Mizael Fernandes da Silva, de 13 anos, foi morto quando dormia dentro da casa da tia — que denunciou o caso e hoje está desaparecida. MP-CE mudou rumo da acusação, mas Justiça acatou pedido da Defensoria e PMs vão a júri popular

A Justiça do Ceará decidiu levar a júri dois dos três policiais militares denunciados no caso de Mizael Fernandes da Silva, garoto de 13 anos que foi morto com um tiro de fuzil em 2020 enquando dormia dentro da casa de familiares em Chorozinho (CE). O disparo partiu do PM Neemias Barros da Silva. A decisão contrariou um pedido do Ministério Público cearense (MP-CE), que, no decorrer do processo, deixou de incriminar os envolvidos e passou a defender a absolvição sumária deles.
A pronúncia de dois dos denunciados, que faz agora com que eles sejam julgados perante um Tribunal do Júri, atendeu a um pedido da Defensoria Pública do Ceará (DP-CE), que auxilia a família de Mizael e atua como assistente da acusação no processo — ou seja, o órgão divergiu do próprio titular da acusação, o MP-CE. A ida dos réus a júri foi divulgada nesta quinta-feira (29/5) pela DP-CE. O caso tramita sob sigilo e mesmo a mãe do adolescente, Leidiane Rodrigues Fernandes, seguia sem informações até então.
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Neemias responderá por homicídio qualificado pela impossibilidade de defesa da vítima e fraude processual. Luiz Antônio de Oliveira Jucá será julgado por fraude processual. Já João Paulo de Assis Silva, o terceiro dos policiais militares denunciados, não será levado a júri.
“Eu estou vendo que a justiça está sendo feita, vai ser feita. Estou muito feliz, apesar disso não trazer o Mizael de volta e de todos os remédios que preciso tomar. Mas estou feliz”, disse Leidiane, à Ponte, sobre como recebeu a decisão da Justiça.
Família protestou contra mudança do MP-CE
O MP-CE, ao mudar o rumo da acusação, havia passado a argumentar que o autor do tiro teria atuado em legítima defesa, o que causou revolta de familiares e movimentos sociais. Em fevereiro, conforme noticiou a Ponte, foi realizado um protesto contra o novo posicionamento da acusação. O ato também reivindicou esclarecimentos sobre o desaparecimento de Lizangela Rodrigues da Silva, tia de Mizael. Ela era dona da casa em que o menino foi morto e tida como principal testemunha do caso. A familiar do garoto foi vista pela última vez em Chorozinho, em 7 de janeiro de 2023.
“Eu não vivo bem. Depois da morte do meu filho, tomo remédio para ansiedade, para depressão, para dormir. É muito chato saber que um policial vai ser absolvido por um crime que cometeu e que a chave testemunhal do crime desapareceu. Por que é que o promotor de Justiça não vê isso?”, disse Leidiane, mãe de Mizael, à época.
O protesto havia tido participação de diversos movimentos sociais, incluindo o grupo Mães da Periferia, que acolhe Leidiane, e outras entidades que compõem o Fórum Popular de Segurança Pública do Ceará (FPSP Ceará). Representantes da Defensoria Pública do Ceará (DP-CE) e parlamentares que compõem as comissões de Direitos Humanos na Câmara de Fortaleza e na Assembleia Legislativa cearense (Alece) também estiveram presentes. A mãe de Mizael tem tido apoio público ainda da Anistia Internacional e do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca Ceará).
“A decisão [de levar os réus a júri] é uma vitória muito grande, porque falar em legítima defesa é criminalizar a vítima. É outra forma de matar esse adolescente”, manifestaram os defensores públicos à frente do processo, conforme divulgou a DP-CE agora.

Garoto dormia quando a polícia chegou
O caso de Mizael foi noticiado pela Ponte há cinco anos. Ele era do interior do Ceará e foi levado pelos pais a casa dos tios em Chorozinho, na região metropolitana de Fortaleza, para passar por um tratamento dermatológico, já que faltavam estabelecimentos de saúde onde morava.
O garoto trabalhava ajudando o pai nos afazeres do sítio, sonhava em ser vaqueiro e havia ganhado seu primeiro cavalo pouco antes de ser morto pela PM no dia 1º de julho de 2020. Assim que chegou à casa dos tios em Triângulo, distrito rural de Chorozinho, Mizael conseguiu comprar um celular por R$ 200 ao trocar cascas de castanha que havia juntado. Ele estava empolgado com a conquista, tirando fotos de si próprio e da família com o novo aparelho.
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Lizangela, a tia hoje desaparecida de Mizael, contou em entrevista à Ponte em 2020 que, na noite do assassinato, ele foi se deitar cedo, já que costumava acordar às 4h da madrugada para ajudar o pai. E ela ficou na sala assistindo TV junto do marido, de dois filhos, um de 12 e outro de 22 anos, e de um tio. “Mizael jantou, tomou o remédio do tratamento e foi para o quarto assistindo a vídeos no YouTube no celular que tinha acabado de comprar. Às 19h30, passei pelo quarto e ele dormiu com o celular na mão. Continuamos assistindo à TV”, relatou.
