MC questiona enquadro da GCM e denuncia agressão e ameaça no centro de SP

Em vídeo, Nego Bala pergunta a agentes motivo de abordagem a homem negro em situação de rua mencionando decisão do STJ que determinou que guardas não têm poder de polícia

“GCM não pode abordar, libera o negão porque ele não tem nada!”, grita ao microfone Marcelo Generoso, 23, mais conhecido como MC Nego Bala, ao ver um homem negro em situação de rua ser enquadrado por três agentes da Inspetoria Regional de Operações Especiais (Iope), a tropa de elite da guarda civil metropolitana da cidade de São Paulo.

A abordagem, parte dela registrada em vídeo, aconteceu na tarde desta quinta-feira (25/8), no cruzamento das ruas dos Gusmões e dos Protestantes, no bairro de Santa Ifigênia, no centro, um dos locais que formam a região conhecida pejorativamente como “Cracolândia”.

Como toda quinta-feira, o músico e o psiquiatra Flávio Falcone estavam fazendo uma atividade chamada “Rádio Kawex”, em que percorrem as ruas do bairro com música tocada em uma bicicleta com caixa de som e fazem apresentações junto à população de rua e com dependência química enquanto parte de um projeto que o médico coordena chamado Teto, Trampo e Tratamento. À Ponte, disseram que estavam retornando ao Teatro de Contêiner, que fica na Rua dos Gusmões e é o ponto de partida e retorno da caminhada, quando presenciaram duas abordagens feitas pela GCM.

“A gente ficou sabendo que a GCM não poderia enquadrar mais e eu, como locutor da rádio, fui dando essa notícia”, conta Bala em referência à decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que determinou que guardas municipais não têm poder de polícia e não podem realizar abordagens. Os ministros também há haviam reforçado em decisão de abril deste ano que a polícia não pode enquadrar sem motivos.

“Na altura da [avenida] Duque de Caxias, a gente viu uma abordagem criminosa da GCM, enquadrando um mano, apontando arma, e eu falei ‘nós tamo fiscalizando, nós tamo vendo, não pode abordar’. Eles revistaram, não fizeram nada, continuamos [andando]”, prossegue o MC. “Na rua do teatro, a gente tava cantando Racionais, Sabotage, passamos pela GCM, dei um salve, daí eu olho veio um GCM negão e colou no usuário”.

A segunda abordagem, segundo ele, é a que foi registrada em vídeo e foi contra Leandro Silva do Nascimento, 43, que está em situação de rua e acompanhava o trajeto do grupo. Ele aparece falando com os três guardas, levantando a camiseta e esvaziando os bolsos.

“Vou ser sincero com a senhora, eles me abordaram porque eu estava com o pessoal que tava cantando que não podia abordar porque todo mundo me conhece, sabe que eu não mexo com ninguém”, disse o homem à Ponte, apontando que foi enquadrado sem nenhum motivo, sendo que a lei prevê que a abordagem seja fundamentada, a chamada “fundada suspeita”.

“Eu vi, parei a música, falei ‘vocês não podem fazer isso, o mano tá com a gente, isso é uma atitude criminosa, tão empurrando o mano, STJ já determinou que a GCM não pode abordar, aqui tem advogado, nós tamos em paz, fiscalizando o trabalho de vocês, não fizemos discurso de ódio e tal'”, conta Bala.

“Daí esse GCM negão que enquadrou na Duque de Caxias veio correndo, filmando, eu falando o mesmo discurso, e ele querendo intimidar com a câmera [do celular] dele”. Esse guarda em questão não fazia parte da equipe da Iope.

Segundo Nego Bala, que é negro, o guarda se aproximou para filmar, houve uma discussão e Leandro foi liberado pela Iope. “Eu falei ‘irmão, você não pode filmar assim, cadê a sua identificação? Ele estava sem identificação e ele falou ‘criminoso é você’ e eu disse ‘criminoso é você porque tá sem identificação'”, relata. “Teve uma hora que ele falou ‘você vai ter que provar, você me chamou de negão, você é racista, vou te processar'”.

Leandro Nascimento é abordado por três guardas da IOPE em trecho de um dos vídeos; no outro registro, aparece MC Nego Bala questionando a abordagem enquanto é filmado por outro GCM | Fotos: reproduções

Mesmo após o homem ter sido liberado, o músico afirma que o guarda que estava filmando insistiu na discussão mesmo após o grupo ter entrado na área externa do teatro, que é cercada com grades. “Ele ficava falando ‘vou te processar, você me chamou de negão’ e eu explicando ‘mano, nós somos tudo a mesma fita, ele ficou falando e eu saí na minha. Ele ficou falando do lado de fora do portão. Negão, parceiro, é a forma como eu falo, como irmandade mesmo, mas se ele se sentiu ofendido, a gente pode conversar e se resolver”, conta. O guarda teria saído do local com outro colega. Ele aparece em alguns dos vídeos filmando o MC, mas não é possível ouvir se ele está discutindo por estar com máscara no rosto.

