Vítima havia visitado o Shopping Anália Franco, na Zona Leste de São Paulo, para fazer compras no supermercado e foi seguida e abordada por seguranças após seguir os protocolos de prevenção à Covid-19 e ir ao banheiro lavar as mãos
O profissional do ramo de maquiagens Pedro Henrique, 35 anos, relata que ser negro é estar em constante vigilância contra o racismo e os diversos tipos de silenciamento provocados pelo sistema de opressão. No dia 6 de setembro, ele foi vítima de racismo no Shopping Anália Franco, bairro de classe média da Zona Leste de São Paulo. Ao tentar denunciar o caso, a Polícia Militar pressionou para o crime de racismo ser registrado apenas como “constrangimento ilegal”.
Pedro Henrique mora no bairro há 12 anos, é cliente de algumas lojas do shopping há mais de uma década e no momento do crime racial ele seguia todos os protocolos de prevenção à Covid-19, o novo coronavírus, conforme recomenda a OMS (Organização Mundial de Saúde). “Era um domingo, começo de tarde , fui ao mercado dentro do shopping, estava de máscara e como já tinha outras lojas abrindo decidi dar uma volta no segundo e no terceiro andar para comprar um presente e encomendar um bolo”, conta o maquiador.
Ele estava com uma sacola carregando as compras feitas no supermercado. Passou pelas câmeras de segurança nos corredores, exatamente como os demais clientes que estavam com sacolas , observava as vitrines e entrava nas lojas abertas. “Em um momento eu entrei no banheiro para lavar as mãos e entrei e um segurança perto da porta ficou me olhando. Depois vi que ele falou alguma coisa no rádio e fiquei com aquela sensação de que alguém estava me observando, mas continuei vendo as lojas”, lembra.
Um dos principais protocolos de segurança no combate à Covid-19 é manter as mãos higienizadas. Pedro Henrique, um tempo depois, retornou ao banheiro para lavar as mãos novamente e dentro do sanitário foi abordado por um segurança. “Ele nem deu boa tarde, já disse: ‘deixa eu ver a sua sacola’. Eu falei: ‘como?’ e ele: ‘é, deixa eu ver a sua sacola’. Eu perguntei o motivo e ele disse que eu estava em ‘uma atitude suspeita’.”, conta o maquiador.
No corredor de acesso ao banheiro, havia mais dois seguranças. Um deles era o mesmo que seguia o maquiador no segundo e no terceiro andar do shopping. Pedro, cercado por três seguranças que agiam de forma ríspida, colocou a sacola no chão e mostrou os alimentos que comprou e a nota fiscal do mercado. “Eu falei que iria filmar porque não achava correta a postura. Ele retrucou dizendo que já estavam filmando também. Eu disse: ‘você sabe o que é isso? é racismo. Tem um monte de clientes aqui e você não abordou nenhum deles para falar que estavam com atitude suspeita’”, recorda.
Após ter as compras feitas no supermercado revistadas por um dos seguranças, o maquiador disse que iria levar a história adiante e procurar a advogada dele. Neste momento, segundo Pedro Henrique, o segurança disse que não se tratava de racismo e passou a mão na própria pele para indicar que também era negro. “Eu disse que não era uma questão pessoal, que ele estava ali representando uma instituição que promovia um protocolo racista”, conta.
Os outros dois seguranças que participaram da abordagem eram brancos. Pedro ligou para amigos que estavam na região e chamou a polícia. Eles ficaram aguardando no sala de segurança. “Diante de outras testemunhas o segurança mudou o discurso e disse que tinha um cliente que havia me visto no banheiro em atitude suspeita. Eu perguntei onde estava esse cliente, porque se tem alguém te acusando, precisa se identificar, não é?”, questiona.
Quando os policiais militares chegaram no shopping, segundo a vítima, a tensão aumentou. “Os policiais comprimentaram o segurança como se fossem amigos, com intimidade. Depois vieram hostilizar e intimidar a gente”, recorda. “Eles disseram que o delegado, provavelmente, não iria fazer o registro de racismo. Eles falavam assim: ‘você chamou ele de gordo, você chamou ele de negro, chamou ele de gay, então não é racismo’. O PM falou isso sem nem ter ouvido o que a gente ia dizer”, complementa Pedro Henrique.
O artigo 20 da lei federal 7.716/1989 define como crime de racismo “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. “O que mais me choca é eles colocarem sempre a gente no papel de culpado. Foi como eu me senti com a ação dos policiais e a postura dos seguranças do shopping”, desabafa a vítima.
Registro do crime
Os policiais militares, ambos brancos, que participaram do atendimento à denúncia de racismo não se identificaram. No boletim de ocorrências feito no 31º Distrito Policial, no bairro do Carrão, também na Zona Leste, eles aparecem como soldado Alves e soldado Sanches, da viatura prefixo M-08109.
Na notificação de ocorrência, apresentada na delegacia, os PMs definiram o caso como “constrangimento ilegal” e incluíram apenas o nome do segurança negro como autor. Os dois seguranças brancos que participaram da abordagem não foram citados. O boletim de ocorrência feito pela delegada Adriana Parente Silvestre e pelo escrivão Rogério Yokomiro em nenhum momento faz menção ao racismo ou às imagens gravadas pelos amigos da vítima.
No registro, a cor de pele do maquiador também foi registrada como parda, diferentemente de como ele se declara. “Não sei de onde tiraram isso, eu me autodeclaro negro. Eu sou negro. Isso está gravado na conversa com os policiais”, diz Pedro Henrique.
A pena prevista para o crime de racismo é de até cinco anos. No caso de constrangimento, a pena prevista é de um ano. Na semana seguinte após o ocorrido, uma funcionária do Shopping Anália Franco ligou para o maquiador e pediu desculpas em nome do centro de compras.
O Alma Preta procurou a assessoria de imprensa do shopping para comentar sobre o caso. Em nota, o centro comercial informou que “lamenta o ocorrido e ressalta que a postura relatada está em desacordo com os treinamentos e procedimentos adotados pelo empreendimento”. A nota segue com a informação de que um segurança “que conduziu a abordagem indevida foi afastado enquanto os fatos são apurados”.
A Secretaria de Segurança Pública (SSP) informou em nota enviada à reportagem que “a Polícia Civil esclarece que a natureza da ocorrência foi tipificada com as informações passadas no momento do registro e pode ser alterada no decorrer das investigações, sem prejuízos das apurações”.
Ainda segundo o órgão vinculado ao governo do estado, o caso é investigado pelo 30º Distrito Policial, que apura todas as circunstâncias relacionadas à ocorrência. “A autoridade policial deve ouvir a vítima novamente e as diligências seguem para esclarecer os fatos”, diz a pasta.
Reportagem publicada originalmente no Alma Preta.