Mãe é mantida presa em regime fechado por vender ‘brisadeiros’ no MA

Jovem negra de 19 anos foi detida em frente de casa por fabricar brigadeiros com maconha; apesar de atender requisitos para prisão domiciliar, juiz alegou que mulher era “perigosa” e poderia causar risco à sociedade e à filha de 4 anos

Foto dos brigadeiros à base de maconha que jovem vendia e divulgava em rede social | Foto: Reprodução / Instagram

A filha de Luana (nome fictício) completou quatro anos no último domingo (27/8). Esse foi o primeiro aniversário dela longe da mãe, que foi presa em 10 de agosto na porta de casa por vender ‘brisadeiros’, brigadeiro produzido com maconha, em Imperatriz, no Maranhão.

“Ela fica perguntando onde a mãe está porque é muito ligada a ela”, lamenta a avó paterna da criança, que é ex-sogra de Luana. “Ela cometeu um erro, mas foi muito injusto o que fizeram, trataram ela pior que um bicho, como se ela fosse uma pessoa perigosa”, afirma.

Mesmo atendendo os requisitos da Lei 13.769/2018, que trata da possibilidade de conversão da prisão preventiva (sem tempo determinado, em que a pessoa fica reclusa sem poder sair da unidade prisional) de mulheres que são mães ou gestantes para prisão domiciliar, o juiz Frederico Feitosa de Oliveira, da 5ª Vara Cível de Imperatriz, decidiu converter a prisão em flagrante da jovem em preventiva na audiência de custódia que aconteceu dois dias depois da detenção e por videoconferência. 

No vídeo da audiência ao qual a reportagem teve acesso, o magistrado afirma que, como a criança foi encaminhada à avó, ela já estava sendo assistida, que uma análise socioeconômica e da vulnerabilidade da menina poderia ser feita depois, ao concordar com a promotora Patricia Fernandes Gomes Costa Ferreira sobre “o alto nível de periculosidade da conduta em relação aos doces” porque, segundo eles, se solta Luana poderia voltar a vender os “brisadeiros”.

“Me parece que isso é potencializado pelos doces principalmente numa casa onde já existe uma criança e é comum criança gostar de doce. Doce com drogas poderia afetar a própria filha dela e também a outras pessoas, né? Esses doces poderiam ser levados a escolas, a crianças, a famílias e a gente poderia pensar num tráfico de drogas atingindo não só adultos ou adolescentes, mas também crianças, mesmo que sem intenção. Então, tudo isso me aponta uma periculosidade que autoriza a decretação da prisão preventiva da presa”, justificou o juiz.

Tanto a ex-sogra como uma amiga de Luana contaram à reportagem que a jovem de 19 anos já produzia doces, bolos e brigadeiros para encomenda como forma de renda e que havia deixado um emprego fixo há mês porque até então a avó trabalhava e os horários não eram compatíveis para ficar com a criança. A própria Luana também afirma isso na audiência.

“Ela também fazia diária de limpeza e começou a fazer os brigadeiros com manteiga de maconha faz pouco tempo”, disse a amiga, que vamos chamar de Renata. “Ela fazia por encomenda e, querendo ou não, era como ganhava um pouco mais porque se um brigadeiro médio saía por R$ 2,50, o brisadeiro saía R$ 5”.

Ambas pediram à Ponte para não divulgar imagens nem identificá-las porque estão sendo alvo de comentários e “olhares de deboche e piadas”, já que o caso repercutiu na cidade.

Luana passou a divulgar o produto em rede social a partir de maio deste ano. As postagens continham o preço e informações sobre como consumir de forma menos nociva à saúde que, segundo a própria Luana em depoimento à Polícia Civil, foram retiradas de pesquisas feitas na internet.

Os investigadores Juscelino Sobreiro da Silva e Glaubert Abrahan de Souza Sales, da Delegacia de Repressão ao Narcotráfico (Denarc) de Imperatriz, disseram que tomaram conhecimento “através de redes sociais de que havia uma jovem comercializando brigadeiros feito com a droga conhecida popularmente como ‘maconha'” e que ela vendia os doces em um perfil público em que também explicava como os produtos eram fabricados, os efeitos que produzia e fazia recomendações de consumo.

