Marcha das Mulheres Negras enche centro de SP de poesia e resistência

Edição de 2023 celebrou ancestrais e teve como principal tema a cobrança por respostas à morte de Marielle Franco e de anônimas vítimas do feminicídio e da violência policial

Elisabete de Almeida Dias se inspirou em frase de Carolina de Jesus. | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Quem andava pelas ruas do Centro de São Paulo na noite desta terça-feira (25/7), podia encontrar uma mulher negra, jovem, andando sozinha, a passos largos e segurando uma cartolina com a famosa frase da escritora Carolina de Jesus: “Se existe reencarnação, eu quero voltar sempre Preta”. Era Elisabete de Almeida Dias, que estava a caminho da oitava edição Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, evento que, desde 2016, reúnem mulheres de diversas regiões do estado. 

O evento acontece todo dia 25, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. No Brasil, a data ganha um contorno especial a partir da Lei nº 12.987/2014, que destaca a homenagem a Tereza de Benguela, líder do quilombo Quariterê, no atual estado do Mato Grosso, local de resistência de pessoas negras e indígenas escravizadas no século XVI. Enquanto a Marcha acontecia em São Paulo, o Brasil também realizava incidências políticas pela data: na Colômbia, a ministra de Igualdade Racial, Anielle Franco, assinou com o o governo colombiano um acordo de combate à discriminação.

Neste ano, a marcha começou com shows na Praça da República e terminou em frente à Biblioteca Mário de Andrade, com a leitura do manifesto desse ano: “Mulheres negras em marcha por um Brasil com democracia! Sem racismo! Sem violências! Sem anistia para os fascistas! Justiça por Marielle Franco e Luana Barbosa! Por nós, por todas nós, pelo Bem Viver!”. O manifesto completo, distribuído para as pessoas ao final do evento, pode ser lido aqui.

Sobre a marcha, Elisabete disse ter se atraído pelo sentimento de “quilombo” que o evento devolve para as ruas, e, apesar de não fazer parte de nenhum movimento, saiu da Zona Norte da cidade sozinha para prestigiar a noite com sua manifestação solitária, e que, ao final, atraiu a atenção de muitas pessoas que estavam nas ruas. 

“Eu vim porque eu sei que hoje é meu dia, e escrevi a frase na cartolina porque ela fala de muitas vozes. Escolhi a frase de uma mulher que escreveu um livro, ficou famosa e mesmo assim morreu pobre, mas que nunca deixou de ter orgulho ou esqueceu quem ela é”, conta Elisabete. A jovem de 25 anos é estudante de psicologia e leitora de Carolina de Jesus, autora de Quarto do Despejo, diário que ficou famoso, nos anos 50, por contar a trajetória dos moradores da favela do Canindé e do dia a dia de uma catadora de latinhas, uma mulher negra retinta que tinha paixão pela escrita. 

Expressões de luta

Celebrar a luta através da arte foi uma constante durante toda a Marcha. No palco da concentração, na Praça da República, a companhia de dança Macuas realizou uma apresentação em que trouxe, como destaque, a importância de olhar para as subjetividades da mulher negra. 

“Cada mulher negra precisa lembrar dos seus autocuidados, se olhar, para quando for ao coletivo, conseguir ter forças para a luta. É sobre se olhar primeiro para conseguir ter condições de cuidar de manas que às vezes não estão bem e precisam que a gente esteja lá por elas”, explica a coreógrafa e diretora da companhia, Débora Marçal.

Grupo Macuas se apresenta pela segunda vez na Marcha das Mulheres Negras de SP. | Foto: Daniel Arroyo/Ponte

A poesia também construiu a narrativa da marcha em muitos momentos. A poetisa Angel Aguiar, do movimento de educação popular Emancipa, lembrou em versos a importância de ouvir as travestis no movimento de mulheres negras.

Ao final, poetisas do Coletivo Flores de Baobá também recitaram versos em homenagens às mulheres que partiram nos últimos anos, como a poetisa Tula Pilar (1970-2019) e a ativista Solimar Carneiro(1956-2003).

O Bloco Afro Ilú Oba de Min também conduziu o cortejo da marcha, levando para as ruas a potência do sincretismo afro-religioso e da música popular preta que as Pastoras do Rosário também já tinham trazido ao palco da Praça da República.

Do Sankofa às diferenças 

A marcha é construída por mulheres de diversas idades e de diversos repertórios políticos, buscando trazer um pouco do que está na cerne do feminismo negro: a importância de construir incidências a partir das diferenças. Codeputada estadual pela Bancada Feminista (PSOL), Carolina Iara aponta que o movimento de mulheres negras já carrega, em suas origens, algo que define como “inovação política”, ao construir uma pauta política interseccional, voltada a diferentes indicadores sociais e políticos.

“Derrotamos o Bolsonaro, mas o bolsonarismo não acabou, aqui em São Paulo mesmo estamos enfrentando um governo que nos leva a lutar na Alesp [Assembleia Legislativa de São Paulo] todos os dias. Então é o momento em que precisamos ouvir as mulheres negras e o que elas conseguem trazer para a política: a importância de não deixar pessoas trans, periféricas, negras e mais ninguém para trás”, alerta.

