Ação de agentes amputa dedo de adolescente na Fundação Casa

    Na véspera do Dia das Mães, agentes feriram 28 adolescentes em Guarulhos (SP) e arrancaram parte do dedo de um deles com alicate, segundo denúncia; Fundação diz que menino foi mutilado quando agentes fecharam uma porta

    A Justiça, o Ministério Público, o Conselho Tutelar e a Defensoria Pública investigam a denúncia de que a repressão de agentes da Fundação Casa de Guarulhos, na Grande São Paulo, a uma rebelião, na véspera do Dia das Mães, em 13 de maio, terminou com 28 internos espancados e a amputação de parte do dedo de um adolescente de 17 anos.

    Dois ativistas de direitos humanos – Ariel de Castro Alves, coordenador da Comissão da Criança e do Adolescente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de São Paulo) e César Muñoz, pesquisador da ONG Human Rights Watch – visitaram a unidade da Fundação Casa de Guarulhos em 7 de junho e relataram à Ponte Jornalismo que, quase um mês após as agressões terem ocorrido, ainda encontraram marcas de agressões nos internos, como hematomas e cortes. “Quase todos que vimos estavam machucados, com ferimentos leves”, diz Muñoz.

    As agressões ocorreram na unidade 1 da Fundação Casa de Guarulhos, ocupada por 64 adolescentes (dentro dos limites de lotação). Funcionários e mães de internos ouvidos pela Ponte contaram que a unidade recebe adolescentes em conflito com a lei que são reincidentes e que, por isso, os agentes adotam uma rotina chamada de “recepção”, que consiste em submeter os internos recém-chegados a uma roda de espancamento. A Fundação Casa nega (veja abaixo).

    “Fizeram uma carnificina”

    Em 13 de maio, conforme o relato de uma mãe, os internos estavam revoltados por conta de uma “recepção” mais dura que teria sido aplicada a um interno e também porque os funcionários teriam deixado de avisar parte das mães a respeito de uma apresentação preparada para elas naquele sábado. Com isso, vários dos internos que participaram da apresentação, ocorrida na quadra de esportes da unidade, ficaram decepcionados ao ver que suas mães não estavam na plateia.

    A rebelião começou depois da apresentação, logo após as mães terem ido embora. Funcionários contaram ao Condepe que os internos rebelados se concentraram numa sala, onde os funcionários da unidade trancaram as portas para isolar o tumulto. Os agentes da unidade 1 receberam o reforço de colegas das outras unidades de Guarulhos e, juntos, foram para cima dos internos.

    “Os agentes entraram com o que tinham na mão: extintores, barras de ferro, cabo de enxada. Agrediram brutalmente todos os adolescentes e com mais crueldade e covardia os que resistiram. Fizeram uma carnificina no local. Um menino foi destacado como o responsável pelo motim e teve um dedo arrancado com alicate. Outros adolescentes tiveram os dentes arrancados com o mesmo alicate”, conta uma testemunha, que pediu para não ser identificada. Em março deste ano, um adolescente que cumpria medida socioeducativa no Complexo Raposo Tavares, na Grande São Paulo, teve o dente arrancado durante um princípio de rebelião depois de ser golpeado com uma cadeira do refeitório.

    A assessoria de imprensa da Fundação Casa afirma que “não foi utilizada qualquer tipo de arma durante a contenção, muito menos as que foram citadas”, mas confirma que J. “teve a falange do dedo cortada”. Na versão da Fundação, a amputação não ocorreu com alicate, mas “no fechamento da porta” realizado pelos agentes.

    Apesar dos relatos de que a repressão deixou 28 internos feridos, apenas três deles foram levados a um pronto-socorro após o fim da rebelião — J. e mais dois. Do lado dos agentes, nove deles foram socorridos, oito com ferimentos leves e um com um dedo quebrado.

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    A repressão teria prosseguido mesmo após o fim da rebelião. “Os adolescentes contam que foram obrigados a tomar banho gelado para que saíssem as marcas das agressões”, afirma Alves, do Condepe. Uma testemunha diz que, no Dia das Mães, alguns dos internos foram obrigados a passar parte do dia sentados no chão dos dormitórios, de cueca, com as mãos na nuca e a cabeça entre as pernas, sem direito a visita.

