Após a decisão do Supremo Tribunal Federal que regulamentou (em parte) a cannabis no Brasil, dezenas de perguntas de usuários têm surgido; Ponte consultou especialistas para responder principais questões
Desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela descriminalização do porte de até 40g de maconha ou seis plantas fêmeas no fim de junho deste ano, a internet tem levantado inúmeras questões sobre a nova situação da diamba. Entrevistamos os especialistas Erik Torquato, da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, Nathalia Oliveira, diretora executiva da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas e Luis Carlos Valois, juiz do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM) e autor de O Direito Penal da Guerra às Drogas, e reunimos aqui algumas das questões mais buscadas sobre o uso recreativo da flor de cânhamo, para facilitar a enfumaçada memória do usuário – confira a lista abaixo:
Liberou a maconha no Brasil? Fumar maconha é crime?
Não. O STF decidiu que não é mais crime você adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40 gramas de maconha ou plantar até seis plantas fêmeas de maconha desde que seja para consumo próprio. Isso não significa que a conduta não é passível de sanção. A droga vai ser apreendida no caso de uma abordagem policial. A diferença é que agora você definitivamente não pode ser preso ou ter passagem criminal por isso, ou seja, você não perde seu réu primário se for considerado usuário.
Nem tudo que deixou de ser crime se torna automaticamente liberado, explica o advogado Erik Torquato, que é membro da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas. “Não é crime atravessar o sinal vermelho, mas nem por isso é permitido. É um ilícito [infração] de trânsito administrativo passível de multa. Com o porte de maconha, pela decisão do STF, agora é assim: continua sendo proibido, só que com uma previsão de sanção administrativa”, explica.
A corte determinou que a decisão vale até o Congresso aprovar legislação específica.
Agora que descriminalizou, sou obrigado a usar maconha?
Parece uma pergunta boba, mas tem rolado muito por aí, especialmente após fake news espalhadas por seguidores da extrema-direita. A resposta é não. Por lei, ninguém pode ser obrigado a nada. O mesmo serve para a questão da legalização do aborto ou da união homoafetiva. Só vai usar maconha quem desejar fazê-lo.
Quanto é 40 gramas de maconha? Quanto pesa um cigarro de maconha?
Esse volume é relativo. Depende do tamanho do cigarro ou do “baseado”, como é popularmente conhecido, do comprimento e da largura, tipo de material que foi embalado, até o seu formato, se está prensado ou se está mesclado com outras substâncias, por exemplo.
Se eu estiver com 41 gramas de maconha, posso ser preso como traficante?
Sim. A maioria dos ministros entendeu que mesmo a definição de 40 gramas é uma quantidade relativa e só não é crime quando for provado que o consumo é para uso pessoal. Porém, o crime de tráfico poderia ser configurado mesmo com volume igual, maior ou menor a 40 gramas desde que sejam confrontados outros elementos.
Para a ser enquadrado como tráfico, deve estar demonstrado que a droga está associada a alguma atividade de comercialização: “as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes”, como diz a decisão do STF.
No entanto, esse parâmetro estritamente numérico não coíbe que usuários continuem sendo enquadrados como traficantes, pois a política de segurança pública no Brasil é baseada no modelo de “guerra às drogas”, afirma Erik Torquato, da Rede Reforma. “Essa lógica de guerra às drogas serve tão somente ao encarceramento em massa e ao controle das populações periféricas por meios violentos”, explica. “Colocar 40 gramas ou meio quilo como diferenciação não vai resolver enquanto tiver uma política de criminalização do comércio de drogas. A gente sabe que a política criminal vai ser implementada de forma seletiva porque a lógica do sistema penal é seletiva e também de forma racista porque o sistema tem um racismo institucional enraizado nas suas bases”, critica.
Luis Carlos Valois, do TJ-AM, concorda. “O que mais causa encarceramento não é a quantidade. O que mais causa encarceramento é o judiciário permitir que a pessoa seja considerada traficante só com o testemunho da polícia”.
Isso porque também, explica Torquato, o policial que vai fazer a abordagem não tem como aferir se o que foi apreendido de fato é uma droga, já que depende de análise de perícia cujo setor responsável é a Polícia Civil. “Na prática, eu acredito que os usuários continuarão sendo levados para a delegacia até constatação da materialidade delitiva no caso do porte de maconha”, avalia.
Um ponto que o advogado destaca é que a decisão do STF não delimita, por exemplo, quantas gramas de maconha a pessoa pode ter a partir da extração das plantas que ela pode cultivar. “Seis plantas fêmeas rendem muito mais de colheita do que 40 gramas. Se a pessoa tem seis plantas e colhe mais do que 40 gramas, o que ela vai fazer com o excedente? Ela vai jogar fora?”, questiona.
Além disso, o texto da decisão diz “40 gramas ou seis plantas fêmeas”, o que, para o jurista, gera dúvida se a pessoa poderá portar a maconha em gramas enquanto, por exemplo, tenta cultivá-la. “Pela decisão, parece que a pessoa pode ter só um ou outro. Qual é a quantidade necessária, a mínima razoável, para um usuário cultivar sem precisar comprar? E ele precisa ter quantos gramas para que não precise comprar enquanto espera essa colheita que atenda o ritmo de consumo dele? Os ministros não responderam essa pergunta”, analisa.
Se eu passar um “baseado” para o meu amigo ou dividi-lo com outras pessoas, eu posso ser preso?
O artigo 33 da Lei de Drogas, que descreve o crime de tráfico de drogas, tem entre os verbos “entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente”. No sentido literal, pode ser enquadrado como tráfico.
Erik Torquato, da Rede Reforma, pondera que os ministros também poderiam ter observado essa questão sobre o consumo compartilhado e que, novamente, vai ficar à mercê da interpretação da polícia e do sistema de justiça para se enquadrar como usuário ou como traficante.
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Se eu fizer um “brisadeiro” posso ser preso por tráfico?
Depende. Confeccionar “brisadeiro”, que é o nome dado ao brigadeiro produzido com maconha, não é crime, mas pode ser configurado como tráfico se você for vender o doce, como no caso de uma jovem que foi acusada no Maranhão pela venda de “brisadeiros”, como a Ponte revelou no ano passado. A quantidade de maconha é irrelevante nesse sentido, pois o destaque é a atividade comercial, que é proibida.