Sem computador e internet em casa, e tendo que dividir local de estudo com a família toda, jovens tentam se preparar para exame que dá acesso ao ensino superior
O adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi uma grande vitória para os estudantes, mas a medida não será capaz de esconder a histórica desigualdade no ensino. Também não consegue colocar no mesmo nível o desempenho dos alunos, como se todos tivessem acesso às mesmas condições de preparação e estudo.
Segundo o professor do departamento de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Flávio Cervalhaes, a mudança da data da prova não resolve o que ele chama de sobreposição de desigualdades. “O otimismo em relação à decisão do adiamento é um tanto quanto insensível, pois não existem formas de equiparação entre os estudantes”, pontua.
Pelo menos 2,3 milhões de estudantes inscritos no Enem não têm acesso à internet, segundo reportagem do Jornal Nacional. Até sexta-feira (23/5), cerca de 5,5 milhões de pessoas tinham feito a inscrição, de acordo com o Ministério da Educação. A prova foi adiada por causa da pandemia, mas não tem nova data marcada, e contará, mais uma vez, com a dificuldade dos mais pobres de ingressarem no ensino superior.
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Moradora de uma ocupação na Gamboa, zona portuária da cidade do Rio, Thifany Marques Bastista, 17 anos, sonha cursar Química na UFRJ. Mas para ela, diante de tantas dificuldades, os processos seletivos para ingressar nas universidades, entre eles o Enem, poderiam ser cancelados. “Para mim, esse ano já está perdido. Por mais que eu me esforce, estudar em casa é difícil e quando você tem múltiplas preocupações fica pior ainda”, conta.
Ela mora com sua mãe, irmã, dois sobrinhos e uma prima pequena. Todos dividem o mesmo quarto e há um detalhe: são apenas três camas para seis pessoas. Quatro dormindo no beliche e dois na cama de solteiro. Na divisão de tarefas da casa, ela ficou encarregada da cozinha. “Eu lavo a louça e preparo a comida. Como aqui tem criança pequena, é o tempo todo fazendo alguma coisa para eles comerem”, contou.
Em meio a tantas tarefas e pouca privacidade, os estudos de Thifany, que está no último ano do ensino médio, foram forçados a ficar em segundo, senão último plano. Sem as condições adequadas para se dedicar aos vestibulares, entre eles o Enem, a jovem vai, aos poucos, perdendo as esperanças de conseguir melhorar o futuro da sua família.
Com as aulas presenciais suspensas devido à pandemia da Covid-19, ela tem tido muita dificuldade em se adequar à Educação a Distância (EaD) oferecida pela sua escola. Sem computador, internet domiciliar e pacote de wi-fi no celular, Thifany vê seu sonho cada vez mais distante.
Ela trabalha desde os 15 anos de idade. Já foi estagiária na Justiça Federal e, até o início da pandemia, estava trabalhando em uma autorizada da Motorola. Em casa, ela recebe apoio dividido da família. “Minha mãe fica mais contente comigo trabalhando do que estudando. Quero muito entrar em uma universidade. Seria uma superação para a minha família e também a oportunidade de ter uma estabilidade no futuro”, avalia.
No Brasil, a entrada em universidades se dá através de processos seletivos, onde há aplicação de provas em uma ou mais fases, chamado de vestibulares. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado em 1998 para avaliar o desempenho dos alunos do ensino médio, compunha a nota desses vestibulares nas mais diferentes universidades pelo país. Em 2009, Enem tornou-se uma avaliação direta que possibilita o ingresso dos estudantes no ensino superior. Segundo informações do Ministério da Educação, cerca de 500 universidades utilizam o Enem como critério de ingresso.
A pandemia do coronavírus intensificou as diferenças socioeconômicas entre os estudantes, fazendo com que os alunos da rede pública tenham ainda mais dificuldades de estudar, sobreviver e superar a situação. Muitos desses alunos, que estão sem aulas por causa do isolamento social, não têm condições financeiras, tecnológicas e psicológicas de acompanhar o ensino a distancia de suas escolas, muito menos para se preparar para os vestibulares.
Mas a educação não é a maior preocupação dos jovens em preparação para vestibulares e Enem. As formas de sobrevivência se mostram urgentes. Na família de Thifany, por exemplo, apenas sua mãe, Eliete Marques, 42, continua trabalhando em uma lavanderia industrial na Central do Rio, apesar das determinações do isolamento social.