Em seguida, um dos rapazes que estava conduzindo a bicicleta com carro de som e que trabalha na zeladoria do teatro denunciou que foi agredido e ameaçado quando saiu do local. À reportagem, o jovem de 31 anos, que se identificou como Jaick MC, disse que tinha guardado a bike e que iria para casa.

“Eles [outros guardas] me seguiram, eu fui para o outro lado da calçada perto de onde tinha mercearia, armazém, pessoas, e eles me abordaram de forma truculenta, me chamando de bandido, me xingando, apontando arma na minha cara, me chutou, jogou minhas coisas no chão e eu fiquei na minha porque eu vi que eles estavam zangados pelo bate-boca que teve com o pessoal”, relatou.

“Eles me ameaçaram, tiraram foto minha, disseram para eu ficar esperto, que eu tô fudido, que ia fazer uma visitinha na minha casa. Eu tô apavorado, com medo, disseram que iam sumir com o Nego e com o Flavio”, disse com a voz embargada. Por causa dessa abordagem, o músico disse que o grupo ficou com receio de sair do teatro e sofrer algum tipo de violência e, por isso, chamaram advogados.

Quando a reportagem chegou ao teatro, quatro guardas estavam em pé em frente a uma das entradas do local, na Rua dos Gusmões, e uma viatura com três agentes de uma outra equipe da Iope estava no cruzamento com a Rua dos Protestantes. O grupo que fez a abordagem de Leandro não estava mais nessa rua.

Um guarda da Iope, que se identificou como Thárssio, disse que não presenciou o ocorrido porque houve a troca de turno, e que a orientação é para que as abordagens continuem ocorrendo, já que, segundo ele, cabe recurso à decisão do STJ. “A decisão do STJ ainda vai para o STF, ainda não é uma decisão definitiva, na questão da legalidade, porque foi julgado por um caso específico e vai para uma instância superior”, disse. “Se houve um flagrante delito, ele pode atuar para deter”.

Já o outro grupo de guardas que não são da IOPE não quiseram responder às perguntas da reportagem. Um deles disse que o colega foi para o 77º DP (Santa Cecília) registrar um boletim de ocorrência e que se a Ponte quisesse saber o motivo teria de ir lá. Depois de alguns minutos, esse grupo deixou o local.

Nego Bala disse que pretende fazer um boletim de ocorrência sobre o caso nesta semana. “Foi abuso de autoridade o que ele fez”, afirma. Já Jaick MC disse que vai avaliar se formaliza uma denúncia sobre a abordagem e a violência que relatou.

A reportagem foi até o 77º DP e encontrou o guarda que se identificou como Bener. O velcro de identificação dele estava embaixo do colete à prova de balas. Ele disse que daria entrevista após registrar o boletim de ocorrência e que não daria informações antes.

A Ponte aguardou por cerca de uma hora e 46 minutos até que o guarda, acompanhado de outro colega, voltou a negar entrevista dizendo que iria se alimentar e que voltaria. Questionamos os policiais na delegacia e um deles disse que o delegado não iria prestar informações nem confirmar se o boletim de ocorrência foi formalizado.

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Afirmou que o GCM relatou que queria fazer o registro por injúria e que teria gravado o autor das ofensas, mas, como não era uma situação de flagrante, com apresentação do autor do crime, outros casos estavam na frente e estava em período de troca de turno de delegado, não sabendo informar se o BO foi feito ou seria registrado por outro.

A reportagem procurou as assessorias da Prefeitura, sobre as abordagens e denúncias, que não respondeu até a publicação, e da Secretaria da Segurança Pública, a respeito do registro de boletim de ocorrência.

A SSP informou que o guarda, de 44 anos, formalizou o registro como desacato e injúria no 2º DP (Bom Retiro), cuja delegacia está funcionando no 77º DP por conta de reforma. “Segundo a vítima, durante apoio a uma abordagem, um homem teria incitado a população contra a atuação dos guardas. Ele também passou a proferir ofensas contra o GM”, diz a nota.

Reportagem atualizada às 18h19, de 26/8/2022, para incluir resposta da SSP.

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