Rapper cobra militância no rap e fala sobre projeto solo. Ácido, afirma: ‘O homem que não fala de dinheiro e mulher vai falar do quê?’
Quando Pedro Paulo decidiu fundar um grupo de rap com o primo Paulo Eduardo e os amigos Adivaldo e Kleber, os sonhos eram ambiciosos e o céu era o limite. Para os quatro jovens da periferia de São Paulo, a maior, mais desigual e mais capitalista cidade do país, o grupo Racionais MCs seria a voz da revolução, ou além, a própria revolução.
Passadas duas décadas e meia e muitas aventuras, histórias e emoções dentro do furacão da maior banda de rap do país, Pedro Paulo, o Mano Brown, sabe como ninguém a dor e a delícia de ser a revolução.
Pessoalmente e como artista, a carreira de Mano Brown chegou a um ponto onde era preciso, nas suas palavras “essencial”, desenvolver um trabalho solo, de caráter pessoal e enfrentando desafios que não são, necessariamente, os mesmos do Racionais. Para Brown, a música aponta para Berry White e Marvin Gaye.
“O que me faz continuar é a música, não o status. Se você analisar, eu estou abandonando o Mano Brown que é consagrado por uma filosofia, uma massa, um povo gigantesco que conhece os Racionais e indo procurar o canto do corner, para lutar por um espaço, por um lugar ao sol, estou saindo de uma zona de conforto. Tem gente dizendo que eu estou me vendendo, mas é o oposto disso. Eu estaria me vendendo se continuasse falando só aquilo que as pessoas querem que eu fale, as mesmas coisas sempre. Nada é igual depois de 27, o Brasil mudou em 27 anos, tudo mudou”, diz.
Segundo Brown, o que não pode mudar é a militância política e os ideais. “Eu estou cada dia mais militante ainda, no dia-a-dia, na prática, não no outdoor. Tem muita coisa no outdoor, mas e no dia-a-dia? Não é só cantar. ‘Ah, eu vou fazer um rap falando de injustiça social’. Não. Não é assim. Trabalhe isso. Viva isso. Pode até falar de amor, mas viva isso. Você escreve e fala, mas não vive? Sai do portão pra fora para ver como o povo vive. Será que nesse momento precisa por o chicote para estalar mais ainda?”, questiona.
“Continuo gangsta. O cara que não gosta de mulher é gangsta onde? Não entendeu nada. Se não tiver mulher nas ideias não tem gangsta, não tem malandro. O homem que não fala de dinheiro e mulher vai falar do quê?”, afirma Mano Brown
Não foi por mais liberdade que ele decidiu pelo trabalho solo. Até porque o grupo se organiza como uma gangue, onde todos têm a sua liberdade e posição, mas seguem o rígido código de conduta das ruas, com disciplina e responsabilidade. Foi com este lema de “Um por todos e todos por um” que o grupo foi derrubando barreiras e revolucionando.
O enfrentamento político, estético e cultural do Racionais MC’s fez muito pela música, mas, internamente, trouxe desgasto. “Eu já estava desmotivado e fazer um disco solo me motivou novamente”, diz Brown, que este mês soltou nas plataformas de música digital o álbum “Boogie Naipe”, disco solo mixado em Nova Iorque, com arranjos de cordas, corais e participações especiais como Leon Ware, Ellen Oléria, Lino Krizz, Carlos Dafé, William Magalhães e Seu Jorge.
O álbum é uma incursão profunda e visceral no universo da soul music e da black music. Estilos musicais que fizeram a cabeça de Pedro Paulo na infância e adolescência vividos em diversos bairros pobres da zona Sul de São Paulo. Por este ponto de vista, o disco é o encontro entre Pedreira e Motown, cidade sede da gravadora mais icônica da black music. É um encontro, pois o integrante dos Racionais afirma que continua o mesmo gangsta e que não existe antagonismo entre o rap e a black music romântica.
