Com respaldo de juízes, PMs acessam celulares sem precisar de autorização

    Pesquisa aponta que em mais de 75% das 49 abordagens ou flagrantes analisados PM ignorou ‘presunção de consentimento’ ao fuçar celulares

    Abordagem acontece em manifestação de SP em janeiro deste ano | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    A maior parte dos tribunais de Justiça estaduais analisados consideram que o acesso de policiais a celulares durante abordagens ou em flagrante delito para obter provas mesmo sem ordem judicial são lícitas. Em 75,5% dos casos, as decisões não mencionam se os donos dos aparelhos consentiram o acesso. Essa são as principais conclusões da pesquisa Acesso de Autoridades Policiais a Celulares em Abordagens e Flagrantes: retrato e análise da jurisprudência de tribunais estaduais, lançada durante o 2º Congresso de Direitos Fundamentais e Processo Penal na Era Digital, nesta terça-feira (21/8), na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

    O centro independente de pesquisa em direito e tecnologia InternetLab analisou em setembro de 2017 a argumentação de 49 acórdãos (decisões de órgãos colegiados de um tribunal) a fim de discutir os limites da atuação policial diante dos direitos à intimidade, à vida privada e ao sigilo das comunicações, que são garantidos pela Constituição Federal (incisos X e XII do artigo 5º, que requerem ordem judicial para acesso). Foram 37 decisões sobre o acesso dos policiais após flagrante delito e 12 durante abordagem policial nos tribunais de Amazonas, Roraima, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Paraná, Ceará, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro.

    O estudo constatou que 73% dos casos de acesso após flagrante delito foram considerados lícitos para a obtenção de provas, 13,5% ilícito e em 13,5% não foram analisadas por questões processuais. Já nas ocorrências de abordagem policial, há um equilíbrio: 50% foi considerado lícito e 50%, não. Os crimes mais frequentes são tráfico de drogas (35 casos), associação para o tráfico (8) e roubo (6).

    De acordo com uma das coordenadoras da pesquisa, a advogada e doutoranda da Faculdade de Direito da USP, Jacqueline de Souza Abreu, existe uma discussão sobre a abrangência desses direitos no que toca o acesso aos celulares, em que os aparelhos se tornaram uma “extensão” para busca pessoal, já que independe de mandado, e que a simples apreensão do objeto é tido como justificativa do acesso direto ao conteúdo dos eletrônicos.

    “A interpretação bastante recorrente é de que as únicas formas de comunicação protegidas são as comunicações em fluxo, ou seja, enquanto elas ocorrem. O outro lado é que as comunicações que não estão ocorrendo, que estão apenas registradas ou armazenadas, não teriam a proteção da inviolabilidade do sigilo à telecomunicação, o que deixa os dados desprotegidos”, explica a pesquisadora ao citar uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), de abril de 2012, que protege o acesso apenas de comunicação de dados e não do que está armazenado.

    O Marco Civil da Internet assegura que as comunicações privadas armazenadas e seus respectivos conteúdos só podem ser disponibilizados mediante ordem judicial. Porém, a lei, que é de 2014, foi citada apenas em dois dos 49 acórdãos. “Há uma falta de familiaridade com a lei, mas também o entendimento de que essa legislação só se aplica com provedores de internet e não com um dispositivo que eu seguro na minha mão e que não necessitaria da internet para acessá-lo. Isso, infelizmente, não está explícito no Marco Civil”, pondera Jacqueline.

    A advogada também aponta o conceito de “presunção de consentimento” em relação ao baixo número de casos em que foi discutida a autorização ou não do usuário sobre o acesso ao aparelho. “Uma abordagem policial por si só já é constrangedora e, muitas vezes, a pessoa não tem o conhecimento de que pode negar que o aparelho dela seja mexido. Com isso, se o policial manda ela desbloquear o aparelho e ela autoriza, mantém-se a lógica de que a pessoa tem que provar que não consentiu e não que o policial precisaria de um mandado”, aponta.

    Em relação a isso, a pesquisadora da Universidade de Brasília, Gisela Aguiar Wanderley, afirma que a busca pessoal, que deveria ser uma ação pontual, é “usada de forma generalizada e discriminatória que não acontece aleatoriamente no policiamento preventivo, já que há um perfil de pessoas que são mais abordadas, que é a juventude negra e periférica”. Ela é autora de uma dissertação que analisou casos de abordagem policial em São Paulo e no Distrito Federal, em que ela aponta que 97% das pessoas que são revistadas são inocentes e não são presas.

    De acordo com Gisela, a ausência de estudos e regulamentações sobre a questão da abordagem policial no campo do direito e a falta de investigação sobre a conduta de policiais chancela abusos de poder. “A Polícia Militar tem um poder preventivo com o argumento de manter a ordem pública. Dentro dos meios a que ela está incumbida, está a busca pessoal. Reconhece-se que a busca pessoal viola a privacidade da pessoa, mas que é necessária para manter essa ordem”, explica. “Só que no que Código de Processo Penal, a busca pessoal com fundada suspeita não tem esse caráter preventivo, para intimidação, tem a finalidade de obtenção de prova, mas não é o que geralmente acontece”, prossegue.

    Segundo o delegado e professor da Academia de Polícia de São Paulo, Rafael Marcondes de Moraes, é necessário aprimorar a instrução dos profissionais. “Quando o caso é levado à Polícia Civil, é necessário avaliar a legalidade daquela atuação. É importante registrar em vídeo essas abordagens porque muitas vezes temos versões conflitantes para consignar que seja investigado. O depoimento de um policial militar não vale mais ou menos do que um suspeito. O que prevalece em relação a suspeitos é que haja ordem judicial de busca e apreensão para ter acesso ao celular”.

    Por outro lado, uma decisão de maio de 2016, proferida pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), pode inspirar a jurisdição de determinações sobre acesso a celulares, como aconteceu em fevereiro deste ano. A 6ª turma do STJ julgou um habeas corpus em que a defesa de um homem solicitava que as transcrições feitas e retiradas do aplicativo do celular dele feitas pela perícia de Rondônia eram ilegais. O ministro Nefi Cordeiro acatou o pedido e entendeu que acessar o conteúdo do aplicativo Whatsapp de celular apreendido só deve ser realizado mediante autorização judicial. Na pesquisa do InternetLab, essa jurisdição foi utilizada em 12 dos 49 acórdãos analisados, em que as informações tidas como provas foram anuladas.

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