Famílias das vítimas de desaparecimento forçado em Manaus (AM) colheram provas do crime e ainda não têm respaldo jurídico do estado
Há mais de três meses, as mães de Alex Júlio Roque de Melo, de 05 anos, Weverton Marinho, 20, e Rita de Cássia, 19, convivem com a dor de não saberem o paradeiro de seus filhos, desaparecidos após uma abordagem policial, no bairro de Nova Vitória, periferia de Manaus, em 29 de outubro de 2016.
Passado todo esse tempo, sem o apoio jurídico necessário, as mães Arlete Roque, Lindalva Castro e Iraci Batista unem forças, apoiando uma à outra, para buscar justiça. Elas temem por represálias e não confiam na prisão dos suspeitos do crime.
Naquele sábado (29/10), Weverton e Cássia estavam em uma festa. Alex foi buscar os amigos com a moto de Weverton. Na volta, os jovens foram parados por uma viatura, e a abordagem durou cerca de 40 minutos até a chegada de outro veículo. “A segunda viatura chega e é quando, nas imagens, é possível ver Weverton sendo agredido. Os policiais jogam o capacete no chão, batem, e depois colocam os três nesta segunda viatura”, relembra Arlete Roque, mãe de Alex.
Parentes da Cássia viram a ação policial e, às 2h45 da madrugada, ligaram para Arlete.
Provas do crime
Os rastros do desaparecimento não seriam conhecidos se não houvesse movimentação rápida dos familiares das vítimas. Arlete conta que na manhã de domingo, dia seguinte ao sumiço dos jovens, o marido já buscava alguma pista que explicasse o ocorrido.
“Eles achavam que tinham feito um crime perfeito, mas não foi. A gente conseguiu filmagem da abordagem. Fomos ao terreno, no ramal Chico Mendes, e lá meu marido encontrou a sandália do meu filho com sangue, vivinho, fresco ainda. Já foi feito o exame de DNA e o resultado é compatível com o do pai. A polícia nunca achou nada, mas nós achamos. Tudo isso no campo onde eles foram mortos. A cápsula de uma bala foi encontrada, de uma [pistola] ponto 40, que provavelmente eles se esqueceram de recolher, e o meu marido encontrou. Dizem que os policiais estão presos, mas preso mesmo está meu filho, né? Que não vai voltar mais”, relata, traumatizada, a mãe.
Ela conta que seu marido averiguou um forno de fazer carvão no local, pra ver se haviam escondido os corpos ali, mas nada encontrou. Neste momento, avistou uma viatura chegando. “Eu acho que se deram conta de que faltava uma cápsula de projétil, voltaram para procurar, mas meu marido já havia recolhido. Ele saiu de lá, foi direto para a delegacia e, sem mostrar as provas, disse ao delegado que achava que policiais haviam matado nosso filho Alex e os jovens Weverton e Cássia. Foi quando chegaram quatro policiais, todos sujos de terra. Meu marido disse que achava que o grupo tinha matado os meninos e eles ainda ameaçaram prendê-lo pela acusação”, resgata.
Todas as provas do crime foram encaminhadas à DEHS (Delegacia Especializada em Homicídios e Sequestros). O estojo de munição calibre 40, conforme laudo balístico, saiu da pistola apreendida de um dos policiais envolvidos. Outras provas também foram determinantes para o indiciamento deles, como uma sacola com vestígios de sangue e as imagens da câmera de segurança de um estabelecimento local, obtidas por Arlete.
Segundo a mãe de Alex, o terreno onde as provas foram encontradas, todo final de semana, amanhecia com corpos de mulheres, homens, crianças, esquartejados. “Depois que esses policiais foram presos, nunca mais foram encontrados corpos neste campo. Até perguntei ao delegado se havia alguma notícia de corpos encontrados lá, e nunca mais nada aconteceu. Pode ser que, com a prisão deles, outros grupos não tenham mais coragem de fazer isso, mas acredito que eram eles que aterrorizavam no local”, compartilhou.
Número de mortes violentas cresceu no Amazonas
No estado do Amazonas, o número de mortes violentas entre 2004 e 2014 registou crescimento de 134,4%, segundo o Atlas da Violência de 2016.
O relatório aponta também, ao se considerar a população negra, uma variação de 94,4% em dez anos. Em 2004, a taxa que era de 19% saltou, em 2014, para 37%, de homicídios de negros. No período de 2013 e 2014, houve um aumento de 2,7% nos homicídios de jovens na faixa etária de 15 a 29 anos.
