Justiça decretou afastamento de dois dos quatro PMs envolvidos na ocorrência que vitimou Gabriel Ferreira Messias da Silva, de 18 anos, que trabalhava como entregador de aplicativo. Vídeo indica que agentes “plantaram” arma

Fernanda Ferreira da Silva, de 39 anos, diz que só foi começar a entender o que havia ocorrido com o filho Gabriel Ferreira Messias da Silva, de 18 anos, dias depois de ter ido reconhecê-lo já morto no hospital Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo. Quando o encontrou na unidade, na madrugada de 27 de novembro de 2024, o jovem estava apenas de fralda e com uma marca de tiro no peito — uma funcionária disse sem maiores detalhes que o disparo teria partido de um policial.
Apenas depois do enterro do filho, a mãe teve acesso a um primeiro esclarecimento, ainda insuficiente: o boletim de ocorrência, no qual policiais militares narravam uma fuga de motocicleta do jovem e um iminente confronto, ocasião em que ele estaria armado e teria sido baleado por um agente.
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Na semana passada, seis meses depois da morte de Gabriel, veio a público um vídeo que trouxe maior clareza ao caso e que desmente a versão policial. No registro, o jovem aparece agonizando no chão e implorando pela própria vida, enquanto os policiais parecem manipular a cena “plantando” uma arma como se fosse da vítima.
“Tive que deixar minha dor de lado para buscar justiça, para provar a inocência do meu filho, porque, além de terem matado ele, quiseram fazer com que fosse ladrão, e os ladrões eram eles”, diz a mãe.
Gabriel estaria desarmado
Na noite de 26 de novembro, Gabriel saiu com dois amigos para se distrair em uma breve folga, cada um em uma motocicleta. O jovem não era habilitado, mas já usava a moto para trabalhar como entregador por aplicativo — o que lhe permitia ajudar a mãe e outros três irmãos, dois deles ainda crianças, com seis e oito anos. A família conta que ele próprio havia adquirido o bem ao juntar dinheiro com os outros empregos, que teve desde os 14, como vendedor de “zona azul” e ajudante em uma marcenaria.
Os três amigos abasteceram as motos em um posto de combustíveis na Vila Cisper, bairro da zona leste da capital, e, ao saírem do local pouco depois das 23h, receberam ordem de parada de PMs embarcados em uma viatura do 4º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (Baep).
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Os jovens tentaram fugir, cada um indo para uma direção diferente, mas Gabriel acabou alcançado na esquina das ruas Belém Santos e Colônia Leopoldina, também na Vila Cisper, onde caiu com a motocicleta. A versão policial era de que Gabriel se desequilibrou antes de cair.
Depois disso, ainda segundo a PM, o entregador teria se levantado e levado as mãos à cintura, quando o sargento Ivo Florentino dos Santos, sentado dentro da viatura junto de outros três policiais militares, teria atirado contra ele para “cessar iminente ameaça”. Ao revistarem a vítima posteriormente, eles teriam encontrado então uma arma de fogo com ela. Imagens gravadas pelas câmeras corporais dos próprios policiais mostram, no entanto, que Gabriel não estava armado quando foi baleado.
Arma chutada debaixo da moto da vítima
Em um dos vídeos, repercutido a princípio pela TV Globo, o soldado Ailton Severo do Nascimento, também presente na ocorrência, questiona o jovem se a moto era roubada, o que ele nega, enquanto também pede ajuda: “Eu sou trabalhador, senhor, para que isso comigo, meu Deus?”. Ailton se agacha, como se simulasse ter achado algo, e fica então de costas para a vítima, sob ordens de um outro policial que diz “vira, vira vira”.
Ao se postar de frente para o jovem novamente, Ailton permite que a câmera acoplada em si filme Ivo chutando uma arma para debaixo da motocicleta. Também estavam na ocorrência os policiais Evanildo Costa de Farias Filho, que dirigia a viatura, e Gilbert Gomes dos Santos. Todos eles estavam sob comando de Ivo na ocasião. Gabriel morreu antes mesmo de ser socorrido ao hospital.

Cartão, bolsa, capacete e moto sumiram
Os dois amigos de Gabriel que conseguiram fugir avisaram o pai dele, Diego Messias da Silva, de 38 anos, de que alguma coisa poderia ter acontecido. O familiar foi à esquina da ocorrência, quando soube por vizinhos que o filho havia sido levado ao hospital. Ele recebeu depois a informação de uma médica plantonista de que o jovem teria morrido supostamente em razão de uma parada cardiorrespiratória após um acidente de trânsito. Diego chamou então Fernanda para reconhecerem o corpo, quando se depararam com o filho baleado e sem quaisquer pertences, recolhidos pela PM como supostas provas.
“Quando a gente chegou lá, a segurança falou: ‘É o rapaz do tiro?’. E eu disse: ‘Tiro? Que história é essa?’. Procurei a médica, a assistente social, e ninguém me falou absolutamente nada. Depois, quando autorizei a doação das córneas do Gabriel, uma moça me falou do tiro de um policial, mas sem saber explicar direito”, relembra a mãe.
“Além de terem matado o Gabriel e de não terem prestado socorro, ainda roubaram o meu filho, porque, até hoje, não apareceram os pertences dele — o capacete, o cartão bancário, a bolsa dele, as chaves de casa, a moto. Ninguém sabe onde está”, diz.
