‘Me vi dormindo com um monstro’, relata vítima de violência doméstica ameaçada com álcool em gel

    No Rio de Janeiro, maus-tratos contra a mulher durante o período da pandemia estão ocorrendo de forma ainda mais violenta

    Arte: Nina Millen

    Era uma sexta-feira. Depois de um dia de trabalho, R. estava louca para tomar uma cerveja gelada. Foi até a cozinha, abriu a geladeira e convidou o namorado para “sextar” – gíria que se consagrou na internet para se referir ao último dia útil da semana. O casal tomou o primeiro, o segundo, o terceiro gole… À medida que as garrafas de cerveja eram esvaziadas sobre a mesa de trabalho da servidora pública, que, desde março último, vinha trabalhando em casa devido à pandemia do novo coronavírus, o humor do namorado mudava. De repente, começaram a brigar. R. não lembra o motivo. Ela só recorda dos xingamentos e de C. jogando álcool em gel no seu corpo. Aos berros, a vítima pediu socorro. A gritaria chamou atenção da vizinhança, que acionou a polícia. Ao ouvir alguém bater na porta da sala, o agressor fugiu pelos fundos do apartamento. A debandada às pressas impediu que, em ato contínuo, C. ateasse fogo no corpo da companheira, mas, antes de ir embora, adicionou requintes de crueldade à agressão: levou consigo o celular e a chave do carro de R.

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    Confinada em casa para se proteger da Covid-19, R. espalhou embalagens de álcool em gel pela casa para reforçar a higienização. A dica dos especialistas para desinfetar as mãos e objetivos em geral virou uma arma na mão do seu agressor. Desde o início da quarentena, a violência doméstica da qual vinha sendo vítima, há dois anos, começara a escalar contornos cada vez mais perigosos. Mas foi só nessa última briga que o medo de entrar para as estatísticas nacionais de feminicídio levou R. a denunciar o relacionamento abusivo.

    Ao ser acionada pela vizinhança, a Central 190 mandou uma viatura da Polícia Militar, R. foi socorrida e passou a engordar as estatísticas oficiais da PM. Em abril, quando ocorreu a cena descrita acima, foram registradas 1.741 denúncias de violência doméstica contra a mulher. Os dados da PM se restringem à região Metropolitana do estado, ou seja, capital, Baixada Fluminense e Grande Niterói. Já os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) apontaram que, naquele mês, os crimes com vítimas mulheres que foram registrados sob a Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) somaram 3.239, um declínio de 51% em relação ao mesmo período do ano anterior. Entre os crimes estão lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e feminicídio, e as informações cobrem todo o estado do Rio de Janeiro.

    A subnotificação virou uma realidade durante a pandemia

    Flávia Brasil, Coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ)

    Ao divulgar análise restrita ao período de isolamento social no Rio de Janeiro, no período que vai de 13 de março a 30 de abril, o ISP concluiu que houve redução em todas as formas de violência contra a mulher se comparado com o mesmo período do ano anterior. As quedas foram de 65,4% no caso de mulheres vítimas de violência moral, de 60,8% do de violência patrimonial, de 58,8% das vítimas de violência psicológica, de 51,6% das de violência sexual e de 43,7% das vítimas de violência física. O ISP concluiu, no entanto, que a redução é consequência da subnotificação generalizada.

    Embora a quarentena seja a medida mais segura para evitar o contágio da Covid-19, para muitas mulheres, como é o caso de R., o lar virou um lugar bastante perigoso. Frente a frente com o agressor 24 horas por dia, o aumento dos casos de violência vem ocorrendo em meio a uma diminuição das denúncias, o que explica a redução de 51% registrada nos indicadores de violência doméstica contra a mulher do ISP. É que, em função do isolamento social, muitas mulheres não têm conseguido sair de casa para denunciar ou têm medo de realizá-la pela aproximação do parceiro.

    Infografia: Fernando Alvarus

    “A subnotificação virou uma realidade durante a pandemia”, admite a defensora pública Flávia Brasil, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ). Ainda que as mulheres sempre tenham tido dificuldades de acionar a rede de atendimento, seja pela demora em perceberem que estão num ciclo de violência, seja pela dependência econômica e emocional do parceiro, seja pela própria dificuldade de acessar a rede de proteção, a pandemia criou uma dificuldade adicional. Com exceção das delegacias de polícias, todos os serviços de atendimento à mulher passaram a ser acionados remotamente no Rio de Janeiro.

    “O público que costuma buscar ajuda na Defensoria Pública tem dificuldade de acessar os canais remotos devido à própria situação socioeconômica”, diagnostica Flávia, chamando a atenção para o fato de que essa realidade não é uma exclusividade do Brasil. A própria ONU Mulheres já declarou a violência contra mulheres e meninas é uma “pandemia das sombras”, porque, ao ficar isolada com seus parceiros violentos durante a pandemia, elas ficam ainda em situação de maior vulnerabilidade.