No início de janeiro, em meio a massacres e tensões nos presídios, sobretudo na região norte e nordeste do país, em apenas 10 horas oito pessoas foram mortas em Manaus.
Elas por elas
Após todo o esforço para encontrar seus filhos, as mães denunciam a falta de suporte para acompanhar o andamento das investigações: as famílias não são assistidas por um advogado e tudo o que conseguem saber é por iniciativa própria.
Mãe de Weverton e mais quatro filhos, Iraci não vive em paz desde o seu desaparecimento. “O meu mundinho era ele e meus quatro filhos, eu sempre fui a mãe e o pai deles. Semana passa, passam dias. Só queria mesmo que tudo isso acabasse, não sei nem como encontro forças para viver. Meu filho nunca me deu trabalho, nem com doença, me magoa essa injustiça, ninguém faz nada. Só queria ele de volta não importa como. Eu gostaria muito que ele estivesse vivo em algum lugar”, conta, com a voz embargada pela angústia.
A mãe relembra a última vez que teve contato com Weverton. “Eu fui demitida, peguei minha indenização e comprei material de construção, e a gente estava arrumando a minha casa, eu e ele, que também estava desempregado, mas ganhando o seguro. A gente passou a sexta-feira assim, trabalhando em casa, ele ajudando os pedreiros e assentando tijolo comigo o dia inteiro”, relata.
Para Iraci, a polícia demorou muito tempo para apurar. “Os policiais tiveram seis dias para apagar provas. A única pista e provas que obtiveram foram as coisas que nós colhemos”, disse em tom de revolta.
Segundo as famílias, a polícia estava mais empenhada em encontrar provas que incriminassem os jovens do que de fato em investigar o desaparecimento. “Até hoje não encontraram nada contra o meu filho, mas pelejaram bastante para achar, para dizer que os meninos foram mortos porque mereceram, porque não eram santos. Mesmo que houvesse algo errado, a polícia não tem esse direito, a polícia foi feita pra pegar e corrigir, prender, e não matar. Se a gente não pode confiar neles, vamos confiar em quem?”, diz, indignada, Iraci.
Segundo ela, há falta de respostas. “Nós não temos advogado, não temos ninguém para informar a gente. Os policiais dizem para gente não se envolver porque estamos atrapalhando as investigações, mas que investigação? Cadê os corpos dos nossos filhos?”, questiona.
Além da dor da incerteza de não saber o paradeiro do filho, Iraci convive com o medo. Conta que vizinhos viram um carro suspeito rondando sua casa. Desde aquele dia, ela, que perdeu a confiança na polícia, optou por sair do bairro onde morava com os filhos para tentar se proteger.
Atualmente vive com a bolsa auxílio do governo, continua desempregada e muito abalada, e tenta superar a dor da perda de Weverton por causa dos outros filhos que ainda precisa criar.
Lindalva, mãe de Rita de Cássia, disse que, assim como as demais mães, continua na luta em busca de justiça e amparo jurídico. “Fui até o Ministério Público, acionei a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] aqui de Manaus e ninguém até agora nos encaminhou para um advogado que possa nos informar como está o processo. Teve recesso de fim de ano, tivemos essas rebeliões nos presídios e por conta disso ninguém nos atende e a gente só quer justiça”, reforça.
Essa mãe também teve que sair do bairro por medo de represálias.
Manifestação cobra respostas
As famílias chegaram a fazer um protesto contra o descaso nas investigações. No dia 20 novembro de 2016, foram às ruas e pressionaram para que houvesse resposta para o caso. Elas encontraram apoio em uma liderança local, Julio Cezar Ferraz, que integra o movimento Luta Popular e ajudou a fundar o bairro. Ele também passou a sofrer ameaças. “As mães me procuraram para ajudar nessa investigação. Eu acabei virando alvo também. Rondaram e tentaram invadir minha casa. Fiz um boletim de ocorrência, mas até agora nada aconteceu”, conta.
Ele tem buscado auxiliar as famílias. Uma de suas ações foi denunciar o fato aos órgãos de direitos humanos, como a Comissão Justiça e Paz de São Paulo.
“A polícia costuma dizer que se não há corpo, não há evidências. Eu, que me emociono muito com a coragem dessas mães, disse a elas que isso nunca será esquecido. Disse à Lindalva, que o mínimo que posso fazer é tentar encontrar o que sobrou deles. Eu sei que isso, pra elas, é muito importante”, destacou Julio em reunião na Comissão.
