Mentiras nas redes alimentam ódio a moradores de rua em São Paulo

    Histórias de crimes atribuídos à população de rua se espalham no Whatsapp e Facebook, estimulando campanha por fechamento de albergue no bairro da Mooca

    Ilustração: Junião/Ponte Jornalismo

    As redes sociais acrescentaram elementos de medo e ódio a um conflito que opõe parte dos habitantes da Mooca, um dos bairros mais tradicionais e brancos da cidade de São Paulo, à população local de moradores de rua.

    Nas últimas semanas, moradores da Mooca iniciaram uma mobilização pelo fechamento do CTA (Centro Temporário de Acolhimento) Mooca I, localizado na rua João Soares, um equipamento da Prefeitura destinado à população de rua que atende a 400 pessoas, em média, todos os dias. Os ataques à existência do CTA usam como mote boatos sobre crimes atribuídos a moradores de rua atendidos no albergue, que continuam a circular no Whatsapp e Facebook mesmo após serem desmentidos.

    Em um abaixo-assinado chamado “A Mooca Pede Paz”, que já tem mais de 7 mil assinaturas, os autores alegam que um frequentador do albergue teria invadido uma casa do bairro e estuprado uma professora. “No dia 15/10, dia do professor, uma professora do bairro foi presenteada por um morador do CTA 11 – Mooca, com violência física e sexual”, afirma o texto. Mesmo após o verdadeiro estuprador ter sido encontrado morto e identificado como um homem sem relação com o albergue nem histórico de morador de rua, o texto continua no ar sem modificações. Os boatos no Facebook e Whatsapp também culparam, sem provas, um morador de rua por um roubo realizado, no último dia 25, na igreja Nossa Senhora do Bom Conselho.

    Nos dois casos, as notícias falsas relacionavam os crimes a pessoas negras. Localizada na zona leste, a Mooca — um bairro tão tradicional que um vereador já quis tombar como patrimônio cultural o sotaque italianado de seus moradores, celebrizado nos sambas de Adoniran Barbosa cantados pelos mooquenses do Demônios da Garoa — está entre os 15 bairros mais brancos da capital paulista, com apenas 12,29% de população preta e parda (a média na cidade é de 32,1%), segundo o Mapa da Desigualdade 2019, da Rede Nossa São Paulo. Por outro lado, os negros são maioria entre a população que tanto incomoda parte do bairro: 69,7% dos moradores de rua acolhidos nos equipamentos da cidade de São Paulo são não-brancos, conforme censo da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas). “A pergunta que fica até quando ficaremos a mercê dessa raça???”, pergunta um mooquense, no Facebook, ao comentar o boato sobre o estupro. “A MOOCA está infestada, ninguém toma uma atitude”, comenta outra moradora do bairro.

    Os ataques também se voltam contra o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo, que recebe diariamente pessoas em situação de vulnerabilidade. Dias após o estupro da professora, uma postagem no Facebook escreveu: “Esse cara violentou a amiga de uma amiga minha, ele mora no abrigo do escroto do Padre Lancelot”.

    ‘O monstro foi morto’

    A professora da Mooca, de 40 anos, foi estuprada em 15 de outubro, dentro de sua própria casa, na rua Cavalieri, a cerca de 500 metros do CTA Mooca I. Uma câmera de segurança flagrou o estuprador deixando o local, vestindo roupas da vítima e de seus familiares. A imagem passou a circular em grupos de Whatsapp e postagens no Facebook, descrevendo-o como um dos frequentadores do abrigo.

    Quatro dias depois, dezenas de moradores se postaram na frente do CTA com balões brancos pedindo o fim do atendimento à população de rua no local.

    Moradores da Mooca, quase todos brancos, pedem o fechamento do CTA | Foto: Facebook

    “Eu acho uma hipocrisia. Tem muito estupro na USP (Universidade de São Paulo) e não tem passeata para fechar”, reclamou Adriano Casado, um dos atendidos pelo CTA. “Estão aflorando o preconceito. Aqui tem mais de 70 idosos, se fechar, para onde eles vão? Nós estamos em perigo, não somos perigosos”, disse à Ponte.

    Apesar das certezas demonstradas pelos moradores nas mobilizações de rua e nas redes sociais, as primeiras diligências feitas pelos investigadores do 57º DP (Parque da Mooca) já não apontavam nenhuma relação do albergue com o crime, conforme investigadores ouvidos pela Ponte.

    As investigações levaram a Gilvan de Santana, 47 anos, encontrado morto a tiros, na manhã de 16 de outubro, um dia após o estupro. O corpo dele foi achado na estrada Pedreira Alvarenga, no bairro Eldorado, em Diadema (Grande SP), distante 27 quilômetros da Mooca.

    As roupas utilizadas pelo morto chamaram a atenção de um policial militar que atendeu a ocorrência e havia ouvido falar do ataque à professora. O PM entrou em contato com a delegacia do Parque da Mooca, que encaminhou um investigador a Diadema. A identidade do estuprador foi confirmada pela vítima, que fez o reconhecimento fotográfico das roupas.

