Mães de Maio cobram políticas públicas em audiência que marca 17 anos dos Crimes de Maio

Evento na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo lembrou mortes pela violência do Estado; encontro nesta quinta teve recados diretos a representantes do governo federal e performance em homenagem a Jacinta Maria Santana

Mães levaram faixas com fotos dos filhos e pedidos de justiça Foto: Catarina Duarte/Ponte

Em parceria, o grupo de mulheres que compõe o Movimento Independente Mães de Maio corria para estender faixas, organizar a ordem de falas e também as intervenções que ocorreram ao longo da manhã e tarde desta quinta-feira (18/5) na prestigiada Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no Largo São Francisco, centro da capital paulissta. A cena flagrada minutos antes do início da audiência pública marcou mais uma rodada de cobranças por políticas de Estado e é uma síntese da colaboração entre essas mulheres. Elas partilham histórias de terror sobre como perderam seus filhos para a violência policial e encontraram na união uma forma de cobrar por justiça, por serviços públicos de acolhimento e pelo reconhecimento dos Crimes de Maio.

O massacre histórico que deixou um saldo de mais de meio milhar de mortos ocorreu em maio de 2006. Naquele ano, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo havia decido transferir mais de 700 presos para uma unidade prisional de segurança máxima em Presidente Venceslau, no interior do estado, após escutas telefônicas terem revelado que organizações criminosas estariam planejando uma rebelião no Dia das Mães. Em resposta, foram registrados ataques da facção criminosa PCC (Primeiro Comando do Capital) que resultaram na morte de agentes de forças de segurança pública. Delegacias, postos policiais e viaturas foram atacadas.

A contrapartida veio em uma série de ataques a civis realizados por policiais e grupos de extermínio ocm indício de relação com agentes de segurança que resultaram em 564 mortes e mais de 100 feridos naquele maio de 2006. O dia mais simbólico foi 15 de maio, quando um toque de recolher parou São Paulo.

No salão nobre da Faculdade de Direito, as Mães de Maio se revezaram na difícil e dolorosa tarefa de contar o porquê de estarem ali. O filho de uma foi fuzilado em uma rua movimentada. Outro deixava o baile funk quando foi morto em uma emboscada. O de Débora Maria da Silva foi  buscar um remédio e foi morto à noite na rua em que limpou de dia como gari. 

A dor dela e de outras mães que perderam os filhos em maio de 2006 deu início ao movimento que cobra justiça. Hoje, 17 anos depois, o grupo de mulheres se apoia não só no luto, mas também na compra de remédios, na ajuda para botar comida na mesa e até mesmo para enterrar mães que não resistem aos anos de sofrimento e injustiça. Se somaram às mães paulistas, mulheres que perderam filhos no Rio de Janeiro e também em tragédias mais recentes.

Ana Paula de Oliveira, das Mães de Manguinhos, que perdeu o filho Johnathan em 2014 assassinado por um policial militar fluminense, também discursou na audiência pública desta quinta (18). Ana se emocionou ao falar que as vítimas são geralmente negras, pobres e faveladas. “É uma luta muito legítima porque é uma luta pela vida”, disse.

Na audiência pública, ressoou a cobrança por ações efetivas do Estado brasileiro. A fala foi dirigida diretamente a representantes do atual governo que compuseram a mesa principal e as cadeiras do salão. Junto às mães no palco estavam Marivaldo Pereira (secretário de Acesso à Justiça do Ministério da Justiça), Isadora Brandão (representante do Ministério de Direitos Humanos) e Marcelle Decothe (Ministério da Igualdade Racial).

