Publicação lançada nesta semana busca identificar responsáveis pelos erros e conta como estão as vidas dos ‘condenados’ por crime que não cometeram
Já são 23 anos desde o dia em que seis pessoas começaram a ter suas reputações assassinadas ao serem acusadas de abusarem sexualmente de crianças de 4 anos, todas alunas da Escola de Educação Infantil Base, localizada no bairro da Aclimação, na zona sul de São Paulo.
A história, que além do abuso tinha o agravante da pedofilia, poderia assumir contornos mais cruéis ainda: dois dos apontados como mentores do crime eram os donos da instituição de ensino. Um detalhe: desde o primeiro instante, logo na primeira acusação feita em registro de ocorrências por duas das mães das supostas vítimas, não havia materialidade do crime.
Mesmo assim, as supostas vítimas e o delegado da Polícia Civil seguiram com a história e a imprensa embarcou, sem questionar, sem apurar ou buscar o outro lado – premissa basilar do jornalismo ético. Essa foi a inquietação que levou o jornalista Emílio Coutinho a se dedicar a escrever o livro “Escola Base: onde e como estão os protagonistas do maior crime da imprensa brasileira”, publicado pela Editora Flutuante.
Em 1994, o Brasil vivia sua primeira década de redemocratização, tinha passado pelo impeachment de Fernando Collor, estava alinhavando o plano de estabilidade que mudaria a moeda para Real e Fernando Henrique Cardoso despontava no cenário político, mas não tinha sido eleito ainda. Os tempos eram bem outros. A internet já era uma realidade, mas estava muito longe de ser o que é hoje. Os computadores eram aqueles 386 com conexão discada que caia toda hora. As redes sociais _que viriam a se tornar o local fértil para proliferação de juízes de internet e propagação de notícias falsas_ ainda poderiam parecer cenário de ficção científica.
Nesse sentido, o jornalista Emílio Coutinho avalia que, se o caso fosse hoje, a repercussão poderia ser pior ainda: “Hoje em dia não é apenas a imprensa que deve ter cuidado com o que publica, mas qualquer pessoa que tenha conta em alguma rede social. Sabemos que quando colocamos uma informação na internet não temos mais controle sobre ela, por isso é necessário pensar nas consequências que podem ter o compartilhamento de notícias e informações em geral”.
Até hoje, as provas desse crime não apareceram. Os acusados, que tiveram nomes, imagens e vidas expostas, foram julgados e condenados pela opinião pública e não pela Justiça. O tema acabou virando matéria obrigatória nas faculdades de comunicação de todo o país.
Ainda no calor dos acontecimentos, em 1995, o livro “Caso Escola Base – Os Abusos da Imprensa”, do jornalista Alex Ribeiro foi lançado e, durante duas décadas, foi a única referência. Agora, uma nova publicação sobre o caso busca esmiuçar como tudo fugiu do controle e o que aconteceu com os envolvidos.
Um dos antigos proprietários da instituição, Icushiro Shimada, morreu em 2014, em decorrência de um infarto. A mulher dele, Maria Aparecida, morreu anos antes, em 2007, por causa de um câncer. O jornalista Emílio Coutinho trocou uma ideia com a Ponte Jornalismo sobre seu livro:
Por que se interessou em voltar a um tema que, embora emblemático, já foi bastante explorado?
Meu interesse surgiu na faculdade, quando tive o primeiro contato com o tema. Ao pesquisar sobre ele na internet vi que existia pouca matéria, e a maior parte contava a história baseada no livro do Alex Ribeiro. Quando fui atrás do livro do Alex, encontrei apenas alguns raros exemplares através da estante virtual. Percebi aí que, apesar de ser um tema tratado em todas as faculdades de comunicação e direito do país, o material sobre ele era muito pobre. Queria fazer algo que recordasse o caso, ao mesmo tempo em que trouxesse algo novo. Então, resolvi atualizar a história para mostrar que, apesar de o caso estar cronologicamente distante, as consequências dele são sentidas até hoje pelos personagens
Afinal, o que aconteceu com os acusados da Escola Base?
Conto no livro o passo a passo da minha reportagem. Desda a primeira vez que fui para a rua buscar informações sobre o paradeiro deles, até os apertos que passei, sofrendo ameaças inclusive. Os acusados, em sua maioria, não querem tratar do caso e só falam sobre ele depois de muita insistência.
Eles tentam seguir a vida deixando o passado de lado, mas as consequências infelizmente são sentidas até hoje por eles e por suas famílias. A bem dizer eles não vivem, sobrevivem. A maioria deles não tem mais sonhos, apenas querem ter uma vida normal. O casal Shimada, Maria Aparecida e Icushiro, faleceu em 2014 e 2007, respectivamente. A Paula, sócia e professora, se separou do Maurício, o perueiro. O casal Saulo e Mara também se separou. O delegado Edélcio Lemos está em uma delegacia da periferia de São Paulo. O [jornalista] Valmir Salaro continua na TV Globo. Conversei com as mães que acusaram, Clea Parente e Lucia Eiko Tanoue. A primeira foi bem ríspida e a segunda não quis muita conversa. O Pedicini, o gringo, se tornou jornalista e não gosta de ser rotulado como vítima.
A que você atribui o grande erro no caso Escola Base? Por que?
Acredito que foi uma sucessão de erros. Difícil apontar um único vilão na história. A imprensa errou por acreditar cegamente na fonte oficial e não fazer uma apuração precisa. Ao contrário, se apoiou nas afirmações de um delegado que dizia ter provas de que o crime realmente havia ocorrido, apesar de que em nenhum momento ele tenha apresentado as mesmas aos jornalistas.
