Após receber depoimentos de testemunhas protegidas, juiz viu contradição com versão policial e determinou “aprofundamento das investigações”; Lelis Henrique foi morto em agosto de 2021 durante abordagem em São José dos Campos (SP)
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo determinou o desarquivamento e “aprofundamento das investigações” da morte do motoboy Lelis Henrique Gadioli dos Santos, 28 anos, baleado por um policial militar em 12 de agosto de 2021, na cidade de São José dos Campos, no interior de São Paulo.
O juiz Milton de Oliveira Sampaio Neto tinha determinado o arquivamento do caso em 26 de abril, com base no pedido feito pelo Ministério Público Estadual. O promotor Luiz Fernando Guedes Ambrogi alegou que a ação foi em legítima defesa “porque o policial efetuou um disparo contra Lelis, após avistar uma arma de fogo em seu poder e em virtude da constante recusa dele em obedecer à ordem policial para que fosse realizada a abordagem” e que os depoimentos das testemunhas protegidas “não esclareceram a dinâmica dos fatos, pois chegaram ao local após Lelis ser atingido”.
No entanto, esses depoimentos só foram anexados aos autos do processo em 1º de julho, depois de o juiz decidir pelo arquivamento. Ao apreciar novamente o caso agora com esses depoimentos, o magistrado entendeu que “os policiais militares envolvidos na ocorrência prestaram depoimentos parcialmente contraditórios”, já que inicialmente os dois disseram que não haviam conseguido identificar com certeza se o objeto que o jovem levava na cintura era mesmo uma arma, mas depois o policial mudou o depoimento e disse que “atirou por ter identificado uma arma de fogo na cintura do então suspeito, para repelir iminente agressão”. Com isso, Sampaio Neto afirmou “haver necessidade do aprofundamento das investigações” e mandou que o processo fosse remetido à Procuradoria-Geral de Justiça.
Uma das testemunhas protegidas disse à Polícia Civil que no dia do crime estava conversando com Lelis por volta de 1h da madrugada e que depois ele resolveu passar na casa de um amigo que mora próximo para “fumarem um cigarro de maconha e logo em seguida voltaria para jogar videogame”. Segundo ela, o percurso demoraria cerca de um a dois minutos e Lelis não tinha arma nem envolvimento com crime.
Quando a vítima saiu, logo em seguida a testemunha “ouviu um disparo de arma de fogo muito próximo” e um grito do amigo de Lelis. Saiu e viu o corpo dele no chão, tendo ido até ele, “o segurado em seus braços e notado os últimos suspiros dele”. A testemunha perguntou a um policial “baixinho” e “gordinho” o porquê de ter atirado em Lelis, e o PM teria lhe respondido “atirei mesmo” e dado risada. Relatou que teme pela sua vida e de familiares “pois diversos policiais que lá se encontravam passaram a fotografá-lo e a lhe olhar fixamente para intimidá-lo”. Também disse que o policial que atirou em Lelis ficou entre os demais policiais “como que protegido” e que o ofendeu dava risada.
Outra testemunha disse que ela e o marido ouviram um barulho forte e saíram na rua, tendo visto uma viatura de polícia com as luzes ligadas e um corpo caído de barriga para cima se contorcendo. Ao se aproximarem, reconheceram Lelis e perguntaram o que havia acontecido, sendo que um dos policiais, “o mais baixo, gordinho”, depois identificado como Fábio Henrique Rivelo Simião, teria dito que “o rapaz havia passado mal durante a abordagem”. O marido da testemunha questionou o PM sobre o tiro, que teria lhe dito “não houve qualquer tiro”. Em seguida, a outra testemunha apareceu e gritou que ele matou Lelis.