“O Brasil tem uma dívida muito grande com essas mães de vítimas da violência do Estado. É fundamental que a gente tenha políticas públicas para acolher, para apoiar essas mães que ainda sofrem diante da falta de Justiça, da falta de julgamento, da falta de esclarecimento do assassinato de seus filhos”, ponderou Marivaldo em entrevista à Ponte

Além de cobrança nos discursos, as mães aproveitam brechas para ir direto aos representantes do Executivo reforçar o pedido. Foram vários os momentos em que se formaram rodas em torno das autoridades. “Você tem que me ajudar a solucionar o caso do meu filho”, disse uma delas a Marivaldo. 

Os pedidos das mães serão levados a Brasília no dia 31 de maio para uma audiência pública na Câmara dos Deputados, no âmbito da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. O objetivo, explica Débora Silva, fundadora do Movimento Independente, é dar celeridade à aprovação de medidas que possam oferecer algum suporte para as mães. 

A principal delas é o projeto de lei 2.999/2022, apresentada pelo deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP). Ele cria a “Lei Mães de Maio” e estabelece a elaboração de um programa de enfrentamento aos impactos da violência institucional e revitimização de família que perdem entes em ações violentas.

Se aprovado, o Estado terá garantir suporte institucional integral e multidisciplinar às mães e parentes das vítimas, além de melhorar estratégias para coibir novas formas de violência contra crianças, adolescentes e jovens.

“Queremos deixar esse legado. A gente enterrou mães com depressão e AVC. Nós não podemos deixar que quem passa por isso depois de nós sofra. Muitas coisas que fazemos não servem mais para nós e sim para elas. Queremos amenizar ao máximo a dor dessas mulheres”, afirmou Débora. 

Mumificada e vilipendiada, Jacinta foi homenageada em audiência 

“Você me vê?”, perguntam seis alunos em coro. O grupo faz uma intervenção em meio a audiência pública das Mães de Maio para lembrar Jacinta Maria Santana. A mulher negra teve o corpo mumificado e deixado em uma sala da universidade por 30 anos. 

O ato “JACINTA”, promovido por membros da Coletiva Preta Performance nesta quinta-feira (18), lembrou a memória da mulher negra morta em 1890. A história dela foi contata pela historiadora Suzane Jardim em estudo que analisou jornais publicados por entidades negras ao longo do século XX. O resultado da pesquisa foi revelado em reportagem da Ponte.

Jacinta foi mumificada por Amâncio de Carvalho, professor de medicina legal da USP, e teve seu corpo vilipendiado e usado em trotes dos próprios alunos da instuição, como mostrou a pesquisa de Suzane.

Giovana Batista, uma das organizadoras, conta que o ato foi planejado para ocorrer em conjunto com a audiência pública das Mães de Maio. “São mães que perderam os filhos para a violência estatal e querendo ou não, foi algo que aconteceu com a Jacinta dentro dessa universidade. As pessoas pretas no Brasil são violentadas o tempo inteiro”, disse Giovana. 

A apresentação foi mais um passo dentro da instituição para o reconhecimento de Jacinta. Em março deste ano, o nome de Amâncio de Carvalho foi retirado de uma sala que o homenageava. A decisão foi aprovada após votação da congregação da entidade.

Outro movimento que tenta retirar homenagens ao eugenista é a PL 0161/2023 da vereadora Luana Alves (Psol). A proposta quer remover o nome de Amâncio de uma rua na Vila Mariana. O texto ainda precisa ser votado e aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa (CCJ) da Câmara de Vereadores de São Paulo para ir a plenário.

O grupo ocupou o pátio da instituição. Os seis performistas estavam com o corpo coberto por fita adesiva e alteravam placas com o nome de Jacinta e questionamentos sobre a história da mulher mumificada. Uma das placas trazia o título da reportagem da Ponte. Por um QR Code, que também foi espalhado pelas paredes da instituição, era possível acessar o texto. 

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Em determinado momento da audiência, as mães desceram as escadas em direção ao pátio e se juntaram aos alunos que faziam a intervenção artística. O ápice foi quando Débora se dirigiu ao público e gritou: “Vocês sabem quem é Jacinta?”. 

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