Aprovada pelo Senado, lei gera polêmica por direcionar à Justiça Militar julgamento de agentes das Forças Armadas que praticarem crimes contra civis. Antes, acusados respondiam na Justiça Comum
O presidente Michel Temer (PMDB) sancionou nesta segunda-feira (16/10) o projeto de Lei da Câmara n° 44/2016. Aprovado no Congresso Nacional e pelo Senado Federal na semana passada, o texto transfere exclusivamente à Justiça Militar o julgamento de agentes das Forças Armadas que praticarem crimes enquanto atuam em ações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem). A maior parte destas operações ocorrem em favelas e protestos junto à Polícia Militar, como caso recente do Rio de Janeiro, na favela da Rocinha.
Anteriormente, o artigo 125 da Constituição determinava que crimes cometidos por militares contra civis devem ir a julgamento em Tribunal de Júri, garantindo o direito de julgamento justo, imparcial e independente, segundo o texto. O projeto aprovado por Temer vem da Câmara e não passou por alteração no Senado. A aprovação se deu por 39 votos favoráveis e oito contrários.
Assessor do núcleo de atuação política do IBCCRIM ( Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Gabriel Santos Elias explica que o projeto foi elaborado para valer durante a realização das Olimpíadadas no Brasil, em 2016, com prazo de validade somente para aquele ano. “Se olhar o projeto que foi remetido à sanção para o Presidente, este prazo ainda está lá. Os senadores, ao invés de modificarem o projeto, retirando esse prazo, fizeram um acordo para o Temer vetar o artigo que trata do prazo”.
Caso o projeto fosse modificado, ele teria que ser votado novamente na Câmara. “Já que lá foi aprovado com o prazo limite. Os senadores, com esse acordo, impediram os deputados de participarem da decisão. Muitos deputados que votaram a favor do projeto para valer apenas para às Olimpíadas certamente seriam contra a vigência eterna dessa mudança”, destaca. “Ninguém está falando sobre isso e é muito importante”.
A tentativa de alterar a legislação gera críticas por parte de instituições de defesa dos direitos humanos nacionais e fora do Brasil. A organização Conectas Direitos Humanos criou uma campanha denominada “Veta, Temer” como forma de protestar contra a medida. Segundo a organização, caso vete, o presidente Temer pode evitar que “ haja um salvo conduto para ações violentas cometidas por militares”.
“Esta chamada ‘segurança jurídica’, nas palavras do Exército, garante que um soldado que, por exemplo, esteja atuando em missões GLO (Garantia da Lei da Ordem), ou seja, exercendo funções de polícia, como vem ocorrendo no Rio de Janeiro, seja julgado por outros militares da ativa, ao invés de juízes com bacharel em direito, no caso de se ver envolvido na morte de um civil”, aponta.
A Anistia Internacional também se posicionou, argumentando que “as autoridades brasileiras têm utilizado de maneira crescente as Forças Armadas para o policiamento ostensivo das áreas urbanas no Brasil, resultando em um vasto número de violações aos direitos humanos”, sustenta o grupo, em nota.
Assim como a Conectas, a Anistia criou uma campanha. Em seu site, um link coleta assinaturas pedindo para o presidente vetar o projeto nomeado informalmente de “licença para matar”.
Outra organização a se posicionar contrariamente à mudança na lei é a Human Rights Watch. Para o grupo, aprovar o novo texto significa abandonar uma “conquista significativa da democracia brasileira”, um passo contrário ao dado após o fim da Ditadura Militar. Em 1996, houve a transição dos julgamentos do Tribunal Militar para a Justiça Comum no Código Penal Militar, aprovado em 1969, em meio ao regime ditatorial, no qual militares julgavam crimes praticados por militares.
“A [nova] lei reestabeleceria uma prática comum das ditaduras da América Latina, quando militares julgavam a si mesmos em casos de homicídios de civis. O projeto estabeleceria um sistema a favor dos soldados acusados de homicídios de civis e dificultaria às vítimas de graves violações de direitos humanos obter justiça”, sustentou a diretora do escritório Brasil da Human Rights Watch, Maria Laura Canineu
Segundo Gabriel Santos Elias, do IBCCRIM, a Justiça Militar não tem autonomia necessária para julgar os casos de militares que tenham cometido crimes em situações de operações de Garantia da Lei e da Ordem. “Os militares que fazem parte da Corte Militar são militares na ativa e se submetem à hierarquia militar. Eles não poderiam julgar com imparcialidade a ação de um militar que foi a alguma operação sob o comando de seu próprio comandante”, considera.
Ele destaca que a transferência da Justiça Comum para a Justiça Militar dá mais segurança jurídica para a ação de militares nas operações de segurança pública. “Há menos constrangimento caso ocorra algo errado nessas operações. Isso é ruim, pois funciona como um incentivo para ações das Forças Armadas em operações de segurança pública, o que, na prática, são militares das Forças Armadas brasileiras combatendo o próprio povo, o que é principiológicamente contraditório e equivocado”, explica.
“A tendência é que, com a validade dessa nova lei, mais governadores requeiram a ação das Forças Armadas para atuação em operações de segurança pública que, com a crise econômica e a política de ajuste fiscal, diminuíram recursos de assistência social e agravaram o problema de segurança pública em todo o Brasil”, avalia.