Por volta de 1h da madrugada, Lizangela ouviu alguém bater com força no portão da casa. Era a polícia. Ela saiu acompanhada por todos os que estavam acordados, enquanto Mizael permaneceu dormindo. “Quando estávamos na área, que é mais ou menos a seis metros da sala, eles já foram tirando a gente de casa. Não imaginei que precisava acordar o Mizael, porque ele estava dormindo. Perguntei o que estava acontecendo e falaram ‘você sabe já’. Meu marido respondeu que não, que não sabíamos”, disse.
“Nisso a gente pensou que eles estavam fazendo alguma abordagem na rua e alguém poderia ter pulado no nosso quintal. Mas não foi. Eles expulsaram a gente de casa e mandaram a gente ficar na calçada.”
‘Fiz merda’, teria dito PM
Entraram na casa os policiais Neemias Barros da Silva e Luiz Antônio de Oliveira Jucá. Lizangela contou à Ponte, ainda naquela entrevista de 2020, ter dito a eles que, se iriam revistar a casa, ela deveria entrar junto. Neemias a repreendeu aos gritos: “eu já não mandei você ficar lá fora, sua vagabunda?”. O segundo dos policiais, no entanto, permitiu que ela entrasse de volta na própria residência.
“Quando pisei na sala, eu só vi o clarão no quarto e o tiro. Aí eu falei: ‘moço, você matou a criança que tava dormindo aí no quarto?’. O policial maior, que atirou, não respondeu e veio correndo, falando ‘fiz merda, fiz merda’. E me empurrou para fora”, disse Lizangela.
Mizael foi morto com um tiro de fuzil a média distância. Um médico legista relatou à Justiça que, pela análise das perfurações causadas pelo disparo, o garoto não estaria nem deitado, nem de pé quando foi atingido, mas levantando, como se tivesse assustado e prestes a levantar. A tia e o restante da família tiveram que ficar a cerca de 200 metros da casa, enquanto os policiais chamavam por apoio. Três policiais se mantinham com fuzis apontados para os familiares.
‘Embolaram corpo igual a um porco’
“O policial que matou Mizael entrou de novo, limpou alguma coisa, tirou a colcha lilás da cama. Ele também levou o travesseiro e o telefone do Mizael. Até então a gente não sabia que o Mizael estava morto. Eu pensei que alguém tinha entrado no quarto e tinha matado esse bandido. Eles entraram e ficaram mais de uma hora lá. Embolaram o corpo do Mizael igual a um porco e colocaram dentro da viatura. Voltaram e pegaram um pano que tinha dentro do carro para limpar o sangue. Não ficou nem um fio de sangue no chão. Levaram o edredom da cama”, contou ainda Lizangela.
Depois de um tempo, os dois PMs chamaram Lizangela novamente. Jucá perguntou se ela sabia de uma arma que estaria sob posse de Mizael, o que ela negou. O marido dela pediu para que mostrassem o suposto item apreendido com o menino, o que os agentes não concordaram em fazer. “Entraram sem dar explicação, mataram sem dar explicação, e acabou a história.”
Os policiais então foram embora e não disseram para onde levariam o corpo de Mizael. A tia decidiu ligar para a Polícia Militar: contou que havia ocorrido um homicídio dentro da casa e que a vítima era seu sobrinho, que estava dormindo.
Os policiais chegaram e pediram para ver a cena do crime. “Perguntaram por que eles tinham levado o travesseiro e a colcha da cama. Perguntaram se eu tinha limpado lá, e eu falei que só estava entrando agora com ele. Não acharam nenhum vestígio de bala”, relatou à Ponte. Mizael havia sido levado para o Hospital de Chorozinho, onde chegou sem vida.

Protestos em toda a região
A morte do garoto causou diversas manifestações na região, com carreatas e queima de pneus. Em um dos atos por justiça, um PM perguntou para os manifestantes se queriam que ele matasse mais um. A versão dos policiais é de que Mizael estaria sob posse de uma arma e de que, na iminência de serem atacados pelo menino, atiraram contra ele. Na ocasião, eles entraram na casa porque teriam recebido a informação de que ali estaria escondido um homem foragido, apelidado de “Sequestro”.
Um inquérito policial militar instaurado pela própria PM para averiguar o caso entendeu que os policiais agiram em legítima defesa de si mesmo e de terceiros, conforme noticiou a Ponte. Em discordância ao entendimento da PM, o MP-CE denunciou Neemias Barros da Silva pelo cometimento do crime de homicídio qualificado por motivo fútil — crime doloso contra a vida e, que, portanto, deve ser julgado por um Tribunal do Júri.
Neemias também foi denunciado por fraude processual, assim como Luiz Antônio de Oliveira Jucá e um terceiro policial da ocorrência, João Paulo de Assis Silva, todos eles do Comando Tático Rural (Cotar). Segundo o MP-CE, que chegou a divulgar nota sobre a denúncia, “os três policiais teriam interferido na cena do crime, com o objetivo de dificultar as investigações e o fiel esclarecimento dos fatos”.
