‘Massacre de Paraisópolis’ chega a sexta audiência ainda sem previsão de ida de PMs a júri

    Justiça avalia denúncia contra 13 policiais por morte de nove jovens em 2019, encurralados em uma ação da PM em um baile funk na zona Sul de São Paulo. Familiares fizeram ato por justiça hoje (31/1) em frente ao Fórum da Barra Funda

    Familiares e amigos dos nove jovens mortos pela Polícia Militar em 2019 fizeram manifestação hoje (31/1) em frente ao Fórum Criminal da Barra Funda | Foto: Paulo Batistella/Ponte Jornalismo

    A Justiça de São Paulo realiza nesta sexta-feira (31/1) a sexta audiência de instrução do caso que ficou conhecido como “Massacre de Paraisópolis”, em que nove jovens foram mortos em 2019 ao serem encurralados pela Polícia Militar na dispersão de um baile funk na comunidade na zona sul da capital.

    A previsão é de que sejam ouvidas dez testemunhas da defesa na audiência, com início marcado para às 10h. Do lado de fora do Fórum Criminal da Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, familiares das vítimas e ativistas de direitos humanos fizeram um breve ato em memória dos “9 que perdemos”, com cartazes e fotos. O protesto contou com o apoio de entidades como a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio.

    Leia mais: Após 5 anos, famílias cobram justiça por Massacre de Paraisópolis

    A Ponte acompanhou o protesto. Três viaturas de trânsito da PM mantiveram-se no local, sem que os policiais interagissem com o público presente.

    “Hoje o sentimento é de dor. São cinco anos já que estou com essa dor, não aguento mais”, disse, aos prantos, Maria Cristina Quirino Portugal, mãe de Denys Henrique Quirino Silva, então com 16 anos, uma das vítimas do massacre. Além dele, também foram mortos no episódio os jovens Bruno Gabriel dos Santos, Dennys Guilherme dos Santos França, Eduardo da Silva, Gabriel Rogério de Moraes, Gustavo Cruz Xavier, Luara Victória Oliveira, Marcos Paulo Oliveira dos Santos e Mateus dos Santos Costa — todos com idades entre 14 e 23 anos.

    Processo em etapa inicial

    Apesar de passados mais de cinco anos, período em que familiares mantiveram a cobrança por justiça, o processo tramita em primeira instância ainda em uma etapa inicial. A audiência de instrução é feita após o Ministério Público oferecer denúncia contra os acusados. Nela, são coletadas provas e ouvidas testemunhas e réus, para que a Justiça decida se há ou não indícios de crime doloso contra a vida.

    ”A gente tem que ter esperança de que a Justiça não vai falhar, mesmo com tanta injustiça acontecendo. Não dá para vir aqui no fórum participar de uma audiência, duas, seis como é a de hoje, e não ter a expectativa de que a justiça vai acontecer. A gente tem que ter essa expectativa, não tem outra solução. É o que restou para nós”, disse Maria Cristina.

    Leia também: O que foi o Massacre de Paraisópolis

    O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) denunciou, em julho de 2021, 12 policiais militares por homicídio qualificado pelo massacre, com agravantes de motivo fútil, que dificultou a defesa das vítimas, com emprego de meio cruel e concurso de agentes (quando mais de uma pessoa participou do crime).

    Os denunciados são: Aline Ferreira Inácio, João Carlos Messias Miron, Luís Henrique dos Santos Quero, Rodrigo Almeida Silva Lima, Marcelo Viana de Andrade, Marcos Vinícius Silva Costa, Leandro Nonato, Paulo Roberto do Nascimento Severo, Gabriel Luís de Oliveira, Anderson da Silva Guilherme, Matheus Augusto Teixeira, José Joaquim Sampaio. Um outro policial, José Roberto Pereira Pardim, é acusado pelo crime de explosão, em razão do uso de bombas na ocasião do massacre, em trecho em que não havia tumulto ou perigo à PM.