A dupla decidiu acompanhar o perfil para buscar onde a jovem morava e passou a tarde vigiando o endereço. Segundo eles, ao ser vista saindo da residência para entregar uma sacola a uma pessoa que aguardava na porta, os investigadores foram abordá-la e viram que ela estava com as porções do ‘brisadeiro’. Os policiais civis afirmam que o homem que iria receber os doces “se evadiu rapidamente do local” e Luana entregou os objetos que foram apreendidos.

De acordo com o depoimento, Luana confirmou que produzia e vendia os “brisadeiros” e que estava fazendo uma entrega na porta de casa. Ela disse que recebia, em média, R$ 800 por mês e que fazia os brigadeiros à base de maconha há cerca de dois ou três meses, enquanto trabalhava pela manhã em uma tabacaria. As vendas eram feitas de forma física e online e ela entregava presencialmente ou por meio de carro de aplicativo. Ela disse que fazia tudo sozinha, vendia, em média, 30 “brisadeiros” por semana e que a porção de maconha prensada que tinha em casa havia comprado por R$ 10 de um homem desconhecido. O irmão dela, que presenciou a detenção, encaminhou a filha pequena a avó paterna.

No inquérito, não existem fotos do que foi apreendido, apenas a descrição: uma porção de maconha sem indicação de quantas gramas havia, um caderno rosa de anotações, um cinzeiro com a logomarca que ela havia criado para a venda dos “brisadeiros”, uma balança de precisão, 12 “brisadeiros”, um pote contendo substância pastosa esverdeada também sem pesagem e o celular de Luana. No site da Polícia Civil, o caso foi divulgado com uma foto das apreensões.

Imagem do pote com conteúdo pastoso, porção de maconha, balança de precisão, cinzeiro e caderno de anotações | Foto: Polícia Civil do Maranhão

O laudo preliminar para detectar presença de droga feito pelo Instituto de Criminalística de Imperatriz é confuso. Há a descrição de todos os itens apreendidos, mas ainda sem pesagem exata de cada um. No documento é descrito um “massa bruta total: 761g (setecentos e sessenta e um gramas – embalagem + material)”, em que não é especificado de que item se trata.

A massa utilizada para o exame foi de três gramas e, segundo o texto, foi retirada da porção de maconha, já que o pote e os “brisadeiros” foram encaminhados ao Instituto Laboratorial de Análises Forenses em São Luís para análise.

Na audiência, com a voz embargada, Luana disse que a delegada Jessica Ingrid de Lima Ribeiro teria lhe constrangido no momento da detenção. “Os outros policiais foram respeitosos, mas a doutora Ingrid, além de agredir verbalmente, a minha filha vai fazer quatro anos no final desse mês. Minha filha ficou presente em toda a ação e minha filha perguntou para ela ‘titia, por que a mamãe tá sendo presa?’. Ela olhou para a minha filha e falou ‘ela estava vendendo drogas’. Eu não sei se isso é certo, se é errado, porém, eu fiquei muito magoada porque minha filha é um bebê. É um bebê que já tem muito problema pelo fato de não ter um pai presente porque o pai que ela tem se encontra em estado de rua”, declarou.

O juiz Frederico Feitosa de Oliveira disse que oficiaria a Corregedoria da Polícia Civil para apurar o caso. Ele também determinou a quebra de sigilo telemático do celular de Luana, que foi pedido pela delegada, para aprofundar as investigações.

Criminalização da pobreza e da maternidade, afirmam especialistas

Eliza Donda, advogada e pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), e José Thiago Campos, integrante do Comitê Orientador da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD) e da Rede Reforma, que analisaram o inquérito e os vídeos da audiência de custódia entendem que Luana poderia ter sido beneficiada pela prisão domiciliar, já que ela não tem antecedentes, tem endereço fixo, não cometeu um crime com violência ou grave ameaça e é mãe de uma criança menor de 12 anos que é dependente dela, como a Defensoria Pública havia pedido na audiência.