    Nos dias seguintes

    Uma mulher que visitou o filho naquele 14 de maio afirma ter encontrado um cenário assustador. “Um amigo do meu filho estava com a cabeça cheia de pontos e um dedo cortado pela metade, que foi arrancado com alicate. E de um outro tinham quebrado os dois dentes da frente. No meu filho, deram uma cadeirada e deixaram a cabeça dele cheia de arranhões”, contou a mãe à Ponte. “Fiquei apavorada e passei mal lá dentro.”

    Uma outra mãe também reclamou da violência na unidade. “Essa rebelião foi por maus tratos, porque eles já estavam revoltados”, diz. “Meu filho está lá para pagar pelo que fez de errado, mas não acho justo apanhar e ser humilhado“, afirma. Ela disse que seu filho, por não ter participado da rebelião, apanhou menos do que os outros — mas apanhou. “O caso do meu filho foi o menos grave, mas deram muito chute na barriga dele.”

    Os três internos que haviam sido levados ao pronto-socorro no dia da rebelião acabaram transferidos para outras unidades da Fundação Casa, em Itaquaquecetuba, na Grande SP, e Taubaté e São José dos Campos, no interior.

    A transferência ocorreu no mesmo dia em que os representantes do Condepe e da Human Rights Watch visitaram o local. “Enquanto a gente entrava na unidade, os meninos que tinham mais feridos foram transferidos às escondidas da nossa presença”, conta Alves. O conselheiro considerou “estranha” a transferência dos internos para cidades onde nenhum deles tem família.  “Parece uma forma de punição e de tentar esconder as agressões que eles sofreram.”

    Na conversa com os internos, os adolescentes disseram que parte dos rebelados foi submetido a “trancas” de 15 a 30 dias, sem direito a visita nem participação em aulas nem cursos, o que contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A Fundação Casa nega.

    Verdadeira ou não, a versão de que agentes teriam cortado o dedo de um menino com alicate teria sido difundida, nos dias seguintes à rebelião, com a ajuda dos próprios agentes, que teriam usado a história em tom de ameaça. “A gente já cortou o dedo de um, vamos cortar de outros”, teriam dito, conforme os relatos de adolescentes ouvidos por Alves.

    Um outro relato ouvido pelo conselheiro não envolve violência física: semanas depois do Dia das Mães, segundo os adolescentes, um agente invadiu uma aula em que os meninos liam exemplares do ECA e arrancou o estatuto das mãos deles. Ao mesmo tempo, gritou: “Vocês não têm direito a nada!“.

    Investigação

    Defensores públicos que atuam na área de infância e juventude de Guarulhos também estiveram na unidade. “Os defensores colheram os relatos de adolescentes em visita àquela unidade de internação e solicitaram à Justiça a abertura de um procedimento de apuração, aceito pelo juízo corregedor responsável”, afirma a assessoria de imprensa da Defensoria Pública de São Paulo.

    A Fundação Casa abriu sindicância para apurar as agressões, sem afastar os funcionários suspeitos. Segundo uma mãe ouvida pela Ponte, os internos passaram a ser ameaçados pelos agentes investigados. “Eles não querem deixar os meninos contar que foram agredidos”, diz.

    Alves afirma que o Condepe está preparando um relatório sobre as denúncias e que vai pedir uma audiência com a presidente da Fundação Casa, Berenice Gianella, para pedir o afastamento dos agentes suspeitos dos espancamentos. “Enquanto são investigados, os funcionários não podem continuar a conviver com as vítimas das suas supostas agressões”, afirma.

    Outro lado

    Em entrevista por e-mail, a assessoria de imprensa da Fundação Casa afirma que abriu sindicância para apurar as denúncias e negou a prática sistemática de violência contra os internos da unidade 1 em Guarulhos.

    Ponte – Segundo a Fundação Casa, o que aconteceu em 13 de maio na unidade 1 da Fundação Casa de Guarulhos?