Carolina Iara destacou a inovação política do movimento de mulheres negras | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

É muito conhecida, entre o movimento negro, a expressão “nossos passos vêm de longe”. A frase foi adotada partir do artigo da médica e ativista Jurema Werneck, “Nossos passos vêm de longe! Movimento de mulheres negras e estretégias políticas contra o seximo e o racismo”, em que relata as estratégias do feminismo negro para buscar avanços sem esquecer a inteligência política construída por mulheres décadas atrás, um sentimento que ativistas de diferentes gerações também encontraram na Marcha.

Codeputada estadual pela Bancada Monica do Movimento Pretas (PSOL), Ana Laura Cardoso também fez parte da comitiva de mulheres que construiu a edição da marcha deste ano. Aos 29 anos, a jovem comemora a importância de construir o movimento sempre olhando para trás, tal como um sankofa, um adinkra, símbolo africano, muitas vezes evocado por movimentos negros.

Aos 29 anos, Ana Laura é codeputada pela Bancada das Pretas e uma das articuladoras da Marcha. | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

“É um momento de respeito a nossas griôs, a Teresa, a Dandara, mas também as histórias de mulheres que também fizeram parte da nossa memória recente, como a Marielle, e também aquelas que estão com a gente todos os dias, pombas-giras, que fazem parte de nossa ancestralidade também, mas são constantemente invisibilizadas”, reflete.

Líder histórica do Movimento Negro Unificado (MNU), Regina Lúcia dos Santos, aos 68 anos, classificou o momento da Marcha como um evento “reenergizante”. Apesar de ficar na Marcha até o final, por volta das 22h30 da noite, Regina já se preparava para amanhecer cedo e participar das manifestações em apoio ao projeto Meninos e Meninas de Rua. Para ela, o encontro de gerações é importante para lembrar que a luta não para.

“É uma juventude que está aí sempre para lembrar que as mulheres negras sempre fizeram parte da base política, mesmo quando foram invisibilizadas pela história. Nosso movimento muitas vezes não chega em muitas regiões do país como organização, mas temos hoje jovens mulheres que seguem fazendo o necessário para que aquelas vidas negras e periféricas, que muitas vezes não nos conhecem, sejam impactadas por políticas públicas que lutamos para que aconteçam”, explica.

Regina Lúcia dos Santos, líder do Movimento Negro Unificado. | Foto: Daniel Arroyo

A marcha aconteceu, coincidentemente, no dia em que se soube, a partir da delação do cúmplice Élcio Queiroz, que o policial Ronnie Lessa foi o autor dos disparos que mataram a vereadora Marielle Franco. O avanço das investigações, no entanto, ainda é pouco para as mulheres, que também exigiram no palco a resposta sobre quem mandou matar a vereadora carioca. 

O sentimento de usar o luto para a luta também é compartilhado por Cátia Laurindo, conhecida no movimento como Nega Show. Uma das idealizadoras da marcha em São Paulo, a sindicalista conta que encontra forças em ir à rua quando se lembra da filha, Laila, vítima de um feminicídio.  

Para Cátia, trabalho da marcha está voltado, principalmente, a fazer com que as pessoas não se esqueçam das mulheres negras no momento de enfrentar as diversas violências contra a população feminina, já que sempre são colocadas, ela lembra, no lugar de pessoas que precisam enfrentar desafios diários de forma solitária, pois são vistas como “guerreiras” ou “fortes”. 

Conhecida como Nega Show, Catia Laurindo destaca luta pelo movimento para acolher mulheres negras vítimas de violência | Foto: Daniel Arroyo

“Infelizmente, a violência aumenta a cada ano, mas acreditamos que o caminho é o fortalecimento de políticas públicas que levem as mulheres negras a falar que também sofrem dessas violências, que ainda normalizamos na nossa sociedade que são coisas que elas precisam enfrentar sozinhas. A minha filha não falou para mim o que estava acontecendo, e foi morta pelo marido quando ela pediu a separação. Precisamos criar uma política para que as mulheres negras saibam que também podem falar e ser cuidadas”, desabafa.

Na marcha pela primeira vez, a assistente social Augusta Santo, de 50 anos, também destacou a importância de pensar nas violências do cotidiano, que para ela, muitas vezes são esquecidas. Baiana e residente de São Paulo há 25 anos, chegou a contragosto, como contou, mas não demorou a se identificar com as mensagens das bandeiras e das falas no palco. Augusta acha que a conversa da Marcha ainda precisa estar mais presente no dia a dia de quem vive atendendo mulheres negras que ainda estão distantes do movimento.

Augusta Santo foi à Marcha pela primeira vez | Foto: Daniel Arroyo

“Eu acho muito importante evocar figuras de mulheres que deixaram um legado e tiveram suas vidas interrompidas, como a Marielle, mas no dia a dia temos violências que nos matam aos poucos e que precisam ser mais conversadas com mais coragem entre as pessoas que ainda não fazem parte da luta”, opina.

Já que Tamo junto até aqui…

Que tal entrar de vez para o time da Ponte? Você sabe que o nosso trabalho incomoda muita gente. Não por acaso, somos vítimas constantes de ataques, que já até colocaram o nosso site fora do ar. Justamente por isso nunca fez tanto sentido pedir ajuda para quem tá junto, pra quem defende a Ponte e a luta por justiça: você.

Com o Tamo Junto, você ajuda a manter a Ponte de pé com uma contribuição mensal ou anual. Também passa a participar ativamente do dia a dia do jornal, com acesso aos bastidores da nossa redação e matérias como a que você acabou de ler. Acesse: ponte.colabore.com/tamojunto.

Todo jornalismo tem um lado. Ajude quem está do seu.

Ajude

mais lidas