Com quase metade da população da capital, Baixada Fluminense tem mais denúncias de desaparecimentos forçados

Pesquisa aponta que 13 municípios representam uma taxa de 9,25 desaparecimentos forçados para cada 100 mil habitantes, enquanto cidade do Rio de Janeiro tem 6,12; levantamento será lançado em livro nesta sexta-feira (5/4)

Cemitério clandestino usado por milicianos no bairro Nova Aurora, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, localizado em 2019 pela Polícia Civil do Rio de Janeiro | Foto: Divulgação / PCERJ

Entre uma casa de ração e um depósito de bebidas em um centro de abastecimento, existia uma cisterna. Há mais de uma semana havia sido depositado ali um cadáver, agora já em decomposição. Para que o corpo não fosse encontrado e o odor, abafado, foi colocada ali uma tampa. Essa água era a mesma usada no preparo das refeições de toda a central. Isso foi em outubro de 2017. A polícia esteve no local, rodeou a cisterna, mas nem abriu a tampa para averiguar.

Essa é uma das 768 situações com evidências de desaparecimento forçado que o Fórum Grita Baixada e o Observatório Fluminense da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (OF/UFRRJ) levantaram para o livro Desaparecimento forçado: vidas interrompidas na Baixada Fluminense, que será lançado nesta sexta-feira (5/4) na Livraria Folha Seca (Rua do Ouvidor, 37), no centro da cidade do Rio de Janeiro. O projeto analisou o conteúdo de 1.738 ligações feitas ao Disque Denúncia na Baixada Fluminense e na capital, entre 2016 e 2020.

Apesar de juntos os 13 municípios que compõem a Baixada representarem um pouco mais da metade (3,9 milhões) da população da cidade do Rio de Janeiro (6,7 milhões), essa região tem uma taxa de 9,25 desaparecimentos forçados por 100 mil habitantes. Já a capital corresponde a 6,12. A taxa foi calculada a partir das estimativas populacionais de 2021 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma vez que o projeto foi realizado durante dois anos, antes de o Censo de 2022 ser concluído.

O desaparecimento forçado é “a prisão, a detenção, o sequestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei”, segundo a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, um tratado da Organização das Nações Unidas (ONU) do qual o governo brasileiro é signatário desde 2016.

Contudo, não existe oficialmente um crime de desaparecimento forçado no Código Penal do país, apesar de o Brasil ter sido condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em 2010, a tipificar o crime por conta do caso da Guerrilha do Araguaia, quando cerca de 60 militantes do Partido Comunista do Brasil desapareceram na região do Araguaia, no sul do Pará, em 1966, durante a ditadura militar. Até existe um projeto de lei, o PL 6240/2013, que está parado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Para os pesquisadores, o cenário no Rio de Janeiro revela uma sinergia de atuação complexa de três grupos, as facções ligadas ao tráfico de drogas, as milícias e as forças policiais, associada à falta de atuação do Estado em solucionar o problema, já que esse tipo de violação também não é devidamente quantificada.

Pesquisadora do Observatório Fluminense, Nalayne Pinto explica que, além do forçado, existem outros três tipos de desaparecimento: o voluntário, que é quando a pessoa decide sumir; o involuntário, que pode ser atrelado a questões de saúde mental, por exemplo. “A pessoa tem Alzheimer e se perdeu, ou perdeu a memória e não sabe como voltar, sofreu um acidente”, explica. Há também o administrativo, quando a pessoa está custodiada pelo Estado, num hospital ou numa unidade prisional, e a família não foi informada. O registro de boletim de ocorrência no Rio de Janeiro, porém, não tem uma denominação que separe cada tipo de desaparecimento, ou seja, todos são apenas nomeados como “desaparecimento”.

Para considerar as denúncias que poderiam se caracterizar como desaparecimento forçado, os pesquisadores selecionaram aquelas que tivessem informações e um contexto que revelasse sobre tráfico de mulheres, pessoas desaparecidas, furto/comércio de ossos, membros, órgãos e cadáver, encontro de cadáver, destruição/subtração de cadáver e cemitério clandestino, já que o Disque Denúncia não tem uma categoria específica de desaparecimento forçado.

Parte delas tinha menção expressa sobre o tráfico, a polícia ou a milícia ter sido responsável pelo desaparecimento, como num caso de 2017 em que a pessoa que procurou o Disque Denúncia disse que um idoso desapareceu após ir a uma delegacia e tentar denunciar a atuação de uma milícia na região que morava. Segundo o relato, a Polícia Civil não registrou a queixa, orientou o homem a busca a Defensoria Pública e, pouco tempo depois de sair do local, desapareceu. Ainda, de acordo com a denúncia, um indivíduo que prestava serviço aos milicianos orientou a família do idoso a não procurar o paradeiro pois poderia ter o mesmo fim que ele.

