‘Rafael Braga é regra, não exceção’, diz autor de livro sobre ex-catador

    ‘Seletividade do Sistema Penal – O caso Rafael Braga’ analisa processo do ex-catador de latas, condenado no RJ por carregar produtos de limpeza e, depois, por tráfico de drogas

    Ato em defesa de Rafael Braga ocorrido em São Paulo, em maio do ano passado | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “Rafael Braga tem o perfil exato das pessoas que estão sendo criminalizadas”. É assim que Sérgio Francisco Carlos Graziano Sobrinho, advogado e um dos autores do livro “Seletividade do Sistema Penal – O caso Rafael Braga”, recém lançado pela editora Revan, explica por que a prisão e condenação do ex-catador de recicláveis foi tão emblemática. “Rafael não é exceção. É regra. E é isso que precisa ser falado”, afirma Graziano em entrevista à Ponte.

    A publicação foi fruto da inquietação de um grupo de pesquisadores da área de criminologia que identificaram falhas no Caso Rafael Braga, desde a primeira prisão e condenação dele por estar com dois frascos de produto de limpeza, no contexto das manifestações de 2013, até a segunda prisão, no início de 2016, quando foi imputado a ele tráfico por supostamente estar com alguns gramas de drogas.

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    Além de Graziano, são organizadores do livro João Ricardo Wanderley Dornelles, professor na PUC-RJ e membro fundador da Red Latinoamericana de Derechos Humanos y Seguridad Pública, e Roberta Duboc Pedrinha, advogada e coordenadora da pós-graduação na área de criminologia da Universidade Cândido Mendes, no Rio, além de lecionar em outras instituições. Os textos são assinados por dezenas de especialistas convidados.

    A socióloga, especialista em segurança pública e professora de criminologia na Uerj, Vera Malaguti, que assina a apresentação do livro, escreveu que a obra “sintetiza os estereótipos da ditadura e da política criminal de drogas”.

    Confira a entrevista completa com Sérgio Francisco Carlos Graziano Sobrinho à Ponte:

    Ponte: Como você explicaria o que é seletividade penal?
    Sérgio: A ideia de seletividade vem da tradição da criminologia crítica sobre como o sistema penal opera. A partir de um momento, a criminologia passou a entender o seguinte: não são determinados fatos que são criminalizados, ou ainda, não há que se questionar primordialmente por que determinadas pessoas cometem crimes, mas sim por qual motivo determinadas pessoas são criminalizadas e outras não. Por que determinados fatos são criminalizados e outros não. A ideia de refletir sobre a seletividade é procurar entender por que determinadas pessoas são selecionadas pelo sistema e dessa forma são criminalizadas e outras não.

    Ponte: E por que Rafael Braga virou um símbolo e até objeto de estudo de pesquisadores?
    Sérgio: Existem vários casos que são emblemáticos. Por exemplo, o caso da Marielle Franco também é emblemático. Estamos [esse mesmo grupo que escreveu Seletividade do Sistema Penal] inclusive pensando em produzir algo como “precisamos falar sobre Marielle Franco”. Ou seja, é um caso emblemático. Agora, o que é o caso Rafael Braga? Rafael tem o perfil exato daquelas pessoas que estão sendo criminalizadas no Brasil desde sempre. É o jovem, homem, negro, da periferia e que está na rua. São exatamente os excluídos. Esse é o perfil, e agora eu peço para que você coloque muitas aspas, ideal para a criminalização. É um jovem, negro, na época estava ainda mais vulnerável, já que era morador de rua, e então é criminalizado de forma absurda. As pessoas não acreditam quando a gente olha os motivos da primeira condenação: um pinho sol e uma água sanitária. O laudo diz que não é material explosivo e ele foi condenado por portar material explosivo. Não dá pra acreditar mesmo.

    Ponte: Nesse sentido, esse erro grotesco, por assim dizer, também ajudou a impulsionar a história, torná-la mais absurda…
    Sérgio: Se a gente for olhar a lei, e essa é uma ideia forte no livro, isso nunca poderia ter sido criminalizado. Se não entendermos o sistema de justiça criminal como um sistema político e as decisões judiciais são políticas, e aqui não estou falando de política partidária, mas que trabalha com interesses, você não vai conseguir entender esse caso. Por isso é necessário olhar de uma forma diferenciada. A gente também procura desmistificar aquela história de que “ah, Rafael Braga foi exceção”. Não. Isso não foi exceção, isso é a regra. Isso tem que ficar muito claro: é a regra do jogo. É assim que funciona o sistema.

    Ponte: Quais as principais falhas, ou erros, como preferir chamar, do caso?
    Sérgio: Eu me dediquei a falar mais da violência institucional, de entender e analisar a seletividade institucional. No próprio recurso que foi julgado há uma total desconsideração das provas. O laudo diz que não é material explosivo e isso pra mim é uma coisa poderosa. Os desembargadores, no entanto, ignoraram isso solenemente. Outra coisa, ele permaneceu preso durante muito tempo, depois, uma das vezes em que ele foi solto, foi fotografado na frente de um muro onde havia escrito algo como “ditadura do judiciário”. E aí ele voltou para prisão por causa dessa fotografia, porque consideraram que foi uma quebra de lealdade, regrediram o regime dele e mandaram de volta pra prisão. Mas o principal furo, o erro grosseiro, é a não observação da prova trazida nos autos de que o material que ele portava não era material explosivo. A lei diz que você não precisa estar com uma bomba, mas se estiver com petrechos, material que unido, por exemplo, pode causar explosão, você está cometendo um crime. Mas no caso dele eram dois produtos de limpeza. O laudo usa uma expressão como “quase nula” para a chance de explosão.