Ela também relatou que os PMs estavam com “má vontade” de chamar o socorro e que quando a ambulância do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) chegou, pode ver que retiraram do bolso de Lelis duas balas de iogurte de embalagem rosa que deveriam ser para os filhos dele. Depois, um policial de cabelos grisalhos, segundo ela, passou a intimidá-la, dizendo que “ela era muito folgadinha que estava agitando a população”, e outros passaram a fotografá-la junto a seu marido. Ela contou que conhece Lelis desde criança e que não viu arma perto dele em nenhum momento. Também denunciou que, depois do ocorrido, viaturas têm passado “devagarinho” pela sua rua e que “teme por sua segurança de seus filhos e de seu marido, teme ter sua casa invadida por policiais militares que possam colocar droga em sua casa e tentarem prendê-la”.
A versão policial
No boletim de ocorrência, os soldados Felipe da Silva Della Rosa e Fábio Henrique Rivelo Simião, do 46º BPM/I (Batalhão de Polícia Militar do Interior), dão outra versão. O registro é confuso. Simião é apontado como autor/vítima e Della Rosa como testemunha. O histórico, no entanto, é relatado por Della Rosa e há um erro indicando que ele patrulhava com Felipe, ou seja, consigo mesmo.
Ele narra que estavam de patrulhamento por volta da 1h20, na região da Praça Padre José Carlos Passe, próximo a uma escola infantil, quando teriam visto “um indivíduo debruçado na janela da porta de um veículo, de cor escura”, mas não sabiam modelo ou placa. Disseram que o local seria conhecido como “ponto recorrente de tráfico de drogas” e que o tal indivíduo estaria em “atitude suspeita como se estivesse vendendo drogas” e que decidiram abordá-lo.
Os PMs alegam que o indivíduo, ao ver a viatura, teria corrido “segurando algo na cintura” em direção à Rua Maria Carolina de Jesus. A dupla passou a persegui-lo e emparelhou com ele na rua. Teria dado “voz de comando de parada”, mas o jovem não teria obedecido e voltou correndo em direção à praça com as mãos na cintura, segundo eles, “sugerindo” que estaria segurando algo. Ainda teriam tentado encurralá-lo novamente, mas não conseguiram. Della Rosa afirma que viu uma arma na cintura do rapaz e que mandou que ele a largasse e levantasse as mãos. Segundo ele, o homem tentou sacar a arma, momento em que o soldado atirou. O indicado como autor do disparo é Simião, mas o histórico narrado indica ser Della Rosa.
Della Rosa afirma que Lelis parecia estar “sob efeito de drogas” porque, após o disparo, o rapaz tirou as mãos da cintura, foi em sua direção, “parou, se agachou e deitou ao solo, levantando as mãos”. A família do motoboy nega que o jovem usava drogas. O soldado disse que, ao revistá-lo, encontrou na cintura um revólver calibre 32, com cabo de madeira, com uma munição deflagrada, duas picotadas e três intactas. Ao abrir a jaqueta de Lelis, o PM disse que viu que ele foi baleado no tórax e acionou o resgate.
Nos termos de depoimento de cada um dos PMs, enquanto Della Rosa disse que viu Lelis segurando algo na cintura que não conseguia ver, Simião disse que Lelis corria com as mãos levadas à cintura e depois “avistou uma arma na cintura do indivíduo e, de imediato, de voz de comando para que mesmo largasse a arma e levantasse as mãos, mas ele não obedeceu e tentou sacar a arma, o que motivou o depoente efetuar um único disparo contra o indivíduo para sua própria defesa e de seu parceiro”.
O que diz a polícia
A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública sobre as investigações do caso, a atuação da Corregedoria da PM e se os policiais envolvidos seguem em atividades de patrulhamento. Até a publicação, a pasta não respondeu.
O que diz o Ministério Público
A reportagem solicitou entrevista com o promotor que pediu o arquivamento e questionou a atuação da Promotoria, tendo em vista denúncias de coação por parte das testemunhas e que o MP tem atribuição de controle externo da atividade policial, mas a assessoria não retornou o contato.