Marcha da Consciência Negra celebra avanços e critica a violência em SP

    Ato, ocorrido pela primeira vez em um feriado nacional, cobrou novos avanços sociais, como o fim da escala 6×1, e protestou contra o genocídio do povo negro

    A marcha foi da Avenida Paulista até o Theatro Municipal de São Paulo, puxada pelo bloco Ilú Oba de Min | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Aprovado pela Câmara dos Deputados em 2023 e sancionado pelo presidente Lula (PT) em dezembro do ano passado, o feriado de 20 de novembro, que marca a data de morte de Zumbi dos Palmares, foi pela primeira vez nacional. Em São Paulo, a data é marcada pela Marcha da Consciência Negra, que em 2024 chegou à sua 21ª realização. A Ponte acompanhou o dia de celebração por avanços na ocupação de espaços na sociedade e de protestos pela violência direcionada ao povo negro.

    A deputada estadual da Bancada Feminista do Psol, Simone Nascimento, de 28 anos, participou da organização e esteve presente no ato, que teve como tema este ano “Palmares de pé, racismo no chão. Zumbi e Dandara vivem em nós!”. Para a parlamentar, que também é Coordenadora Estadual do Movimento Negro Unificado (MNU), é uma grande vitória que o feriado tenha se tornado nacional.

    Leia mais: Homens negros têm 3 vezes mais chances de morrer por arma de fogo do que não negros

    Em 2023, a data originalmente municipal havia se tornado feriado estadual, após votação unânime na Assembleia Legislativa de São Paulo. ”O primeiro feriado nacional da consciência negra é uma grande vitória para nós, e nossa forma de comemorar será através da luta nas ruas. Seguiremos assim pelo fim do racismo no Brasil”, disse Simone.

    Zezé Menezes, integrante da Marcha de Mulheres Negras de São Paulo, organização que participou da construção da 21ª Marcha da Consciência Negra, concorda com a colega do MNU. “Como feriado nacional, é um momento em que a classe trabalhadora, os trabalhadores pretos, da periferia, e a população pobre pode ter um dia livre para participar da marcha ou fazer outras coisas.”

    “É um dia em que buscamos resgatar essa memória da luta da população afrodescendente aqui no Brasil. O que foi essa luta, quais são as nossas conquistas, como a lei 10.639/03, de ensino de cultura afro-brasileira e africana nas escolas, e denunciar as violações constantes e persistentes dos direitos da população negra”, completa Zezé.

    A professora aposentada Bernadete da Silva, para quem “professores negros ainda são minoria” | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Mesmo após as conquistas, a luta prossegue. Em 2023, 20 anos após a promulgação da lei de ensino de cultura africana, uma pesquisa realizada pelo Geledés Instituto da Mulher Negra e o Instituto alana revelou que diretrizes não são cumpridas por 71% dos municípios brasileiros.

    A professora aposentada Bernadete da Silva, 60, ouvida pela reportagem, cobrou a efetividade da lei. “Temos a obrigação de ensinar cultura e história africana nas escolas, mas a luta não para na conquista. Professores negros ainda são minoria e carregam, eles próprios, suas marcas”, disse.

    A concentração para a marcha teve início às 13h, em frente ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), na Avenida Paulista, de onde povos de terreiro, blocos musicais e grupos do movimento negro organizado saíram juntos em direção ao Theatro Municipal. Um xirê, ritual de celebração do Candomblé, marcou a abertura do ato, sendo seguido de apresentações artísticas de samba, reggae e hip-hop, que ocuparam o espaço antes do início das falas programadas.

    Falas de celebração foram intercaladas com discursos de protesto contra violências, incluindo a policial, contra o povo negro. Ryan da Silva Andrade Santos, garoto de 4 anos morto após ser atingido por disparo da Polícia Militar em Santos, foi lembrado em discursos e cartazes, e seu nome apareceu ao lado de outros jovens desaparecidos ou vítimas da violência de Estado.

    O menino Ryan da Silva Andrade Santos, de 4 anos, morto pela PM em Santos, foi lembrado | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Horas antes da marcha, estudo realizado pelo Instituto Sou da Paz e reportado pela Ponte revelou que homens negros morrem três vezes mais por armas de fogo do que não negros.

    “Nossos corpos são políticos”, refletiu o músico Marcus Vinicius, 49, que compareceu à marcha em família, a pesquisadora Cristiane Dias, 48, e a filha do casal, Nawi, de pouco mais de um ano. “Hoje é um dia de celebração, mas também de reafirmação. Um movimento emancipatório que não diz respeito só a nós, mas a toda a nação”, disse ele. Cristiane analisa que a presença da filha na comemoração é “um marco”: “É simbólico estarmos celebrando, e é simbólico virar um feriado nacional”, diz.

    A principal pauta espalhada nos discursos e cartazes da marcha, porém, foi o fim da escala de trabalho 6×1, tema que tomou as redes sociais nas últimas semanas. “Qual a cor de quem trabalha 6×1?”, perguntava uma das faixas que desfilavam pela Avenida Paulista. Presente principalmente no comércio, esse sistema de trabalho exaure trabalhadores, que atuam em suas funções quase ininterruptamente, e mantém desigualdades sociais e trabalhistas.

    A pesquisadora Cristiane Dias e o músico Marcus Vinicius compareceram à marcha com a filha Nawi, de 1 ano | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    Puxado pelo bloco Ilú Obá de Min, os presentes caminharam juntos até o Theatro Municipal, palco histórico do movimento negro organizado. Foi lá, nas escadarias do prédio, que em 1978 o MNU, Movimento Negro Unificado, ergueu cartazes e seus punhos contra o racismo. O ativista Milton Barbosa, o Miltão, 76, estava presente no local há mais de quatro décadas e comemorou: “Nós estamos vivendo um novo momento, que começa hoje, com o Dia Nacional da Consciência Negra. É uma nova luta, e uma vitória imensa.”

    A marcha reuniu outros integrantes de décadas do movimento negro, e homenageou Flávio Jorge, líder negro que lutou em toda sua carreira política por igualdade racial. Jorginho, que faleceu este ano, lutou contra a ditadura militar e foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores.

    O ato foi acompanhado pela PM durante todo o trajeto, mas não houve incidentes. Cláudio Aparecido, ouvidor das polícias de São Paulo, esteva presente ao cortejo. “Os propósitos da Ouvidoria da Polícia do Estado convergem com os propósitos do movimento negro”, disse ele.

    Os manifestantes recriaram a tradicional foto nas escadarias do Theatro Municipal | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

    “Ao longo da história o movimento negro tem denunciado a violência contra o povo. Seja praticada pela polícia ou a violência social, as pessoas negras são as mais violadas no nosso país, então para nós é muito relevante fortalecer movimentos e iniciativas como essa”, completou o ouvidor.

    O cortejo parou em frente à Biblioteca Mário de Andrade, onde uma roda de capoeira foi formada em homenagem ao Mestre Ananias, do bairro do Bixiga em São Paulo, e ao Mestre Moa do Katendê, de Salvador (BA), assassinado por um bolsonarista durante as eleições de 2018. No início da noite, sob o canto de “Marielle Vive, Marielle Viverá” e “Palmares de Pé, Racismo no Chão”, a marcha chegou ao Theatro Municipal — onde foi recriada a já tradicional foto nas escadarias.

    O ato se encerrou com os presentes entoando “Se Palmares não existe mais, faremos Palmares de novo”.

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