Desembargadora decide que charges com críticas políticas feitas pelo cartunista Gilmar Machado Barbosa a Roger e Kleine, da banda paulistana Ultraje a Rigor, estão protegidas pela liberdade de expressão

A 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) rejeitou o recurso movido por Roger Rocha Moreira e Marcos Fernando Mori Kleine, da banda Ultraje a Rigor, contra o chargista Gilmar Machado Barbosa. Os músicos pediam R$ 30 mil em indenização por danos morais devido à publicação de charges feitas por Gilmar retratando a dupla.
A relatora do caso, desembargadora Maria do Carmo Honório, avaliou que “não houve qualquer conduta civilmente censurável” por parte do chargista. A decisão foi unânime entre os desembargadores da Câmara. Em outubro, a juíza Andrea de Abreu, do 11º Foro Cível, já havia negado o pedido de indenização e a solicitação para remoção das charges. Na ocasião, a magistrada destacou que Roger, Kleine e Gilmar são figuras públicas e, por isso, estão sujeitos a críticas na mesma medida em que se beneficiam da notoriedade. “Ora, onde há exposição, há crítica, sendo certo que a amplitude da reverberação dos fatos decorre da própria escolha pessoal sobre sua exposição midiática”, escreveu.
Leia também: ‘Fascistas falidos’: Músicos do Ultraje a Rigor perdem processo contra chargista
As charges se referem a uma polêmica anterior entre os músicos e o radialista Marco Antônio Abreu, conhecido como Titio, da rádio Kiss FM. O apresentador havia chamado os músicos de “fascistas”, e houve mobilização de Roger e Kleine pela sua demissão.
Gilmar Barbosa celebrou a decisão da Justiça. “Essa decisão em segunda instância solidifica e protege o que nos é de direito ao realizar o nosso trabalho crítico através da charge, podendo ser crítico e político como deve ser. A extrema direita cada vez mais usa o assédio judicial como forma de tentar nos intimidar e nos calar, mas às vezes o tiro sai pela culatra, como acontece nesse caso. Isso serve como exemplo para proteger a liberdade de expressão para nós cartunistas, jornalistas e artistas de um modo geral”, diz.

Para desembargadora, músicos são ‘figuras públicas’
No recurso, Roger e Kleine afirmaram que foram alvo de ofensas graves A dupla contestou o uso do termo “fascistas”, sob argumento de que a expressão remete a regimes totalitários marcados por tortura e assassinatos, e ressaltam que o radialista que inicialmente usou o termo se retratou. Também argumentam que a acusação de racismo se referia a uma crítica à depredação do patrimônio público e que a publicação foi ajustada no mesmo dia. Eles também questionaram a republicação da charge meses depois, dizendo não haver contexto justificável.
A expressão “lambebotas de genocída” foi considerada ofensiva por Roger ter familiares judeus. A dupla argumentou ainda que, como músicos e não políticos, não deveriam estar sujeitos ao mesmo grau de críticas públicas. A relatora destacou que uma das charges publicadas por Roger — em que um personagem preto dentro de um ônibus manifesta intenção de cometer um ato de vandalismo — é passível de múltiplas interpretações. Uma delas, considerando o contexto histórico brasileiro, seria a de “reprodução de um estereótipo discriminatório”.
“Nesse sentido, ao qualificar publicamente como ‘racista’ (p. 13) o promotor de conteúdo suscetível de ser interpretado como reafirmação de arquétipo racial associado à criminalidade, o apelado não se dissociou do campo legítimo da revolta contra a perpetuação de estigma estrutural excludente, operante como mecanismo de marginalização social”, escreveu Maria do Carmo.
Segundo a desembargadora, a caracterização de um ato reprovável exigiria uma extrapolação ou desconexão em relação ao conteúdo divulgado, o que, para ela, não ocorreu. Sobre a charge que usa a expressão “lambedor de botas”, a relatora afirmou que se trata de uma crítica ao posicionamento político assumido por Roger. “Dessa forma, ainda que ácida e contundente, está abrangida pela proteção conferida à liberdade de expressão”, pontuou.
Ela também reforçou que, embora não sejam políticos, Roger e Kleine são figuras públicas cuja atuação repercute no espaço coletivo — e, portanto, estão sujeitos a críticas.

Em outra charge, que utiliza a expressão “fascistas falidos”, a relatora igualmente não identificou abuso de direito. Segundo ela, o termo havia sido usado anteriormente pelo radialista Titio Marco Antonio e gerou reação de Roger e Kleine, que pediram sua demissão.
A charge foi produzida nesse contexto e acompanhada de uma manifestação de solidariedade ao radialista. “Não houve, com isso, a formulação de qualquer imputação ofensiva, mas apenas a retratação, com o uso de recursos exagerados e críticos, próprios do gênero, de uma situação anteriormente conhecida”, escreveu.
O que dizem os músicos
A Ponte procurou os músicos por meio do advogado Paulo Orlando Júnior, que os representa na ação. Em nota, Roger e Kleine disseram que vão analisar o acórdão antes de decidir os próximos passos.
Eles também afirmaram que a discussão sobre os limites da liberdade de expressão ainda depende de uma decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário nº 662055/SP, que tem repercussão geral. Assim, o processo envolvendo os músicos pode sofrer uma eventual revisão conforme seja a interpretação do STF sobre o tema.
“Estamos aguardando a publicação do acórdão para estudarmos as próximas medidas cabíveis a serem tomadas. A decisão definitiva sobre o tema liberdade de expressão será dada pelo STF no Recurso Extraordinário nº 662055/SP, Relator o D. Ministro Luís Roberto Barroso, Tema nº 0837. Até lá todos os processos que envolvem o assunto serão suspensos”, disseram em nota.