Investigação sobre a morte de Matias Menezes Caviquiole, de 24 anos, foi arquivada. Inicialmente, policial alegou que o tiro tinha sido acidental, mas MP-SP defendeu a tese de excludente de ilicitude
A investigação sobre a morte de Matias Menezes Caviquiole, de 24 anos, foi arquivada. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) concordou com o entendimento do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) de que o Policial Militar Dernival Santos Silva agiu em legítima defesa.
Um vídeo divulgado pela Ponte na época mostrou Matias de costas e com as mãos para o alto, em sinal de rendição, antes de ser atingido.
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O caso ocorreu em 5 de novembro de 2023, no Morro do Piolho, Capão Redondo, zona sul de São Paulo. A imagem que registrou parte da ação também mostrou Matias sendo segurado pelo soldado Dernival. Em determinado momento, o PM solta o jovem, se abaixa e, em seguida, ocorre o disparo. O tiro atingiu a barriga do jovem.
Mesmo exibido em diversos veículos de imprensa, o vídeo [abaixo] não foi anexado ao inquérito policial.
O PM chegou a ser preso em flagrante por homicídio culposo, mas foi liberado após o pagamento de fiança no valor de R$ 1.350. Na ocasião, em depoimento à Polícia Civil, ele alegou que o tiro foi acidental.
“Em dado momento, o tal segundo indivíduo realizou um movimento que derrubou o cassetete do interrogado. Quando de repente se viu na eminência da grave ameaça o interrogado sacou seu armamento para sua segurança e ao tentar acessar seu cassetete que estava caído no solo, o interrogado foi surpreendo com um disparo acidental, sem a intenção de desferir contra o suspeito”, diz o trecho do depoimento de Dernival, que consta no relatório final do inquérito policial.
Câmera corporal registrou ação
O relatório final do inquérito policial cita apenas depoimentos de policiais que participaram da ação. Ao todo, cinco PMs, incluindo Dernival, foram ouvidos. Nenhuma testemunha além dos militares foi identificada e ouvida pela delegada Magali Celeghin Vaz, da 1ª Delegacia de Polícia de Repressão a Homicídios (Sul). O relatório foi apresentado em 22 de novembro de 2023.
O documento cita as imagens registradas pela câmera corporal de Dernival. Na ocasião, a análise delas motivou a prisão. A Ponte teve acesso aos vídeos das câmeras corporais do policial e de seu colega, Endrick Heras Gomes [no alto desta reportagem].
As imagens da câmera de Dernival registram o momento da abordagem, mas sem som. A norma da Polícia Militar de São Paulo estabelece que o áudio deve ser acionado nesse tipo de ocorrência. O acionamento faz com que, além da gravação da imagem, que ocorre de forma ininterrupta, seja possível ouvir diálogos.
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Na imagem, é possível ver o policial descendo da motocicleta que pilotava e correndo atrás de Matias. A perseguição dura cerca de 30 segundos até que o jovem seja alcançado pelo PM.
A imagem mostra Dernival segurando a blusa de Matias, que parece assustado, apontando a arma em sua direção. Na sequência, o jovem está no chão, mas logo é levantado. É possível ver Matias com as mãos para cima, enquanto o policial aponta a arma contra ele e o segura pelo casaco.
Na sequência é possível ver Matias ferido e o PM Dernival pegando do chão a tonfa (cassetete). Em depoimento, o policial disse que Matias fez um movimento que derrubou o cassetete, mas a imagem da COP não deixa evidente essa ação.
Análise das imagens
Para José Vicente da Silva, coronel reformado da PM e ex-secretário nacional de Segurança Pública no governo Fernando Henrique Cardoso (2002), a imagem não permite uma interpretação clara sobre o que ocorreu. “Não dá para concluir sobre erros ou acertos da abordagem policial com essas imagens. Não é possível ver todas as ações da suposta vítima, nem ver com precisão as ações dos policiais”, diz.
Já na opinião do sociólogo e coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, Sugar Ray Robson, as imagens não mostram “qualquer ameaça” de Matias que justificasse o tiro. “Com o devido respeito à decisão do Poder Judiciário sobre o caso em questão, após visualizar as imagens enviadas, não consegui discernir qualquer ameaça do cidadão abordado que justificasse o tiro realizado pelo PM”, diz.
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A câmera usada pelo colega de Dernival, o PM Endrick, registra o começo da abordagem. É possível ver um homem de azul sendo abordado por policiais. Endrick vai até Matias com a motocicleta e diz: “Vai, vai, tiozão. Você quer ir para onde nessa porra aqui? Vai para fora daqui. Vai, caralho”.
Em seguida, o jovem corre e é perseguido por Dernival. Endrick segue com a abordagem e manda que as pessoas que estavam junto a Matias vão embora. “Vai, ‘rapa fora’, quero que se foda.”
A imagem não mostra a confusão relatada pelos policiais em depoimento — que disseram que ao chegar no local, se depararam “com diversos populares tentando arrebatar o condutor da motocicleta Lander”. O PM e o colega contaram terem sido acionados para apoiar uma equipe que abordava um homem em uma motocicleta.
Legítima defesa
Analisando as duas imagens das câmeras corporais, no entanto, a promotora Renata Cristina de Oliveira Mayer, da 7ª Promotoria de Justiça do III Tribunal do Júri, avaliou ter ficado “evidenciada a ocorrência da excludente de ilicitude da legítima defesa”.
No pedido, Renata diz que as imagens da câmera corporal do PM mostram Matias “partindo para cima”, “tentando, aparentemente, retirar algo de suas mãos”, momento em que houve o disparo. No requerimento assinado em novembro de 2024, ela afirma que o policial não agiu com excesso, já que efetuou um único disparo.
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A juíza Isabel Begalli Rodriguez, da 3ª Vara do Júri, acolheu o pedido do Ministério Público em 29 de novembro do ano passado.
Defensoria vê homicídio, ao menos culposo
A Defensoria Pública, que representa a família de Matias, pediu a reconsideração do arquivamento. Para o órgão, há fundamentos sólidos para oferecimento de denúncia por homicídio com dolo eventual ou, ao menos, culposo.
O vídeo divulgado pela Ponte e demais veículos não constou nos autos do processo, também apontou a Defensoria. O órgão defende que, nesta imagem, é possível ver que Matias “não tentou em nenhum momento pegar qualquer objeto” que o PM estivesse segurando e a tonfa (cassetete) do policial caiu sem qualquer intervenção. “Matias não representava qualquer perigo ao policial e nem resistia”, conclui.
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É solicitado que essas imagens sejam periciadas e que sejam analisadas quadro a quadro, a distância entre as partes, especialmente, Matias em relação à tonfa do policial.
A Defensoria também destaca que a defesa do PM mudou a tese sobre o crime de disparo acidental para legítima defesa — o que contraria o depoimento do próprio policial.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP), o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) e a defesa do policial Dernival.
Em nota, o MP-SP disse: “O MP-SP se manifesta nos autos.” Já o TJ-SP informou que os magistrados são impedidos pela Lei Orgânica da Magistratura de se manifestar sobre processos em andamento.
“Além disso, o Tribunal de Justiça não se manifesta sobre questões jurisdicionais. Os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”, diz a nota.
A Ponte procurou a defesa do policial Dernival, mas não houve retorno. A SSP-SP também não se manifestou até o fechamento do texto. Caso haja retorno, a matéria será atualizada.