Ambos avaliam que a análise do juiz não foi pautada pelo o que foi apresentado no inquérito e sim uma avaliação moral. “Ele não deixou que ela respondesse o processo de liberdade pelas projeções dele, pelas conjecturas que ele estava fazendo de um possível cenário que não se foi provado, não se foi comprovado pelos laudos, não foi sequer analisado. Foi por um puro achismo da parte dele de que essa criança poderia consumir esse produto, poderia levar para os coleguinhas da escola e por aí vai. A gente está diante de um cenário clássico de condenação da mulher, da pobreza e da maternidade”, critica Eliza Donda ao apontar que o Marco Legal da Primeira Infância, que mudou o Código de Processo Penal a fim de garantir o exercício da maternidade de mulheres em conflito com a lei, deveria ter sido observado..

“A gente não pode manter uma pessoa presa por um perigo abstrato”, complementa José Thiago, ao lembrar da prerrogativa constitucional da presunção de inocência. “Prender alguém é uma situação excepcional e, se estamos falando do que seria exceção, me parece uma exceção mais grave se você mantém uma mãe afastada da sua própria filha, do seu próprio filho, do que esse perigo abstrato de uma substância que não é letal, que tem um grau de toxicidade reduzido.”

Apesar de morar e estar em Imperatriz, consta que Luana tinha sido levada para o município vizinho de Davinópolis no dia seguinte à prisão, mas não há explicações nos documentos sobre o motivo, sendo que a audiência ocorreu na comarca de Imperatriz.

A pesquisadora do ITTC destaca que a audiência de custódia foi feita após o prazo legal de 24 horas, que é o tempo máximo de quando a pessoa presa deve ser levada a um juiz que avalia a legalidade e necessidade da prisão, além de ter ocorrido de forma remota seguindo uma resolução de 2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), embora o próprio órgão tenha emitido nova norma no ano passado definindo a videoconferência como exceção. “Eu não sei por que eles estão usando uma determinação do CNJ que era para pandemia. Ela não está totalmente revogada, mas qual é a necessidade? Ah, é para que fosse mais rápido? Eu acho que isso está prejudicando porque toda audiência criminal feita de forma virtual é prejudicial, falta o âmbito real do contato humano”, afirma.

“Toda a defesa criminal é um ambiente que contribui para aquilo, é um ambiente que vai demonstrar aquela situação e o juiz simplesmente corta o áudio dela [quando ela chora ao ouvir a decisão]. Não estou falando que isso é certo ou errado, mas olha o distanciamento? A gente não está lidando única e exclusivamente com a proteção do Estado, a gente está lidando com vidas”, prossegue a advogada.

No domingo (27/8), o defensor público André de Oliveira Almeida fez um pedido para revogar a prisão de Luana que ainda não foi apreciado pelo juiz do caso, que é diferente do magistrado que atuou na audiência de custódia. Ele, além de indicar as confusões nos laudos como a Ponte descreveu e as mesmas avaliações que os entrevistados demonstraram, destacou a seletividade penal do sistema de justiça.

“O fato de impor uma prisão preventiva nesse caso demonstra, uma vez mais, que o sistema penal brasileiro é seletivo e tendencioso, visando desproporcionalmente as classes mais desfavorecidas e as minorias”, escreveu. “Luana se encaixa nesse perfil: ela é jovem, negra, mãe solteira e, presumivelmente, de uma classe social desfavorecida e sem antecedentes criminais. O sistema penal, em sua seletividade, opta por colocar a sua lupa em atos como o dela, que são mais fáceis de detectar e processar, em vez de focar em crimes mais complexos que são frequentemente cometidos por indivíduos de classes sociais mais altas e que têm maior impacto social negativo.”