    Ponte: Nesse sentido, estamos também admitindo que corpos negros e periféricos são os maiores alvos da violações. E você acha que essa violência é, de certa forma, aceita socialmente?
    Sérgio: É um tipo de violência aceita na sociedade, como você disse. Eu não chego a rezar por completo a cartilha de Jessé de Souza, que fala que temos um padrão de preconceito e que todo nosso carma é por conta da ideia de que nós somos um país escravocrata, de característica patrimonialista, mas em certa medida me parece que essa tradição escravocrata é, sim, responsável por esse tipo de preconceito, por esse tipo de postura que temos no Brasil. A figura do negro é um alvo muito fácil por conta da estrutura que nós temos na nossa sociedade, que coloca o negro como um cidadão de segunda classe. E nesse sentido, é o que estamos vendo, por exemplo, em torno da figura do candidato Jair Bolsonaro.

    Ponte: Como assim?
    Sérgio: As pessoas estão conseguindo sair do armário e colocar todo o preconceito, o ódio no outro para fora e, dessa forma, se eximindo da própria responsabilidade, esquecendo o próprio preconceito, como se a solução fosse o extermínio. Eu sou advogado há mais de 26 anos e vejo isso em sala de audiência. A forma com que negros entram em audiência, sempre algemados. Você vê uma testemunha negra entrando é diferente de uma testemunha branca. O Ministério Público não os respeita como pessoas. E esse
     é um perfil extremamente perigoso na nossa sociedade, que reflete tudo que estamos vivendo hoje. Você olha os negros, você observa que a maioria esmagadora está nas periferias, tem péssimos postos de trabalho, da mesma forma que mulheres, LGBTs, que o povo fala equivocadamente minoria. Não são minoria. São maioria. E eu fico pensando como o nazismo venceu? Está aí a resposta. Estamos vivendo isso. Marx falava: “a história se repete, primeiro como farsa, depois como tragédia”. A gente tem hoje 26% da população, ou seja, aproximadamente 50 milhões de pessoas, que votam nesse candidato, que então pensam assim.

    Ponte: Eu quero voltar em um aspecto que é o potencial de viralização do caso. Se o senhor disse que não é exceção, é regra, pergunto ainda por que ganhou tamanha notoriedade?
    Sérgio: A situação foi muito escandalosa. Dentro do meu escritório eu tenho casos que são inacreditáveis. Tem um juiz aqui [Santa Catarina, onde Sérgio vive] que julgou e condenou uma pessoa por “razões metajurídicas”. O juiz não tinha provas, mas tinha convicção e está escrito isso: “razões metajurídicas”. Então são centenas de milhares de pessoas que estão sofrendo com esse tipo de postura do judiciário. É aquela ideia do “ele merece ser condenado”, é você colocar a moral, o julgamento moral acima de tudo. Rafael está hoje em uma situação muito complicada, muito vulnerável. Então o que quero dizer é que ele é só mais um caso que aconteceu no Rio de Janeiro, mas a gente precisa falar o que está acontecendo. Eu dei uma palestra na Cândido Mendes e falei isso: esse livro é uma denúncia. Não é algo excepcional, é absolutamente normal. Infelizmente. E por isso mesmo é uma denúncia. Ele foi o escolhido para ilustrar o sistema de justiça que deveria agir com mais contundência em crimes contra a vida, mas não age. Só 8% dos homicídios solucionados. Ao contrário, continua contribuindo para a prisão da maioria de pessoas por crimes não violentos, como o tráfico de drogas. Há crimes associados ao tráfico, mas o tráfico em si não é violento.

    Ponte: E a história da “presunção de inocência”, como o senhor avalia na prática do judiciário?
    SérgioEu te convido a assistir uma audiência de custódia. A presunção é de culpabilidade, não tenho a menor dúvida. Mal comparando, porque sabemos que são casos totalmente distintos, mas conceitualmente é o que tem acontecido no Brasil: “tomar um café” adquiriu um novo significado diante dos escândalos de corrupção. É um processo de criminalização da política. A lógica com o negro é a mesma: ele entra na audiência e pressupõe a responsabilidade no fato. Se você flagra um político combinando um café já pensa: está pedindo propina. Essa construção é para você detestar o político. Não por acaso, o mote das propagandas de hoje é o “eu não sou um politico profissional”.

    Ponte: Há uma provocação na divulgação para imprensa sobre o livro que diz: “estará o judiciário ao invés de se posicionar de forma neutra, assumindo a representação da Casa Grande”? Te pergunto: estará?
    Sérgio: Exatamente isso. Está assumindo essa responsabilidade e isso é lamentável. O judiciário se tornando muito mais do que um poder, está se isolando como um poder absoluto. E isso nos obriga a fazer um outro debate de onde está a responsabilidade por essa construção, de como estamos fomentando o serviço público, por exemplo. As pessoas que estão passando em concurso são de classe abastada e isso impacta na formação do perfil do judiciário do Brasil. A gente tem uns heróis que vêm de baixo, mas a maioria é branca, de classe social alta, que estudou em colégio particular. E o resultado é isso que vemos.

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