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Por causa do calor no local, os funcionários evitam usar máscaras para não dificultar ainda mais a respiração. Eliete teve seu turno de trabalho reduzido e, consequentemente, seu salário foi cortado para metade. As incertezas tomam conta da família. “Fico preocupada se meus sobrinhos vão ter o que comer durante a semana”, afirmou Thifany. “Saber se minha mãe vai continuar trabalhando e se eu vou conseguir trabalhar pós-pandemia é outra preocupação. A gente não conseguiu receber o auxílio emergencial do Governo, estamos vivendo apenas com o salário da minha mãe e de cestas básicas.”
Parte dessas cestas são doações feitas pelo pré-vestibular comunitário Providenciando Vidas. O cursinho surgiu em 2014 na comunidade do Morro da Providência com o objetivo de possibilitar a inclusão de alunos mais pobres nas universidades públicas e particulares do país.
No início de maio, o projeto criou uma campanha de apadrinhamento para que pessoas pudessem doar cestas básicas e dinheiro para pagar a internet dos alunos. Atualmente o cursinho conta com 20 estudantes matriculados, dos quais a maioria possui celular, mas não tem acesso à internet.
Luciano Castro, professor de química e também diretor geral do pré-vestibular, conta que as doações foram fundamentais para os alunos não desistirem dos estudos. “A gente percebeu uma motivação maior nos estudantes depois que aderimos ao apadrinhamento. Eles reclamavam muito de não saber por onde começar a estudar nem como reservar o tempo de estudo, quando não tinham a internet à disposição”, explicou.
Thifany é uma das alunas do cursinho. Apesar do dia atarefado, ela tenta reunir o que lhe sobra de motivação para estudar. “Eu consigo dedicar apenas duas ou três horas do meu dia aos estudos”, revelou. “É muito desanimador ter que estudar sozinha, principalmente porque eu não tenho um lugar silencioso para isso, só consigo focar quando meus sobrinhos estão dormindo, já tarde da noite”.
Flávio Cervalhaes, professor da UFRJ, explica que a estrutura familiar é um forte determinante no desempenho dos alunos. “As condições físicas, quartos individuais e confortáveis, e tecnológicas, acesso à internet e computadores, contribuem para o sucesso dos alunos na educação. Por esses fatores, os jovens periféricos acabam dependendo ainda mais das escolas, pois vêm de famílias com níveis de escolarização mais baixos, com dificuldades de garantir êxito no ensino domiciliar”.
O estudante Luciano Alves, 29 anos, também cursa o pré-vestibular Providenciando Vidas. Depois de concluir o ensino médio, em 2008, não se sentiu preparado para o ingresso no ensino superior. Nesse meio tempo, trabalhou como vendedor de loja, balconista e com telemarketing. Atualmente, sonha em cursar Serviço Social em uma universidade pública.
Ele mora sozinho com o pai no centro da cidade do Rio. Apesar de ter um quarto individual, seus estudos são prejudicados pela falta de internet e computador. “Eu estudo pelo celular usando a internet do vizinho, não me sinto nem um pouco preparado para as provas”, avaliou.
Estudante de escola pública a vida inteira, Luciano afirma que sente que precisa se esforçar duas vezes mais para tentar chegar a algum resultado. “É difícil reconhecer que o ano já está praticamente todo perdido. É uma situação tão triste que eu nem consigo imaginar uma boa solução para esse problema”, lamentou.
Além das dificuldades estruturais, outra questão que interferiu nos estudos de Luciano foi o coronavírus. Ele contraiu a doença e precisou ficar em isolamento total. “Para você ter noção, meu olfato e paladar só estão voltando agora, quase um mês depois do contágio. Precisei ficar algumas semanas sem estudar”, conta.
Outra estudante do pré-vestibular é a desempregada Erica Conceição da Silva, 32 anos, que consegue dedicar seu dia aos estudos, mas sofre com a falta de recursos. Sem computador e internet domiciliar, ela vê a dificuldade de estudar sozinha aumentar. Erica mora com a mãe, com quem compartilha o quarto. Dela, tem todo apoio para seguir seu sonho: cursar veterinária na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Mas, mesmo com o apoio da mãe, a estudante afirma que tem sido muito difícil dirimir essas desigualdades e encontrar um caminho de equiparação com outros estudantes. “É muito difícil conseguir estudar pela telinha do celular, a concentração fica dividida. Fora que eu não consigo tirar dúvidas com nenhum professor”, reclama.
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