A ex-sogra e a amiga da jovem relataram à Ponte que Luana teria sido transferida para a capital São Luís, que fica a cerca de 10 horas de viagem de Imperatriz, mas não sabem que unidade prisional ela está. “Se eu não tivesse pedido demissão do meu emprego, eu não teria como estar correndo atrás porque eu liguei na Defensoria, eu passei nas delegacias, eu liguei em tudo quanto é lugar”, lamenta a ex-sogra.

Também informaram que Luana faria uso de medicamentos por conta de uma enfermidade no sangue, mas as assessorias da secretarias estadual e municipal de Saúde disseram que não poderiam confirmar se de fato ela fazia acompanhamento médico por causa do sigilo do paciente. No laudo de corpo de delito feito pela Polícia Civil para a audiência de custódia, não houve questionamentos à Luana se ela estava gestante, se tinha algum tipo de comorbidade nem se fazia uso de medicamentos. Apenas se ela sofreu algum tipo de agressão por policiais, o que ela negou.

Ajude a Ponte!

A reportagem procurou a Secretaria de Administração Penitenciária (Seap) do Maranhão que, por nota, apenas confirmou que a jovem está custodiada no sistema prisional e que “para mais informações, a família precisa entrar em contato com a Supervisão de Assistência às Famílias por meio dos contatos abaixo:
Contatos: Atendimento: (98) 9 9154-3073 Informações: (98) 9 9112-5351/ (98) 9 9196-6610 E-mail: [email protected]“.

Após a publicação, a Seap enviou nova nota nesta quinta-feira (31) informando que “a interna cumpre pena na Unidade Prisional de Ressocialização Feminina (UPFEM), em São Luís”. Contudo, Luana não foi sequer acusada pelo Ministério Público e nem condenada pelo Tribunal de Justiça para cumprir pena, sendo que a prisão que foi decretada é provisória, ou seja, enquanto aguarda julgamento. A pasta também disse “todas as custodiadas recebem atendimento e assistência médica e odontológica, tanto no processo de entrada no sistema quanto durante todo o cumprimento da pena”.

A Ponte pediu entrevista com o defensor público André Almeida, mas a assessoria do órgão disse que ele prefere não se manifestar enquanto aguarda a apreciação do pedido de revogação da prisão.

O que diz a polícia

A reportagem solicitou à assessoria da Polícia Civil entrevista com a delegada Jessica Ingrid de Lima Ribeiro. Até a publicação, não houve resposta.

O que diz a promotora

A Ponte também pediu entrevista com a promotora Patricia Costa, que atuou apenas na audiência de custódia. A assessoria disse que enviaria a resposta por nota e também daria posicionamento do promotor que assumiu o caso, mas ainda não havia se manifestado e aguarda resposta.

O que diz o juiz

A reportagem solicitou entrevista com o juiz Frederico Feitosa de Oliveira sobre a condução da audiência e a decisão. Ele respondeu por nota enviada pela assessoria do Tribunal de Justiça:

Apesar de já ter ultrapassado o horário quando me foi repassado o pedido, só tenho a informar o seguinte:

– O flagrante foi comunicado ao Judiciário no dia 11.08, 10h, e realizada a audiência 12.08, 09h30. Portanto, menos de 24h.

– A homologação do flagrante ocorre antes da audiência de custódia, exatamente para analisar a necessidade dela, vez que poderia ser o caso de imediata liberdade provisória, o que não ocorreu. Perceba-se que a homologação do flagrante não foi objeto de questionamento por qualquer das partes.

– Todos os participantes da audiência estavam de forma virtual, inclusive o juiz por estar com sintomas gripais.

– Sobre a periculosidade e a situação socioeconômica da presa, nada tenho a acrescentar daquilo do que foi registrado em audiência.

– Sobre os questionamentos sobre comorbidades, cabe à Defesa realizá-los, vez que nada havia nos autos nesse sentido, nem nos interrogatórios da presa.

Reportagem atualizada às 11h39, de 31/8/2023, para incluir nova nota da Seap.

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