    Ao final das audiências de instrução do caso de Paraisópolis, se o juiz Antonio Carlos Pontes de Souza concluir que pode ter ocorrido crime doloso contra a vida por parte dos policiais, como entendeu o MP, eles serão pronunciados — ou seja, levados a julgamento perante júri popular.

    Também nesta etapa, o magistrado pode optar pela impronúncia, quando entende que não há indícios suficientes para levar o caso a júri; pela desclassificação, ocasião que se convence de que houve um crime, mas não doloso contra a vida; ou pela absolvição sumária, caso conclua antecipadamente que os réus são inocentes. Ainda não há previsão de quando o juiz irá tomar a decisão.

    Flâmulas com a imagem das vítimas da ação policial em Paraisópolis foram estendidas em frente ao fórum por familiares e amigos | Foto: Paulo Batistella/Ponte Jornalismo

    ‘Estratégia de adiamento’

    Depois da fase de depoimentos, ainda faltam os interrogatórios dos réus. A acusação reivindica que ocorram ao menos duas audiências por mês, para dar celeridade ao processo ao longo deste ano.

    ”A defesa tem utilizado uma estratégia de adiar esses depoimentos, para tentar jogar para mais distante o julgamento, afastando a sociedade da memória do que foi o massacre, já que é a própria sociedade que vai compor o corpo do júri”, diz o advogado Dimitri Alves, que atua como assistente de acusação, acompanhando famílias no processo.

    ”A cada audiência aumenta mais a ansiedade das famílias. Elas vivem em um luto permanente. Esse tipo de episódio, de chacina, gera um luto que não se fecha, que só será fechado quando houver justiça.”

    A primeira das audiências de instrução ocorreu em julho de 2023, acompanhada pela Ponte, assim como todas as demais. Na mais recente delas, foi ouvido o capitão Rafael Oliveira Casella, que isentou de culpa os policiais no âmbito administrativo, ao conduzir um inquérito da Corregedoria da Polícia Militar.

    Casella chegou a responsabilizar as famílias por terem permitido a ida dos filhos ao baile. Ainda na ocasião, outra testemunha arrolada pela defesa, que não presenciou o massacre, alegou, sem provas, que a festa teria ligação com criminosos, o que familiares veem como uma tentativa de criminalizar as vítimas. É a própria PM, no entanto, que tem estado sob suspeita de ligação com o crime organizado. Ainda nesta sexta-feira, o g1 revelou que ao menos dois agentes da Rota, uma tropa de elite da Polícia Militar, são suspeitos de atuarem em conjunto com o PCC.

    Entenda o caso

    O massacre ocorreu na madrugada do dia 1º de dezembro de 2019, quando era realizado um Baile da DZ7, tradicional evento de funk nas ruas de Paraisópolis. Na ocasião, havia entre 5 mil e 8 mil jovens participando do evento. Ao tentar dispersá-lo, descreve a denúncia do MP, os PMs encurralaram o público presente, bloqueando diversas ruas do entorno, e causaram correria, em razão de agressões desferidas contra as pessoas e bombas de gás lacrimogêneo lançadas no perímetro.

    Ao menos 31 policiais militares participaram da ação em Paraisópolis, todos eles do 16º Batalhão Metropolitano — o mais letal da cidade de São Paulo, conforme mostrou a Ponte. Com relação aos outros 18 policiais envolvidos, no entanto, o MP pediu o arquivamento do inquérito.

    Laudos necroscópicos indicaram que oito das vítimas morreram por “sufocação indireta”, em razão da compressão entre as pessoas, impedindo que pudessem respirar. Outro jovem morreu por traumatismo raquimedular, que pode estar associado à compressão ou uma pancada. Nenhum deles foi morto por pisoteamento, como alegam os policiais militares desde o início do caso.

    A Corregedoria da PM, que faz apuração de cunho disciplinar, concluiu, em fevereiro de 2020, ou seja, apenas dois meses depois das mortes, que os 31 policiais militares agiram em legítima defesa. Segundo a PM, eles teriam ido ao local do baile não para dispersar a multidão, mas para dar apoio a policiais da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) que pediram ajuda via rádio, após supostamente terem sido alvejados por dois homens que fugiram em uma moto em meio ao fluxo. A dupla nunca foi localizada. O público da festa teria lançado pedras e garrafas contra os policiais, que, então, reagiram.