“Continuo gangsta. O cara que não gosta de mulher é gangsta onde? Não entendeu nada. Se não tiver mulher nas ideias não tem gangsta, não tem malandro. O homem que não fala de dinheiro e mulher vai falar do quê?”, diz.
Entre o início do trabalho e a finalização do disco, Mano Brown levou dois anos arregimentando produtores, participações e compositores. Ao todo foram mais de 40 canções, dessas 22 entraram no álbum e, nas contas do Brown, tem mais 14 quase prontas para um próximo álbum. Duas canções canções com pegada black music que foram feitas para o projeto solo acabaram cedidas aos Racionais MCs para entrar no álbum “Cores e Valores” (2014). É o caso de “Coração Barrabaz”e “Eu te Proponho”.
“Quantos anos de cadeia você tirou, você usa droga, você é viado? É isso que interessa. A música em si, não. Hoje sai um monte de música e ninguém mais ouve. A impressão que dá é que o brasileiro nem gosta mais de arte: gosta é de sexo, drogas e a vida dos outros”, diz Mano Brown.
Sobre o show de lançamento do álbum, Brown pretende montar uma banda para reproduzir ao vivo o som do disco, ou seja, com uma química que seja igual aquela do final dos anos 70 e início dos 80. “Sonhei em trazer o Leon Ware para fazer o show comigo na Pedreira, na beira da represa Billings”, diz, referindo-se a um dos bairros de inspiração do álbum.Para Brown, o álbum também é um projeto para ampliar o horizonte musical dos ouvintes, principalmente os fãs de rap, samba e funk contemporâneo. “É onde eu quero chegar com o Boogie Naipe. Quero levar o som que ninguém tá fazendo, aquele som que a gente ama, mas não tá mais aí. O povo que tá ouvindo o funk no pancadão não tem acesso, é lá que eu quero entrar com o Boogie Naipe“, diz.
Nas participações especiais, Brown construiu uma ponte entre várias gerações da música negra brasileira. “O pessoas dessa geração, como Carlos Dafé e Hyldon, precisa saber que a gente sabe fazer alguma coisa hoje e graças a eles. Foi muito bom ouvir e aprender com eles”, diz.
Nas palavras do escritor e jornalista Gilberto Yoshinaga, autor da biografia sobre Nelson Triunfo, e um grande especialista em soul music e hip-hop, o disco do Mano Brown chega em um momento crucial para o futuro da música. “‘Boogie Naipe’ consolida o amadurecimento musical e humano do Mano Brown e, com muita justiça e propriedade, resgata e homenageia o soul, o verdadeiro funk e o r&b, escolas que moldaram a criação do próprio rap. Um álbum que já nasce clássico – o que é raro em tempos de ‘música descartável“, diz Yoshinaga.
Rap
Sobre o rap, Mano Brown é contundente sobre os rumos que o movimento tomou nos últimos anos. “Em determinado momento, o que menos interessava no rap era a música. Estava todo mundo focado no entorno, a marca do tênis que você usa, o modelo do carro que você tem do que com a música que você faz. Nos últimos anos, a minha maior aparição na mídia foi quando fui preso. Eu tinha lançado um álbum um mês antes e tinha ganhado um prêmio de melhor música do anos 15 dias antes, mas ninguém falou, nem meus companheiros de movimentos comentaram, mas quando fui preso, todo mundo falou”.
Para Brown, o clima de superficialidade contaminou o movimento e o público. “O que interessava já não era a música, era o lado tosco, grotesco da coisa. Quantos anos de cadeia você tirou, você usa droga, você é viado? É isso que interessa. A música em si, não. Hoje sai um monte de música e ninguém mais ouve. A impressão que dá é que o brasileiro nem gosta mais de arte: gosta é de sexo, drogas e a vida dos outros. O povo que eu respeito e para quem eu sempre fiz música, eu espero que me entendam, como pessoa e não como um símbolo”.