Juíza entendeu que não havia elementos suficientes para acusação de associação criminosa e dano qualificado em audiência de custódia neste sábado (15/6); três pessoas detidas em protesto na Avenida Paulista acusadas de tentarem incendiar um ônibus continuam presas
Os dez manifestantes, estudantes e funcionários da USP, que foram presos durante protestos da greve geral em São Paulo foram liberados no final da tarde deste sábado (15/6) após audiência de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda.
O grupo, que participava de um dos atos contra a reforma da previdência e contra os cortes da educação, foi detido pela Polícia Militar nas imediações da universidade, na região do Butantã, na zona oeste, por ter sido acusado de queimar um carro, segundo os policiais. De lá, foram encaminhados para o Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), que é especializado em combate ao crime organizado. O delegado Fabiano Fonseca Barbeiro imputou a eles os crimes de associação criminosa, incêndio, resistência, dano ao patrimônio e desacato com base nos depoimentos de dois policiais que fizeram as prisões.
A audiência estava prevista para começar às 9h, mas começou às 13h. A imprensa não foi autorizada a acompanhá-la. Todos eles permaneceram algemados, por determinação da juíza Bruna Acosta Alvarez, que alegou “número reduzido de policiais” e que os PMs tinham “compleição física inferior” à dos réus para justificar o uso de algemas. Por volta das 17h, duas horas depois de terminada a audiência, os jovens cruzaram os portões muito emocionados e recebidos por diversos abraços de amigos, parentes, estudantes e funcionários da USP que realizavam uma vigília em solidariedade aos presos com vários cartazes desde cedo.
Na decisão, a magistrada determinou a liberdade provisória dos dois funcionários e oito estudantes para os crimes de associação criminosa e dano qualificado e cumprimento de medidas cautelares (comparecer ao fórum a cada três meses) para os delitos de incêndio, resistência e desacato.
Ela entendeu que não havia elementos suficientes “para se considerar que os averiguados estariam de maneira estável e permanente associados para o cometimento de crimes”, além de que eles não poderiam ter sido autuados em flagrante pelo dano ao carro, “já que sequer há identificação e descrição dos bens que supostamente teriam sido objeto material material do crime em questão” e que necessitaria de perícia.
Um vídeo chegou a ser anexado ao inquérito policial. Nas imagens recebidas pela reportagem, cinco pessoas aparecem ateando fogo em um escort azul. O carro ficou branco depois de ser queimado. Assim que o veículo começa a pegar fogo, as pessoas correm para lados diferentes. A PM havia informado que o dono do automóvel não quis prestar queixa.
De acordo com um dos advogados que representa parte dos manifestantes, Roberto Podval, as imagens mostram pessoas com roupas diferentes das usadas pelo grupo. “É uma prisão absurda, é um retrocesso nesse país, o Ministério Público chegou a pedir que eles não participassem mais de manifestações, isso é absolutamente inconstitucional. Estão calando os estudantes deste país. Nós apresentamos um vídeo que mostra que as roupas das pessoas que atearam fogo são diferentes das que eles [manifestantes] estão usando, isso [a autoria] não dá para identificar”, frisou.
Com relação aos crimes de incêndio, resistência e desacato, a juíza argumentou que o auto de prisão em flagrante foi regular porque, segundo o depoimento dos policiais, os manifestantes teriam “proferido xingamentos” contra eles, “tendo oferecido resistência à atuação policial” após supostamente terem ateado fogo no automóvel. Porém, estipulou o cumprimento de medidas cautelares por conta de os manifestantes não terem passagens anteriores, terem residência fixa e ocupações lícitas, além de que o crime de incêndio não causou vítimas e não foi apreendido material inflamável que pudesse vinculá-los ao delito.
Os PMs apreenderam quatro estilingues, três latas de spray de tinta e bolas de gude afirmando em depoimento que os manifestantes usaram esses materiais contra eles durante a ação com a finalidade de “causar lesão corporal” e pichar o patrimônio público, embora não tenham relatado que se feriram. Segundo um dos estudantes ouvidos pela reportagem, Tomás Gil, de 19 anos, os policiais “sortearam quem acusar sobre o uso dos estilingues e quem acusar sobre queimar o carro”.