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“Fizeram o meu filho ir para o hospital só de fralda, para ser levado como indigente. Por isso estou lutando por justiça. Meu filho tinha uma família, quero que seja feita justiça.”
Fernanda diz que, em março, voltou ao hospital Ermelino Matarazzo para fazer uma reclamação formal à ouvidoria, em razão da postura da médica, que entendeu ter tentado acobertar os policiais. A mãe diz que saiu de lá, no entanto, sem prestar a queixa, depois de ter sido humilhada por uma funcionária.
A Ponte questionou a prefeitura, sob gestão Ricardo Nunes (MDB), se teve ciência disso: “A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de São Paulo informa que o paciente citado pela reportagem deu entrada no Hospital Municipal Ermelino Matarazzo já em óbito, em novembro do ano passado. Nesses casos, o corpo é encaminhado ao Instituto Médico Legal (IML), responsável pela elaboração do laudo final. Quanto à ouvidoria, o protocolo prevê que o registro seja realizado diretamente pelo munícipe, de próprio punho”, retornou, em nota.
Justiça não prende envolvidos
Fernanda diz que recebeu algum acolhimento apenas ao contatar o movimento social Mães em Luto da Zona Leste, que a orientou a buscar a Defensoria Pública estadual (DPESP). O órgão público, que agora atua como assistente de acusação no caso de Gabriel, foi que levou ao inquérito um relatório no qual contesta a versão policial, com base na degravação das imagens captadas pelas câmeras corporais.
O Ministério Público paulista (MP-SP), à frente da acusação, repetiu o entendimento da Defensoria de haver indícios de fraude processual e pediu o afastamento cautelar dos policiais Ivo Florentino dos Santos e Ailton Severo do Nascimento, o que foi acatado pela Justiça no mês passado, ocasião em que as partes do processo já tinham ciência dos vídeos repercutidos recentemente pela imprensa. Os outros dois policiais envolvidos no caso, no entanto, Evanildo Costa de Farias Filho e Gilbert Gomes dos Santos, foram poupados de qualquer sanção até aqui. A mãe de Gabriel diz que o afastamento é insuficiente.
“Eu estou falando nesse período todo, mas ninguém me deu credibilidade. A única oportunidade que eu tenho é gritar, para ver se alguém me ouve e decreta a prisão desses policiais. Como que o Ministério Público vê isso, o juiz vê isso, e pedem apenas o afastamento desses policiais? Se o meu filho tivesse matado um policial, nem vivo na delegacia ele iria chegar”, diz Fernanda, que trabalha como recepcionista do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil.
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A mãe de Gabriel diz se sentir amedrontada. Ela relata ainda que, no dia seguinte à morte do filho, os policiais envolvidos no caso teriam ido a condomínios próximos ao local do crime para intimidar a vizinhança, de modo que fossem apagadas eventuais imagens gravadas por câmeras de segurança. Especialistas consultados pela Ponte, que não puderam ter acesso à íntegra dos autos do processo, afirmam haver margem para a imposição da prisão preventiva aos policiais envolvidos.
“Sempre que é possível evitar uma prisão preventiva, a Justiça deve assim fazer, porque ela é decretada antes de a pessoa ter sido julgada e condenada em definitivo. Uma das hipóteses clássicas da imposição de prisão preventiva é justamente quando o investigado ou réu tenta interferir na produção de provas de forma fraudulenta, tenta criar ou destruir provas”, avalia o advogado Marcelo Feller.
“Vale destacar a grande diferença no tratamento que o Ministério Público dá aos réus policiais em relação a outros réus. Em uma situação dessa com um não policial, a chance de virar uma prisão preventiva é muito grande, porque existem os indícios da fraude processual demonstrados pelas câmeras. Essa questão das ameaças também poderia ser um requisito para a prisão preventiva, mas é preciso ver como isso chegou ao processo, se foi uma denúncia formalizada”, afirma a advogada Fernanda Peron.
O que dizem as autoridades
A Ponte questionou o MP-SP, via assessoria de imprensa, sobre por qual razão não pediu a prisão preventiva dos quatro policiais envolvidos e se teve ciência da intimidação supostamente cometida por eles para coibir a produção de provas. A resposta do órgão não contemplou as perguntas. “Houve o pedido de afastamento de dois policiais que atuaram de forma ativa na suposta fraude processual e solicitação de ofício à Corregedoria da Polícia Militar para que investigasse o caso”, respondeu.
A reportagem perguntou à Secretaria da Segurança Pública paulista (SSP-SP), submetida ao governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), onde estão os pertences de Gabriel e se a Corregedoria da Polícia Militar já havia tido acesso aos vídeos recém-repercutidos pela imprensa, dos policiais aparentemente forjando a cena do ocorrido. Em caso positivo, questionou se houve determinação de afastamento antes da decisão judicial do mês passado.
A resposta da assessoria de imprensa da SSP-SP também não esclareceu as dúvidas da Ponte: “O Inquérito Policial Militar (IPM) foi concluído e encaminhado ao Poder Judiciário para análise. Os policiais envolvidos seguem afastados. Paralelamente, a Polícia Civil conduz investigação sobre o caso por meio do DHPP, sob sigilo, com o objetivo de esclarecer todas as circunstâncias.