Coordenador do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araújo destaca que, se por um lado os desaparecimentos forçados da época da ditadura que tinham maior visibilidade porque tratavam-se de pessoas em maioria branca e de classe média, no caso dos desaparecimentos atuais o perfil é outro: pessoas negras, pobres, moradoras de periferias e de favelas. “Em nossa leitura, isso ainda não é uma política de Estado, não é objeto de estatísticas e dados oficiais porque o perfil dos atingidos é daqueles considerados descartáveis”, critica.

Soma-se a isso a participação de agentes públicos, algo que não era muito diferente da época da ditadura militar, uma vez que o regime foi berço para esquadrões da morte formadas por policiais e para o sistema de milícias, que contou com apoio de militares, políticos e contraventores do jogo do bicho, como aponta José Claudio de Souza Alves, autor de Dos Barões ao Extermínio: uma história de violência na Baixada Fluminense, professor da UFRRJ e que também integrou a coordenação do livro.

“O Brasil não resolveu os seus problemas relacionados ao próprio processo da ditadura militar, não teve uma responsabilização de pessoas envolvidas em cemitérios clandestinos, em tortura, em desaparecimento de pessoas”, afirma Adriano. “E hoje não faz isso porque a gente tem uma política de segurança pública que é extremamente militarizada, que é extremamente punitivista, que é extremamente racista e que é extremamente violenta.”

Nalayne Pinto aponta que os desaparecimentos forçados estão relacionados ao cenário de disputa territorial da Baixada Fluminense. “Ainda que o desaparecimento forçado não seja tipificado, nossa hipótese é que a dinâmica criminal dessas cidades produz homicídio, produz morte por intervenção do agente do Estado, mas também produz desaparecimento forçado porque o desaparecimento forçado está atrelado à dinâmica criminal, seja da polícia, seja da milícia, seja do tráfico ou dos três juntos”, explica.

Por isso, a pesquisa também analisou os números e taxas de homicídios dolosos e de mortes pelas polícias nessas cidades no período. Belford Roxo (17,6), Japeri (16,9), Queimados (13,7), Itaguaí (13,1) e Duque de Caxias (10,3), que tiveram as maiores taxas de desaparecimentos forçados, também figuravam nas maiores taxas de letalidade policial e de homicídios dolosos. Contudo, não é uma relação de causa e efeito direta, ou seja, de que toda a vez esses indicadores vão subir por isso, uma vez que também depende da análise da dinâmica de disputa em determinado contexto e esses desaparecimentos forçados não estão nas estatísticas oficiais registradas pela Polícia Civil.

Em 2023, o estado teve uma queda de 34,6% da letalidade policial e aumento de 7,3% de homicídios. A região metropolitana, que a Baixada Fluminense integra, a e zona oeste do Rio foram as que concentraram o maior número desses indicadores. É nessa região que se acirrou uma disputa pela sucessão do controle do território desde que Wellington da Silva Braga, o Ecko, chefe da maior milícia da zona oeste e de partes da Baixada Fluminense, foi morto em operação policial em 2021.

Isso explica também porque moradores acabam recorrendo ao Disque Denúncia. “É a falta de confiança de que a própria polícia esteja envolvida, ou que normalmente está envolvida, e que às vezes também é quase um grito de socorro, porque como o morador vai ligar para a empresa de saneamento sobre um corpo na caixa d’água e essa empresa pode acionar a polícia que possivelmente depois pode dizer [para o grupo criminoso] ‘estão denunciando vocês aí’? Então é mais fácil acionar o Disque Denúncia”, avalia Adriano.

Por isso, dentre uma série de recomendações da pesquisa, há o pedido de aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 128/2015, que atribui à Polícia Federal a apuração de crimes praticados por milícias e grupos de extermínio, e à Justiça Federal a competência para o julgamento desses crimes, já que os pesquisadores entendem a investigação desses casos é prejudicada no âmbito estadual.

Além da tipificação do crime, também entendem que é urgente a criação de uma política pública nacional de produção de dados e também voltada às famílias das vítimas. Durante o projeto, aconteceram quatro oficinas de arteterapia e participação de psicólogo para as entrevistas com parentes. “São famílias que são dilaceradas na sua mais profunda concepção da palavra”, enfatiza Adriano.

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Algumas das denúncias descritas no livro indicam familiares que não conseguem enterrar o ente querido ou que se arriscam a ir em cemitérios clandestinos para buscar restos mortais, mas não conseguem fazer enterro digno por falta de recursos, por exemplo. “Muitas mães têm que investigar sozinhas esse processo todo”, prossegue o coordenador do Fórum Grita Baixada. “A polícia não se mobiliza para fazer investigação porque essas mães são consideradas mães de bandidos, são consideradas mães de pessoas ligadas já previamente ao crime. Muitas perdem o emprego porque são trabalhos normalmente precarizados. E há o adoecimento mental e físico: muitas desenvolvem problemas de hipertensão, síndrome do pânico, depressão. Algumas inclusive já morreram antes de ter qualquer tipo de resultado de investigação quando tem investigação, porque muitos casos sequer são investigados. Então, é uma situação muito, mas muito complicada.”