“A gente estava se manifestando, segurando a faixa, quando eu vi um tumulto e olhei para trás o carro já estava pegando fogo e explodiu. Os policiais começaram a jogar bombas e mandar todo mundo se ajoelhar no chão. Um deles veio com o cassetete num dos meninos e outro jogou uma menina no chão”, afirma.
De acordo com ele, todos os manifestantes do sexo masculino ficaram numa cela apertada no Deic sem poder tomar água e ir ao banheiro. “Só quando os advogados chegaram que deixaram a gente beber água”.
Na sexta-feira (14/6), a reportagem chegou a questionar o delegado Fabiano Barbeiro sobre levar os manifestantes ao Deic e não a um distrito policial comum, que afirmou que “o Deic tem um espaço maior”. No entanto, a Ponte verificou que a cela parecia ter capacidade para cinco pessoas, porém tinha nove, e não havia carceragem feminina, sendo que a única mulher detida ficou numa sala.
De acordo com o advogado Roberto Podval, as prisões foram arbitrárias e remetem às práticas da ditadura militar. “Em 2019, não dá para tratar as pessoas da forma como foram tratadas aqui, são professores, universitários. Nós voltamos a uma época difícil na nossa história, como se fosse regime militar”, declarou.
A comparação não é nova, já que, na audiência de custódia do caso dos “18 do CCSP”, em 2016, o juiz Rodrigo Tellini de Aguirre Camargo havia espinafrado os indícios apresentados pelo delegado Fabiano Barbeiro e comparado a ação dos policiais à ditadura militar. “O Brasil como Estado Democrático de Direito não pode legitimar a atuação policial de praticar verdadeira ‘prisão para averiguação’ sob o pretexto de que estudantes reunidos poderiam, eventualmente, praticar atos de violência e vandalismo em manifestação ideológica. Esse tempo, felizmente, já passou”, argumentou o juiz em sua decisão na época.
O caso dos “18 do CSSP”, também capitaneado pelo delegado Barbeiro, envolveu a prisão de 18 jovens, detidos juntos com um infiltrado do Exército, revelado pela Ponte, no Centro Cultural São Paulo durante os protestos contra as Olimpíadas de 2016 e que foram absolvidos no ano passado. Na época, no inquérito em que autuou os 18 jovens, o delegado afirmou que “mostra-se premente a necessidade de regulamentação do direito de reunião e do direito de manifestação” e recomendou dois projetos de lei apresentados em 2013 que vão nesse sentido, um do senador Armando Monteiro (PTB-PE) e outro do deputado federal Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP).
“Meu irmão viu os meninos dispensando as pessoas do ônibus e foi preso também”
No sábado também ocorreu a audiência de custódia de três pessoas acusadas de tentarem incendiar um ônibus durante um protesto da greve geral na Rua da Consolação, na região central, com sentido à Praça da República após caminharem pela Avenida Paulista na sexta-feira (14/6).
Ao G1, o motorista do veículo, Benedito Barbieri, disse que “tinha três passageiros no ônibus. Um dos rapazes que entrou no ônibus já estava com o galão de gasolina aberto e já jogou no chão do ônibus. Eu abri todas as portas e gritei para os passageiros saírem correndo. Foi quando o segundo foi acender uma bombinha e eu bati na mão dele. Aí ele não conseguiu e os outros dois começaram a me bater”.
A Ponte encontrou, no meio da manifestação pelos estudantes e funcionários da USP, a irmã de um dos rapazes, que pediu para não se identificar. “O meu irmão e o amigo dele são estudantes da Unifesp. Meu irmão estava participando da manifestação e viu todo o ato dos meninos que estavam tentando colocar o fogo no ônibus. Ele disse que os meninos dispensaram as pessoas do ônibus e na hora que a polícia chegou acabou sendo preso também”. “É absurdo eles estarem sendo acusados de tentativa de incêndio e tentativa de homicídio”.
Nesse caso, segundo a assessoria do Tribunal de Justiça de SP, a prisão do trio foi convertida em preventiva, ou seja, eles permanecerão presos por tempo indeterminado até serem julgados.
A reportagem procurou a InPress, assessoria terceirizada da SSP (Secretaria de Segurança Pública), que não respondeu até a publicação.