Abortos que colocam em risco a vida das mulheres foram a principal causa de mortalidade materna na região; vitória argentina inspira outros países
Enfrentando os obstáculos da religião e do preconceito, as mulheres latino-americanas avançam na luta pela descriminalização do aborto, um combate em que conquistaram uma importante vitória nesta quinta-feira (14/6), quando a Câmara dos Deputados da Argentina aprovou o projeto de lei que despenaliza o aborto até a 14ª semana de gestação. A sessão, que durou quase 23 horas, contou com 129 votos a favor do projeto, que agora segue para votação no Senado.
A cada ano, centenas de milhares de mulheres da América Latina abortam de forma clandestina, e as complicações decorrentes dessas intervenções representam uma das principais causas de mortalidade materna – 67 mortes a cada 100.000 nascidos vivos, segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), da ONU (Organizações das Nações Unidas). Dada a ausência de estatísticas governamentais, o número de abortos ilegais por ano costuma ser estimado por dados extraoficiais. Somando apenas os casos do Brasil, Argentina, Colômbia e Chile, os números superam dois milhões de abortos.
De acordo com uma pesquisa da OMS (Organização Mundial de Saúde), lançada em setembro de 2017, 6,4 milhões de abortos foram realizados na América Latina no período entre 2010 e 2014. Desses, 76,4% foram abortos inseguros, ou seja, o procedimento de alguma forma trouxe risco à saúde da mulher.
Religião como obstáculo
A questão religiosa é um dos principais entraves à descriminalização do aborto na América Latina. Boa parte dos países tem o componente religioso como um traço bastante forte de sua cultura.
“A igreja católica e a evangélica têm historicamente muito poder na política. Nesse contexto, eles colocam muita pressão no pensamento livre e na decisão sobre os corpos”, revela a argentina Camila Parodi, representante do Coletivo Marcha que, dentre outras pautas, luta pela descriminalização do aborto no país.
Entretanto, Camila observa que a situação está mudando aos poucos. Segundo ela, após a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto na Argentina, a opinião das pessoas tem passado por mudanças. “Essa caracterização também foi demonstrada nas ruas. Ao longo dos últimos meses, milhares de pessoas marcharam pela legalização do aborto e a presença do lenço verde instalado pela campanha tornou-se um símbolo das massas”, diz Camila.
Na Argentina, até o momento, o aborto só era legalizado quando apresentasse risco à vida da gestante e em casos decorrentes de estupro. Segundo Camila, por mais que as mulheres tenham conquistado o direito ao aborto nos casos citados, “ainda falta muito em termos de legislação, de tal forma que todas as gestantes possam interromper uma gravidez indesejada”. O coletivo acredita que todas as pessoas possuem o direito de decidir sobre seus corpos, principalmente na questão do aborto.
Para Camila, existem ainda dois grandes problemas que impedem a legalização do aborto na Argentina. O primeiro é a diferença entre homens e mulheres no país. A política em sua maioria é constituída por homens, os quais produzem as leis. Outro motivo é a questão socioeconômica. “As mulheres pobres que não têm acesso à saúde privada, muitas vezes prejudicam sua saúde e passam por experiências desumanas”, ressalta a ativista.
Avanço colombiano
Na Colômbia, a advogada Mónica Roa destaca-se com seu trabalho em prol da descriminalização do aborto. Foi uma das responsáveis por dar o pontapé inicial em busca da descriminalização. Em 2006, defendeu uma menina de apenas 11 anos que havia sido estuprada pelo padrasto. A avó buscou ajuda e a criança conseguiu realizar o aborto com segurança.
De acordo com as leis colombianas, a interrupção da gravidez é permitida em três casos: quando há risco para a saúde física e mental da mulher, em casos de estupro e quando o feto é diagnosticado com má-formação que impossibilita a vida extra-uterina. Embora as leis existam atualmente, Mónica explica que a implementação delas tem sido difícil. “Muito do processo tem sido explicar que estamos pedindo ao Estado, e não à Igreja, que assegure um aborto decente, legal e seguro para as mulheres que precisam dele. A Igreja pode continuar a dar orientação moral aos seus fiéis, e as mulheres católicas decidirão se seguem ou não essas orientações, como fazem com a proibição do divórcio ou contraceptivos”, destaca a advogada.
Presa por abortar
Segundo dados da ONU, a América Latina é a região que apresenta o maior índice de gestações indesejadas no mundo (56%). Mais de um milhão de mulheres da região são obrigadas anualmente a realizar o procedimento em clínicas clandestinas, o que na maioria das vezes resulta em complicações e mortes.
Para mudar essa situação, ativistas vêm atuando no campo político para tentar, mesmo que aos poucos, garantir o direito ao aborto para as mulheres. O processo é demorado e enfrenta a resistência dos setores mais conservadores da sociedade.
Na América Latina, apenas quatro países permitem que o procedimento seja realizado até a 12ª semana de gravidez sem justificativa, sendo eles: Cuba, Porto Rico, Guiana e Uruguai. A Cidade do México também autoriza o aborto, mas o restante do país adota outras leis. Na Venezuela, o aborto é legalizado apenas quando apresenta risco de morte para a gestante e em caso de estupro. Já no Peru e Bolívia, os casos de incesto também descriminalizaram o aborto. O Chile permite o procedimento quando há inviabilidade do feto. No Brasil, é permitido abortar quando há gravidez de fetos anencéfalos, em caso de estupro e de risco para a vida da mãe e do bebê.
Enquanto alguns países caminham para uma sociedade com mais direitos para as mulheres, outros ficam ainda mais para trás e proíbem a interrupção da gravidez em qualquer circunstância. É o caso da República Dominicana, El Salvador, Nicarágua, Honduras, Haiti e Suriname, onde as mulheres podem ser punidas com prisão. Em 2011, em El Salvador, aconteceu um dos casos mais conhecidos referentes à severidade com que o aborto é tratado nos países centro-americanos. María Teresa Rivera, uma mãe de 33 anos, foi condenada a 40 anos de prisão por realizar um aborto. Após quatro anos, Maria conseguiu sua libertação, mas foi apenas um pequeno passo para um panorama tão limitado nos direitos das mulheres.