Ainda conforme o MP-CE relatou na denúncia, recebida pela Justiça em junho de 2022, o trio de policiais impediu a entrada de familiares de Mizael na casa após ele ter sido morto, saiu do local com o corpo do garoto, fez a limpeza da cena do crime e a retirada de objetos, e implantou uma arma na ocorrência para parecer que pertencia à vítima, “numa clara tentativa de sustentar a versão dada na delegacia plantonista”. O revólver, segundo a denúncia, não tinha perfil genético algum do menino.
Declarações ‘ululantemente falsas’
Neemias e Luiz Antônio chegaram a relatar que ambos teriam atirado após Mizael supostamente ter negado uma ordem de rendição. João Paulo reforçou o relato e disse que, de fora da casa, ouviu dois disparos. Na denúncia, o MP-CE considerou as alegações “ululantemente falsas”. Outras testemunhas disseram ter ouvido apenas um tiro. A perícia médica identificou um único projétil no corpo do menino.
Os policiais também alegaram, sem provas, que Mizael teria ligação com o foragido apelidado de “Sequestro”, preso posteriormente em situação alheia à morte do menino. Vizinhos e familiares reafirmaram, no entanto, que o garoto nunca teve envolvimento com criminosos. Passados mais de dois anos e meio desde a denúncia — e feitas as audiências de instrução do processo, em que as testemunhas e os réus puderam falar em juízo —, o Ministério Público mudou seu entendimento.
Nas alegações finais, antes que o juiz do caso decida se o réu seria levado ou não ao Tribunal do Júri, o promotor Sérgio Henrique de Almeida Leitão pediu a absolvição sumária de Neemias. Ele argumentou que o PM atirou em Mizael em legítima defesa. Leitão também solicitou a impronúncia (ou seja, a não ida a júri) de Neemias e dos outros dois PMs acusados de fraude processual, por entender que faltam provas para isso. “O acusado Neemias Barros da Silva encontrava-se em atendimento de uma ocorrência, que mirava cumprir ordem de prisão em desfavor de pessoa conhecidamente perigosa quando sofreu iminente ataque de um indivíduo, até àquela fração de segundos não identificada, em local escuro, e, portando uma arma de fogo”, escreveu o promotor nas alegações finais.
“Mais ainda, antes do disparo foram proferidas palavras mirando a rendição, e, mesmo assim a ameaça não cessou, sendo que uma vez se sentindo ameaçado em perder sua vida, utilizou dos meios necessários para repelir a injusta agressão de que estava sofrendo, efetuou uma única vez em direção a vítima, o que denota a completa ausência de letalidade na ação”, argumentou. O promotor alegou ainda que a conclusão do inquérito feito pela própria PM “corrobora com maior convicção” a compreensão de que foi legítima defesa.
Sobre a imputação de fraude processual, ele afirmou que a cena do crime não foi preservada porque Mizael precisou ser imediatamente socorrido e devido à perícia no local do crime ter sido feita só dois dias depois. O promotor Leitão assumiu o caso em respondência — ou seja, substituindo o titular da Promotoria de Justiça Vinculada de Chorozinho, Rodrigo Lima Paul. A Ponte havia questionado o MP-CE sobre a razão pela qual houve a troca no andamento do caso e se o órgão reconhece que o novo promotor peticionou em sentido oposto ao que a acusação pleiteava até então.
“A designação de membros para atuação nas comarcas vinculadas — como é o caso de Chorozinho, vinculada à comarca de Pacajus — obedece a critérios exclusivamente objetivos definidos no Ato Normativo n. 278/2022, em sistema de rodízio entre os promotores de justiça que atuam na comarca sede”, escreveu o MP-CE em nota à reportagem. “No caso em questão, a Promotoria de Justiça de Chorozinho, no exercício de sua independência funcional, manifestou-se pela absolvição sumária do policial militar N. B. S., por entender que ele agiu em legítima defesa”, acrescentou.
Defensoria contestou MP-CE publicamente
Na ocasião da mudança de entendimento do MP-CE, a Defensoria Pública do Estado do Ceará emitiu nota manifestando profunda preocupação. “Desde julho de 2020, a Defensoria acompanha integralmente o caso, participando de todas as etapas processuais — incluindo o inquérito policial, a reconstituição dos fatos e a fase de instrução — e oferecendo assistência contínua aos familiares da vítima, cuja conduta exemplar tem sido reconhecida em todos os relatos e testemunhos”, disse o órgão.
“Ressaltamos que a principal testemunha do caso encontra-se desaparecida há dois anos, uma circunstância que intensifica sua complexidade”, escreveu ainda a DPCE.
Movimentos sociais também criticaram a promotoria à época. “Essa decisão do MP-CE gera preocupação, pois exemplifica os desafios que o país enfrenta para responsabilizar agentes públicos de segurança e garantir a reparação às vítimas e suas famílias, especialmente contra pessoas negras e periféricas”, escreveram, em nota conjunta, a Anistia Internacional e o Cedeca Ceará.