    Já o relatório da Polícia Civil, que demorou quase dois anos para ficar pronto, apontou que o cerco feito pela Polícia Militar foi responsável pelas mortes dos jovens.

    Laudo da perícia da Polícia Civil indica local em que ocorreu o massacre | Imagem: Reprodução

    A dinâmica do massacre

    Apesar de terem sido chamados pela Rocam para prestar apoio na rua Herbert Spencer, três dos policiais envolvidos (o subtenente Leandro Nonato, o cabo Paulo Roberto do Nascimento Severo e o soldado Gabriel Luís de Oliveira) foram com uma viatura para a rua Ernest Renan, em sentido oposto.

    Imagens do episódio mostraram que o trio de policiais ainda mentiu, já que a viatura em que estavam ingressou em alta velocidade na rua Ernest Renan, a 30 metros da esquina da Rua Rudolf Lotze, onde havia a aglomeração de pessoas que acabaram correndo com a aproximação do veículo. A viatura, indica o relatório da Polícia Civil, “avançou parcialmente o citado cruzamento das vias, no sentido do baile, o que evidentemente prejudicou a evasão de pessoas do local”.

    Enquanto isso, outros oito policiais (João Carlos Messias Miron, Luis Henrique dos Santos Quero, Anderson da Silva Guilherme, Marcelo Viana de Andrade, Matheus Augusto Teixeira, Rodrigo Almeida Silva Lima, José Joaquim Sampaio e Marcos Vinicius da Costa), alocados em mais duas viaturas, passaram a agredir pessoas na Viela do Louro — também conforme apurou a Polícia Civil. Há vídeos dos agentes gritando “vai morrer” para os participantes do baile, acuados.

    Essas viaturas seguiram em direção ao baile mesmo quando os policiais da Rocam já haviam informado estar fora de perigo. Ainda que as agressões não tenham sido a causa direta das mortes, elas geraram correria e deixaram as pessoas encurraladas. Sem saída, acabaram prensadas umas nas outras.

    A tenente Aline Ferreira Inácio também foi responsabilizada, por estar à frente do comando da “Operação Pancadão” e do patrulhamento da 1ª Companhia do 16º BPM/M. “No âmbito de suas atribuições e no contexto da ocorrência, tinha a possibilidade e o dever de obstar o deslocamento das viaturas para as esquinas do Baile da DZ7. Não o fazendo, permitiu o desenrolar dos fatos que deram causa às mortes das vítimas”, argumentou o delegado Manoel Fernandes Soares, que assina o relatório.

    “Era do conhecimento dos policiais a existência e complexidade do baile da DZ7, bem como que a aproximação da viatura causaria correria e comportamento hostil por parte dos frequentadores”, acrescentou o delegado, do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP).

    Demora no resgate

    Ao final do relatório, o delegado indiciou nove policiais por homicídio culposo (quando não há dolo, ou seja, a intenção de matar) e entendeu que os policiais agiram com negligência, o que poderia fazer com que o caso fosse julgado pela Justiça Militar, e não pela Justiça Comum. Os promotores Luciana André Jordão Dias e Neudival Mascarenhas Filho não seguiram, no entanto, esse entendimento e denunciaram os 12 policiais por homicídio doloso, com as qualificadoras.

    Todos os acusados respondem ao processo em liberdade. Um deles, enquanto atuava em outro batalhão no ano passado, disse que celebra mortes com charuto e cerveja ao ser gravado por uma youtuber norte-americano que acompanhava uma perseguição policial. O MP e a Defensoria pediram o afastamento dele das funções, mas a Justiça de São Paulo negou a solicitação.