    Fundação Casa – A ocorrência foi considerada princípio de tumulto.

    Ponte – Quais procedimentos a Fundação Casa está adotando para investigar e punir os responsáveis pelas agressões? Alguém foi afastado?

    Fundação Casa – A Corregedoria Geral da Fundação Casa instaurou sindicância para apurar os fatos. Todos os procedimentos foram realizados, lavratura do Boletim de Ocorrência e instauração da Comissão de Avaliação Disciplinar.

    Ponte – Que punições foram dadas aos internos envolvidos no tumulto?

    Fundação Casa – Os adolescentes passaram pela Comissão de Avaliação Disciplinar, conforme Regimento Interno da Fundação, que ainda está analisando as sanções disciplinares que serão aplicadas aos adolescentes.

    Ponte – É verdade que alguns dos meninos que participaram do tumulto foram submetidos a 30 dias de “tranca”, sem direito a qualquer atividade socioeducativa no período?

    Fundação Casa – Nenhum adolescente ficou submetido a tranca, mesmos diante da situação provocada por eles, todos participaram das atividades pedagógicas, Ensino Formal e dos Cursos de Educação Profissional, conforme agenda multiprofissional e individual de cada um deles.

    Ponte – Que armas foram usadas para conter a rebelião? Há relatos que informam o uso de extintores de incêndio e cabos de enxada contra os internos.

    Fundação Casa – Até o momento, a Corregedoria da Fundação Casa não constatou relato relacionado sobre esta denúncia. A Fundação CASA afirma que não foi utilizada qualquer tipo de arma durante a contenção, muito menos as que foram citadas.

    Ponte – Um dos meninos teve um dedo amputado. Como isso aconteceu?

    Fundação Casa – O adolescente teve a falange do dedo cortada no fechamento da porta, conforme relatos do expediente enviado à Corregedoria Geral da Fundação Casa.

    Ponte – Por que os três meninos mais agredidos naquele dia foram transferidos para outras unidades da Fundação Casa no interior de SP?

    Fundação Casa – Os três adolescentes foram transferidos por determinação judicial a pedido da Defensoria Pública do Estado.

    Ponte – É verdade que internos agredidos foram obrigados a tomar banho gelado para remover as marcas de agressão dos seus corpos?

    Fundação Casa – Até o momento, não foi relatado na sindicância tais fatos. Devido ao confronto, durante a contenção do princípio do tumulto, os adolescentes que apresentaram marcas passaram por observação corporal pela equipe de enfermagem e, após lavratura de Boletim de Ocorrência, passaram por exame de corpo delito.

    Ponte – Por que os funcionários suspeitos de agredir os internos continuam a trabalhar com os mesmos meninos que os denunciaram? Isso não atrapalha o andamento das investigações?

    Fundação Casa – O afastamento cautelar administrativo é medida de exceção que exige elementos probatórios robustos, caso no curso da sindicância sejam identificados estes elementos poderá ser sugerido o afastamento, o que não se verificou até o presente momento. Além disso, a normalidade no Centro foi restabelecida rapidamente, jovens e servidores participando de círculos restaurativos e não há clima de hostilidade. As atividades estão acontecendo sem nenhum prejuízo.

    Ponte – Os internos denunciaram que, ao chegarem na unidade, todos passam por uma sessão de espancamento conhecida como “recepção”. A Fundação Casa tem conhecimento desta rotina? Alguém já foi punido por ela?

    Fundação Casa – A Fundação Casa repudia qualquer forma de agressão. O acolhimento no Centro é realizado pela equipe de referência que conta com profissionais de todas as áreas, repudiando qualquer forma de violência.

    Ponte – Há o relato de que, após 13/5, houve funcionários que arrancaram exemplares do ECA que os internos estavam lendo numa aula e disseram “vocês não têm nada direito a nada”. Isso aconteceu? Está sendo investigado?

    Fundação Casa – Não tomamos conhecimento de tal fato e não condiz com o restabelecimento da rotina do Centro.

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