Sem amparo jurídico
Segundo a Defensoria Pública de Manaus, por meio de sua assessoria de imprensa, até a conclusão do inquérito o órgão não havia sido procurado por nenhum familiar. Para confirmar se alguma das famílias procurou o serviço, no entanto, o órgão afirmou que seria necessário consultar o núcleo da área criminal. Até a publicação da reportagem, a informação não foi confirmada pela Defensoria.
As famílias afirmam que acionaram a Secretaria de Direitos Humanos do Amazonas, responsável pelo encaminhamento dos casos à Defensoria Pública. Mais de três meses após o ocorrido, as mães continuam sem a assistência do órgão.
Processo na Justiça
Dez policiais que trabalharam direta ou indiretamente na abordagem foram investigados, mas apenas oito respondem ao inquérito que trata o caso como triplo homicídio e ocultação de cadáver. No dia 7 de dezembro, sete policiais foram presos preventivamente, por suspeita de destruição de provas e inconsistência nas versões apresentadas.
De acordo com o delegado responsável pelo caso, Ivo Martins, titular da DEHS, o inquérito está concluído e foi encaminhado para a 3° Vara do Tribunal do Júri.
A Secretaria de Segurança Pública do Amazonas informou, em nota, que ao inquérito policial foram anexados o laudo de balística e a caracterização de materiais, laudo de exame de DNA, relatório de posicionamento global das viaturas, análises de quebra de sigilo telefônico dos envolvidos e imagens internas e externas das viaturas da Polícia Militar, assim como câmeras de uma fábrica situada nas proximidades da Avenida Flamboyant, onde o trio foi visto pela última vez.
Os mandados de prisão preventiva foram expedidos pelo juiz Mauro Moraes Antony, que acatou parecer favorável emitido pelo Ministério Público do Amazonas (MPE-AM) que acompanha as investigações.
A reportagem tentou acessar o processo que se encontra na 3ª Vara de Manaus, mas o pedido foi negado sob a alegação de que, devido ao contexto de rebeliões nos presídios que aconteceram no início do ano e às férias do juiz responsável pelo caso, o acesso aos documentos não seria possível.
Processos militares e administrativos
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, a DJD (Diretoria de Justiça e Disciplina) da PM instaurou IPM (Inquérito Policial) para apurar as transgressões dos envolvidos com base no Código Penal Militar. O inquérito também será remetido à Auditoria Militar. A Corregedoria-Geral do Sistema de Segurança abriu procedimento disciplinar para apurar a conduta dos policiais na esfera administrativa, que ainda está em tramitação.
Mortes por policiais no país
Dados do 10° Anuário de Segurança Pública de 2016 apontam que mais de 58 mil pessoas foram mortas de forma intencional no país, incluindo vítimas de homicídios dolosos, de latrocínios, lesões corporais seguidas de mortes e mortes decorrentes de intervenções militares. Ainda segundo essa pesquisa, 54% tem idade de 15 a 24 anos, faixa etária dos três jovens de Manaus.
As mortes que decorreram de intervenções policiais foram 3.320. Segundo o levantamento, mais de 17 mil pessoas morreram nas mãos da polícia entre 2009 e 2015. Não por acaso, segundo a pesquisa, 59% das pessoas têm medo de ser vítima da violência policial.
“O direito da polícia é o de prender, não o de matar. Meu filho não está aqui para se defender. Ele pagava imposto, pagava o salário desses corruptos. Eu disse ao secretário de segurança pública do Amazonas [Sérgio Fontes] ‘o senhor confia na sua polícia? ’. E ele me perguntou o mesmo. Respondi: ‘como? Se eles tiraram a vida do meu filho, de só 25 anos?’ Se eu comandasse a segurança de Manaus, eu trocaria todo mundo, porque são assassinos. Eu digo que 80% deles são assassinos. Eu perguntei ‘quanto tempo senhor tem de trabalho? ’. Ele me respondeu que tem 25 anos. E veja só o que acontece em Manaus agora”, critica Arlete, na espera por respostas.
Dados de 2013 revelam que um em cada dez policiais civis ou militares respondia a processo administrativo na Corregedoria Geral do SSP (Sistema de Segurança Pública), em Manaus. Entre 1º de janeiro e 17 de setembro deste mesmo ano, foram abertas 1.254 sindicâncias para apurar denúncias de má conduta nas duas corporações.