    Quando o massacre completou dois anos, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp) publicou uma análise sobre o inquérito policial a pedido da Defensoria Pública. O estudo inclui o projeto Paraisópolis: 3 atos, 9 vidas, que reúne nove vídeos que desconstroem a versão da polícia de que houve resistência, pisoteamento e socorro, além de contar as histórias das vítimas. São análises de provas que vão de áudios da comunicação da PM e laudos, à reprodução simulada feita de forma digital da dinâmica dos fatos pelas versões dos envolvidos.

    A análise apontou que os nove jovens esperaram 34 minutos até que fossem resgatados e já chegaram mortos ao hospital. Ela indica também ser mentirosa a alegação dos policiais de que as vítimas pediam socorro quando já estavam desfalecidas e de que foram impedidos de realizar os primeiros socorros porque estariam cercados. A PM liberou apenas uma ambulância para atendimento, insuficiente para o resgate das vítimas, levadas pelos próprios policiais à Unidade de Pronto Atendimento do Campo Limpo.

    O CAAF também corrobora a investigação da Polícia Civil ao afirmar que os policiais militares encurralaram as pessoas, agredindo e lançando spray de pimenta e bombas de gás.

    O caso de Paraisópolis é um dos 72 crimes com envolvimento de policiais que a Organização das Nações Unidas (ONU) elencou para cobrar uma resposta ao Estado brasileiro sobre a elucidação dos fatos.

    Em 2021, as famílias das vítimas firmaram acordos de indenização com o governo paulista em que o Estado reconheceu sua responsabilidade no massacre, ou seja, de que mortes aconteceram por falha do poder público, mas sem indicar ou responsabilizar um autor individual. Os valores não foram divulgados pois existe uma cláusula de confidencialidade, diz a pesquisadora do CAAF, Desiree Azevedo.

    Laudo só com relatos

    Uma das testemunhas a depor na audiência de hoje foi o capitão da PM Lailton de Paula Souza, autor de um laudo pericial acostado à investigação da Corregedoria da PM. Ele repetiu a alegação de que a correria na ocasião do massacre teria sido causada por supostos tiros dados por uma dupla de moto contra policiais da Rocam — o que teria causado pânico nos participantes do baile.

    Disse ainda que os réus do caso não bloquearam rotas de fuga ou realizaram nenhum cerco. Ainda alegou que os PMs teriam apenas repelido — em vez de dispersado, como alega a acusação — as pessoas e estariam reagindo a supostas agressões que sofreram dos participantes.

    Confrontado pela acusação, no entanto, ele assumiu que o laudo foi realizado com base apenas em relatos do próprios réus. Disse que teve acesso às imagens de uma câmera de segurança da esquina entre as ruas Rudolf Lotz e Ernest Renan, mas que elas não mostrariam a suposta moto em meio ao fluxo ou as alegadas agressões que os participantes do baile teriam cometido contra os policiais.

    Também afirmou que foi a Paraisópolis posteriormente, mas que sequer desceu da viatura, por ter sido hostilizado verbalmente por moradores. E admitiu que não foi especificamente às vielas onde ocorreram as mortes, nem viu imagens desses locais. A testemunha arrolada pelos PMs disse que não sabia a causa da morte dos jovens e que baseou na própria experiência, e não em uma normativa específica, a conclusão que teve no laudo de que o uso das bombas na ocorrência foi aparentemente adequado.

    “Não existe como mensurar isso de forma científica”, alegou.

    Momentos de tensão

    Durante a confrontação da defesa, a tenente Aline, uma das rés, protagonizou um bate-boca com a acusação. O juiz da audiência precisou pedir que ela fizesse silêncio, já que ainda poderá se manifestar em interrogatório.

    Antes de Lailton, foi ouvido o major Fábio Caio Fonseca. Já ao final da tarde, foi a vez do tenente Diego Felício Novaes, que esteve em Paraisópolis no dia da ocorrência, quando as vítimas que foram encontradas já estavam desfalecidas.

    O segundo deles, questionado, negou que os colegas de farda tenham tido qualquer conduta inadequada e classificou o episódio como “uma grande crise”.

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