    A partir da identificação de Santana, a investigação apontou que o responsável pelo estupro não havia estado no CTA e não encontrou qualquer indício de que vivesse em situação de rua. De acordo com a Polícia Civil, Santana já havia sido autuado por sete roubos, todos contra mulheres, um deles precedido por um crime sexual. Ele estava em liberdade condicional desde 10 de abril, quando deixou o CDP (Centro de Detenção Provisória) Belém I.

    O autor da morte de Santana é desconhecido. O caso é investigado pelo Setor de Homicídios de Diadema. Em postagem no Facebook, a vítima comemorou o assassinato: “Para meu alívio o monstro foi encontrado hoje, morto!”.

    Postagem em que vítima comemora morte de estuprador

    A revelação de que o estupro não tinha relação com a população de rua foi vista com descrença por moradores da Mooca ouvidos pela Ponte. “Eu não acredito que ele não tenha passado pelo albergue. A informação que tenho é de que ele passou pelo albergue. Ele já estava no bairro há 15 dias. Até os conviventes já disseram que o viram”, disse Alexandre, que achou por bem preservar seu sobrenome, assim como outros entrevistados.

    “O bairro mudou totalmente após o abrigo. Mesmo sabendo que o estuprador não era do CTA não muda minha opinião. Eles vão continuar assaltando e perturbando”, diz Fernanda, que trabalha em uma loja de utensílios.

    ‘Culpado de tudo’

    Na manhã de 25 de outubro, um homem invadiu a paróquia Nossa Senhora do Bom Conselho, na Rua da Mooca, a cerca de 1,5 quilômetro da residência onde houve o estupro, e fugiu levando pertences da igreja, do padre Gildásio do Espirito Santo Lima e de alguns fieis. Logo a vizinhança identificou o culpado: só podia ser um morador em situação de rua.

    Uma imagem que seria do principal suspeito passou a rodar nas redes sociais: um homem negro, que acabara de aparecer em um vídeo ao lado do padre Júlio Lancellotti. O vídeo tinha sido gravado dias antes pelo pároco, para mostrar que aquele homem não teria sido contatado pelo Censo da População de Rua, atualmente em andamento.

    Ao saber que a imagem de um “irmão de rua” corria nas redes como se fosse um criminoso, padre Júlio procurou seu colega de batina da Nossa Senhora do Bom Conselho e, juntos, fizeram um vídeo alertando que aquele homem não tinha nada a ver com o ladrão da igreja. “É um profissional, que sabe realmente o que está fazendo. Não é esse morador de rua. [Ladrão] super bem vestido, barba bem feita, vestindo social com camiseta bem colada ao corpo”, disse o padre Gildasio.

    Para o padre Júlio, os últimos acontecimentos fazem parte de uma ação coordenada. “Me dá impressão de uma máquina de fatos para atingir a população de rua e a mim. Tudo com criminalização à população de rua para me atingir. As versões estão espalhadas, o dano feito, fake news aos montes. Estão nos monitorando e preparando algo.”

    A reportagem conversou na semana passada com frequentadores do CTA, que aguardavam para entrar no espaço, o que só é permitido a partir das 16h. “O CTA podia nos deixar entrar mais cedo. Evitaria que nós ficássemos na rua sendo xingados, humilhados. O pessoal do bairro está exaltado”, reclamou Samuel Pereira.

    Especialistas ouvidos pela reportagem entendem que o fechamento do albergue e a culpabilização de moradores em situação de rua por aumentos na criminalidade são fruto do preconceito.

    “Desconheço qualquer estudo que indique isso [relação entre instalação de albergues e aumento do crime]. Não faz nenhum sentido. Assumir que pessoas em situação de rua sejam criminosas em potencial é de um preconceito absurdo. Então, o abaixo assinado não é apenas perigoso, mas de uma insensibilidade atroz. Podiam canalizar toda essa energia tentando ajudar essas pessoas”, diz Samira Bueno, editora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    Para Jorge Broide, psicanalista e professor de Psicologia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), que atua há mais de 40 anos com moradores em situação de rua, essa população é vista como culpado de tudo. “O morador de rua traz o sinistro, a morte, o cheiro, o fracasso, tudo aquilo que é negado pela sociedade. É o porta-voz da sexualidade perversa, do crime. Todas essas coisas que projetam na população de rua é uma grande sacanagem. A população de rua é porta-voz do sinistro da sociedade de que ninguém fala”, afirma Broide.

    Apesar das mentiras, do ódio e da pressão, fechar o CTA não está nos planos da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Por meio da assessoria de imprensa, afirma que “uma eventual extinção do serviço agravaria a situação de vulnerabilidade em que se encontram, já que deixaria mais de 400 pessoas desabrigadas”. A Secretaria afirma, ainda, que “a população pode ajudar as pessoas em situação de rua solicitando uma abordagem social por meio da Central 156, que funciona 24 horas por dia”, salientando que “o aceite é voluntário”.

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