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria de Segurança Pública e a da Polícia Civil do Rio de Janeiro sobre a produção de dados, investigação de casos e os números levantados pela pesquisa e enviou um anexo sobre a metodologia utilizada. A assessoria da Secretaria da Polícia Civil enviou a seguinte resposta:

A Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) desconhece a metodologia utilizada para a confecção do levantamento citado e informa que as ações da instituição são norteadas com base em dados oficiais do Instituto de Segurança Pública (ISP).

De acordo com as unidades e setores especializados na investigação de casos de desaparecimento, em sua maioria, os registros de fatos desta natureza não estão atrelados a questões criminosas, mas a fatores como a saúde mental das vítimas e questões familiares. Grande parte das ocorrências confeccionadas nessas unidades, são de menores de idade, usuários de drogas, conflitos familiares, falta de aceitação da sexualidade, entre outros.

A Sepol conta com uma unidade especializada para investigar este tipo de ocorrência. A Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA) foi criada para atender uma demanda social e normativa de tratamento técnico sobre desaparecimento de pessoas, de modo a aprimorar práticas de investigação e prevenção sobre o tema. Outras unidades – como as delegacias de homicídios da Baixada Fluminense e de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí – contam com setores específicos para investigar essas ocorrências, assim como as distritais também possuem profissionais capacitados para localizar e esclarecer tais casos.

Na Baixada Fluminense, por exemplo, o Setor de Descoberta de Paradeiros da Delegacia de Homicídios da região registrou 1.513 desaparecimentos em 2023, e 1.385 foram encontrados, ou seja, 92% do total, o que demonstra o comprometimento e a eficiência das investigações realizadas na região. A Polícia Civil também conta com o Portal de Desaparecidos, um canal de cadastro que permite a consulta de fotografias e informações de pessoas desaparecidas, com base nos registros de ocorrências oficiais.

Trata-se de uma ferramenta de divulgação essencial para auxiliar nas investigações de desaparecimento.
Quanto à tipificação, a Polícia Civil está em conformidade com o Código Penal. Os dados dos Registros de Ocorrência (ROs) contém as titulações compatíveis com a legislação vigente. As características de cada desaparecimento são apuradas no curso da investigação e levadas em consideração para a elucidação dos casos.

A reportagem também buscou as assessorias dos ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania e da Justiça e Segurança Pública. O MJSP enviou a resposta abaixo, já o MDH não respondeu. O espaço segue aberto.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) informa que a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas foi instituída no Brasil pela Lei nº 13.812/2019, a qual atribui deveres à União, aos Estados e ao Distrito Federal.

O art. 2º, III considera como autoridade central federal o “órgão responsável pela consolidação das informações em nível nacional, pela definição das diretrizes da investigação de pessoas desaparecidas e pela coordenação das ações de cooperação operacional entre os órgãos de segurança pública”.

Isso se refere à previsão legal do delito de “desaparecimento forçado de pessoa”. Além disso, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n° 6240/2013, que propõe a alteração do Código Penal Brasileiro, tipificando o referido crime.

Pontua-se, ainda, que o MJSP lançou, em dezembro de 2023, o “Caderno Temático de Referência – Fundamentos da busca de pessoas desaparecidas e investigação de desaparecimento de pessoas”, no qual é apresentada a definição legal de pessoa desaparecida, bem como as tipologias referentes ao desaparecimento de pessoas no Brasil, dentre as quais os “desaparecimentos forçados” (ou políticos):

https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/desaparecidos/caderno_tematico_desaparecidos.pdf

Quanto ao papel de consolidar as informações/dados sobre desaparecimento de pessoas no Brasil, hoje o MJSP possui duas principais fontes: o Sinesp-VDE e o Relatório Estatístico das Autoridades Centrais. São informações obtidas de formas diferentes e com diferentes objetivos.

O Sinesp-VDE é um painel estatístico produzido pela Diretoria de Gestão e Integração de Informações da Pasta. Ele consolida alguns indicadores nacionais da área da segurança pública e as informações são obtidas por meio de uma plataforma preenchida por gestores de estatística estaduais, com frequência mensal:

https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/desaparecidos/politica-nacional

Já o Relatório Estatístico Anual das Autoridades Centrais é uma exigência do art. 7º da Lei 13.812/2019:

https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/desaparecidos/relatorio-estatistico-anual-pessoas-desaparecidas-2019_2021.pdf

Já constam na página da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas do MJSP os dados referentes ao período 2019-2021, levando em consideração que os Estados estão em fase de preenchimento dos dados relativos aos anos 2022-2023, para posterior envio ao MJSP, e consequente publicação na página eletrônica citada.

ERRATA: o lançamento do livro ocorrerá nesta sexta-feira, 5 de abril, e não na quinta-feira, dia 4 de abril, como havia sido escrito anteriormente. O erro foi corrigido às 11h30, de 4/4/2024.

Reportagem atualizada às 13h, de 5/4/2024, para incluir resposta do MJSP.

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