    Foi o caso de R. Mesmo de posse de uma medida protetiva, ela preferiu abandonar o apartamento onde morava no estado do Rio de Janeiro e se mudar para a casa da mãe, num bairro da zona Norte do Rio. Ela conseguiu ser transferida para outro posto de atendimento do órgão público onde trabalha e recebeu do chefe a garantia de que o trabalho continuará remoto mesmo depois de a quarentena acabar – ela só voltará a trabalhar fora de casa após a realização da audiência, o que ainda não tem data para ocorrer devido ao acúmulo de processos durante a pandemia. Com a medida protetiva em mãos, a Patrulha Maria da Penha passou a rondar, diariamente, a casa onde R. está morando. “Aqui, na casa da minha mãe, me sento mais segura”, admite, comentando que, desde a morte do pai, ela e os irmãos instalaram câmeras na casa para poderem controlar melhor à distância.

    A culpa faz parte da armadilha mental que as mulheres desenvolvem quando entram no ciclo da violência

    Tenente Coronel Claudia Moraessubchefe dos programas de prevenção da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ)

    C. foi informado que, a partir do último dia 19 de abril, estava obrigado a manter uma distância regulamentar de 500 metros de distância da ex-namorada. Ficou sabendo também que respondia por um duplo crime: violência doméstica e furto. É que não bastasse deixá-la em cárcere privado e agredi-la em intervalos cada vez menores, C. costumava pegar o carro da vítima sem autorização, assim como usar e abusar do seu cartão de crédito. “Nunca imaginei passar por isso na minha vida”, desabafa R., relembrando o começo do namoro, as juras de amor e o invariável pedido de desculpas após as brigas violentas – comportamento que iguala os homens agressores das diferentes classes sociais.

    Desde que foi criada, em agosto de 2019, a Patrulha Maria da Penha conta com 3.500 mulheres assistidas em todo o estado do Rio de Janeiro, contabiliza a Tenente Coronel Claudia Moraes, subchefe dos programas de prevenção da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ). A dificuldade de R. romper o ciclo da violência foi a mesma sofrida por todas as mulheres que passam, ou passaram, pelo mesmo problema. Sem falar na culpa que sentem em denunciar o agressor. “A culpa faz parte da armadilha mental que as mulheres desenvolvem quando entram no ciclo da violência”, analisa Claudia.

    Os maus-tratos contra a mulher durante o período da pandemia estão ocorrendo de forma ainda mais violenta

    Adriana de Mellodo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e presidente do Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ)

    R. sentiu na pele o que a juíza Adriana de Mello, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e presidente do Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), vêm comentando: “os maus-tratos contra a mulher durante o período da pandemia estão ocorrendo de forma ainda mais violenta”. Seja pelo maior consumo de álcool, droga ou falta de dinheiro, o uso de instrumentos cortantes está sendo descrito com mais frequência pelas mulheres que saem à procura de ajuda. Preocupada com a situação das mulheres, Adriana, que é presidente do Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia (Nupegre), da EMERJ, está convencida de que a informação é um caminho para coibir a violência contra a mulher.

    “Lançamos uma cartilha completa, que passa para as mulheres todas as informações de onde e de como fazer a denúncia de violência doméstica, e também de como procurar ajuda neste momento”, explicou a juíza, comentando que ao longo de 24 páginas é possível conhecer os tipos de violência doméstica.

    Cartilha orienta mulheres a identificar e denunciar violência doméstica durante a quarentena

    R. leu a cartilha e entendeu que era vítima de todas as formas de violência contra a mulher. A derradeira briga foi o estopim e a terceira vez que tentou denunciar o ex-namorado. As duas primeiras vezes, acabou não conseguindo porque precisava fazer exame de corpo delito e as marcas da violência não eram visíveis a olho nu. “Fui vítima de todo o tipo de violência doméstica: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral”, admite R., que vinha convivendo com um misto de vergonha de admitir publicamente que era agredida, além de sentir pena do agressor. E culpa, muita culpa. Ninguém da sua família sabia o que acontecia entre quatro paredes.

    Fui vítima de todo o tipo de violência doméstica: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral

    R.vítima de violência doméstica durante a pandemia

    Foi pela rede social que R. e C. se reaproximaram. Ela hoje tem 55 anos e ele, 58 anos. Colegas na juventude, a vida acabou afastando-os. R. casou e teve duas filhas – uma delas é advogada e está ajudando a mãe nesse processo de violência doméstica. Era agosto de 2017 quando começaram a namorar. Apaixonada, ela achava graça com o excesso de controle do novo parceiro. Só que as cobranças passaram a ser acompanhadas de xingamentos. Depois vieram os empurrões, os tapas na cara, os puxões de cabelo. É que C. não podia ser contrariado. Com passar do tempo, R. optou por calar-se, achando que seu silêncio poderia acalmá-lo. Às vésperas da pandemia ser decretada, C. avisou que estava mudando para sua casa, já que estava sem trabalho. “Quando me dei conta, estava trabalhando em casa para me proteger de um vírus fatal, ainda mais porque sou grupo de risco, por ser hipertensa; e me vi dormindo com um monstro”.

    selo_monitoramento_violência contra a mulher

    Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo
    Parceria entre cinco mídias independentes monitora os casos de violência doméstica e feminicídio no Brasil durante a pandemia do novo coronavírus


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