancas.
Entre os 859 casos sob análise, 16% das vítimas sofreram tiros na cabeça e 30% delas foram atingidas de cima para baixo, o que sugere rendição ou posição de submissão no momento da morte. Em 6,4% dos episódios, há indícios de “tiros de confirmação”, dados quando a vítima já está incapacitada.
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Além disso, em 36% dos casos, as pessoas baleadas apresentavam sinais de violência prévia não provocadas por arma de fogo, como hematomas, escoriações, contenções em pulsos e tornozelos, ou marcas de estrangulamento. “Esses achados, longe de serem a exceção, revelam a prática de agressões físicas anteriores à morte, desmentindo versões que alegam confrontos espontâneos”, aponta.
O estudo argumenta também que os relatórios policiais, documentos que consolidam a investigação da Polícia Civil antes do caso ser levado ao Ministério Público, tem papel determinante na narrativa oficial e nos desdobramentos judiciais. De 831 relatórios analisados, 95% citam comportamento agressivo da vítima, o que, segundo os pesquisadores, é usado para justificar a invocação da legítima defesa. “Essa prática desloca a responsabilidade da violência para a vítima, minando o princípio da proteção da vida e invertendo a lógica do uso proporcional da força”, escrevem os autores.
A legítima defesa dos policiais é citada em 38% dos casos, só atrás da excludente de ilicitude baseado no estrito cumprimento do dever legal (59%). “Outro dado relevante diz respeito às circunstâncias das mortes: 63,8% das vítimas negras foram mortas após perseguições, e 60,4% em ações imediatas, frente a apenas 25,5% e 24,5% entre vítimas brancas. A maioria dos casos ocorreu em locais pouco movimentados e bem iluminados, o que contradiz a ideia de confronto em ambientes caóticos e aponta para um uso letal da força mesmo em contextos controlados.”

MP-SP pede arquivamento e Justiça confirma PMs
O estudo também cita um papel fundamental do Ministério Público estadual, orgão que tem a atribuição constitucional de exercer o controle externo das polícias, na falta de responsabilização de agressores. Dos 859 casos analisados, o MP-SP optou por pedir o arquivamento de todos eles.
Em quase nove de cada dez casos, (89,9%), o pedido de arquivamento se baseou na legítima defesa dos policais. O estrito cumprimento do dever legal foi usado em 8,7%. Nos 12 episódios restantes (1,5%), sequer foi citado qualquer excludente de ilicitude, mas o pedido para arquivá-los se valeu de justificativas como ausência de justa causa ou falta de indícios suficientes de autoria.
“Nos casos de vítimas brancas, o Ministério Público recorreu com mais frequência ao estrito cumprimento do dever legal – uma excludente que não exige a mesma construção narrativa de agressividade da vítima, mas apenas o reconhecimento de que o agente agiu dentro das suas atribuições. Essa diferença pode indicar que, em situações com vítimas brancas, há maior cuidado na fundamentação técnica e menos necessidade de sustentar a morte com base em um suposto confronto.”
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O MP-SP só pediu diligências complementares, ou seja, novos esclarecimentos da investigação policial, em 1,62% dos casos. Em apenas 1,04% das manifestações, foi identificado uso de câmeras corporais. “Mesmo nesses raros casos, todos os arquivamentos mantiveram a justificativa de legítima defesa, levantando dúvidas sobre a efetiva consideração do conteúdo das imagens”, aponta.
O estudo mostra que, ainda em relação aos 859 casos sob análise, a Justiça estadual acatou o pedido de arquivamento do MP-SP em todos eles, sem a prisão de policial algum. “O tempo médio entre o crime e a decisão de arquivamento foi de 615 dias, mas houve casos encerrados em apenas 32 dias, revelando uma dinâmica de aceleração seletiva para arquivamento: casos que se prolongam indefinidamente sem julgamento e sem um incremento na qualidade investigativa para justificar sua maior duração, além de casos arquivados com celeridade, ambos com o mesmo resultado de impunidade.”
Os desafios para a responsabilização
O estudo traz na conclusão uma série de recomendações ao órgãos do sistema de Justiça quanto à padronização dos registros de violência policial e à transparência desses dados. Ele propõe, por exemplo, a implementação de um sistema unificado sobre esses casos para consulta pelo poder público e a sociedade civil, além de um papel mais contundente da Ouvidora das polícias e de treinamento de servidores para o cumprimento de prazos da Lei de Acesso à Informação (LAI).
“A obtenção desses dados enfrentou sérias barreiras, como a falta de regulamentação da SSP-SP [Secretaria de Segurança Pública paulista] para compartilhamento de informações sobre MDIP [mortes decorrentes de intervenção policial]; o fornecimento de dados com baixa qualidade e descumprimento da LAI pelo MP/SP; e as oscilações normativas do TJ/SP [Tribunal de Justiça de São Paulo] e longos prazos de resposta. Isso resultou na exclusão de parte dos casos por falhas de triagem institucionais e revelou um problema na integridade da informação”, relatam os pesquisadores.
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“Estes desafios dificultam o monitoramento e a compreensão do verdadeiro alcance da violência policial, o que torna os processos de apuração e responsabilização falhos e nos leva a questionar o fator da imunização da polícia diante de casos de letalidade”, concluem.
O projeto Mapas da (In)justiça teve coordenação geral dos pesquisadores Julia dos Santos Drummond e Dirceu André Gerardi, que tiveram Isabelle Cardoso Varanda de assistente. Os dados completos obtidos por eles podem ser consultados no site da iniciativa.