Mas o caso foi iniciado pelas duas mães que fizeram o boletim de ocorrência e que, com receio de que o caso não fosse devidamente investigado, chamaram a imprensa para pressionar as autoridades policiais. Todos estavam no seu direito, mas na minha opinião houve excessos por todos os lados. A imprensa podia fazer a cobertura do caso, mas não tinha o direito de divulgar os dados pessoais dos investigados e muito menos tratá-los como criminosos sem a conclusão da investigação.
O delegado podia falar com a imprensa, mas sua obrigação acima de tudo era de investigar o caso, ao invés de passar o dia dando entrevistas. As mães tinham o direito, e até mesmo o dever de fazer o boletim de ocorrência para que as autoridades policiais investigassem o possível abuso, mas não deviam ter chamado a imprensa e condenado por várias vezes os donos da escola, sem antes ter sido comprovado qualquer coisa. Ouvi dizer que a imprensa naquela ocasião estava em busca de uma pauta bombástica o suficiente para abrandar as notícias do impeachment do Collor, mas isso está no campo das hipóteses, e como não fiz a cobertura do caso na época, não posso afirmar com certeza.
>Você entrevistou o Valmir Salaro, ainda hoje repórter da TV Globo. Como você avalia a responsabilidade dele na história?
Entrevistei o Valmir, sim. Ele assume sua parcela de culpa no caso, mas também diz que não foi o único jornalista na história. Segundo o que me contou, a figura dele ficou marcada, sobretudo pelo fato de assumir abertamente a parcela de culpa. Ele foi o primeiro jornalista a dar matéria sobre o caso, mas acredito que se ele não estivesse ali, outro jornalista daria a história, portanto é difícil jogar toda a culpa nas costas dele. É claro que ele deveria ter apurado mais o caso, mas ele estava diante de um delegado que ele conhecia e que lhe apresentava um laudo do IML como prova. No calor do acontecimento, acredito que o jornalista acaba sendo tentado a aceitar essas informações oficiais como verdadeiras. Além do mais, é só colocar na conta da fonte, “a versão oficial apresentada pela polícia é essa e ponto”. Ele se salvaria de qualquer acusação. Mas não foi bem assim que ocorreu. Hoje em dia ele tem mais cautela.
E como você encaixaria o caso da Escola Base na ideia, bastante difundida, de julgamento da opinião pública, ou seja, a prática de condenar antes de julgar adequadamente?
Infelizmente essa é uma prática cada vez mais difundida, ainda mais em tempos de redes sociais. Hoje em dia não é apenas a imprensa que deve ter cuidado com o que publica, mas qualquer pessoa que tenha conta em alguma rede social. Sabemos que quando colocamos uma informação na internet não temos mais controle sobre ela, por isso é necessário pensar nas consequências que podem ter o compartilhamento de notícias e informações em geral. Cada pessoa faz uma leitura diferente de um mesmo texto ou imagem, a interpretação é subjetiva, mas isso não nos isenta de pensarmos de forma ética em nossos atos.
Quais foram as maiores dificuldades no processo de apuração do livro? As mães que fizeram a acusação se arrependem?
As maiores dificuldades foram basicamente duas: conseguir encontrar informações que me levassem aos personagens envolvidos no caso e o de convencê-los a conversar comigo. Não recebi nenhuma informação de mão beijada, pelo contrário, tive que gastar muita sola de sapato. Fui reunindo as poucas informações que conseguia e montando o quebra-cabeça, que até o último momento não tinha certeza de que fosse completá-lo. No final, conseguimos um bom resultado que foi reunido no livro. Narro muito do que passei para chegar até os personagens do caso Escola Base e também minhas conversas com cada um. As mães fogem de tratar do caso, por este motivo não sei interpretar se há arrependimento, ou se ainda acreditam que houve abuso.
Teve algo que queria ter feito no livro e não conseguiu?
Sim, estou trabalhando em um outro livro que abordará o caso por outro ângulo. Mas não posso falar muito sobre isso, até mesmo para não atrapalhar na busca das informações necessárias. Acredito que em 2018 ele possa ser publicado. Os livros se complementarão sem se repetir.
O caso Escola Base foi muito emblemático, mas como você avalia a imprensa tradicional atualmente? Erros de apuração, muitas vezes visando o sensacionalismo, a audiência, são mais comuns do que imaginamos. De que forma você, como leitor/ouvinte/espectador, percebe isso?
Com cada vez menos repórteres na rua, e cada vez mais pressão na produção de notícias, os jornalistas precisam redobrar a atenção para não cometerem os mesmos erros do passado. O caso Escola Base foi emblemático, sim, e prova disso é o fato de ele ser recordado em todas as faculdades de comunicação do Brasil.
Entretanto, de 1994 para cá, muitas pessoas foram e são prejudicadas por notícias mal apuradas. Eu sou da tese de sempre desconfiar. Nunca acreditar de primeira, por mais que existam provas. Gabriel Garcia Márquez dizia que “A melhor notícia nem sempre é a que se dá primeiro, mas muitas vezes a que se dá melhor”.
Nesse sentido, acredito que por mais pressão que sofram, os jornalistas devem ter muito cuidado ao noticiar casos que possam ter uma repercussão negativa na vida das pessoas. Obviamente que isso não quer dizer que não se possa noticiá-los. A questão é saber até que ponto as informações apresentadas são de interesse público para a compreensão do caso e quais informações irão apenas prejudicar os envolvidos e a investigação policial.
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