Mesmo com câmeras corporais, letalidade policial tem nono aumento consecutivo sob Tarcísio

Polícias Civil e Militar mataram 510 pessoas de janeiro a agosto de 2024: alta de 56%. Pesquisador associa aumento a “decisão política” do atual governo

PM porta câmera da Axon, que deve ser substituída após novo edital | Foto: Rosana Rovena / Agência Brasil

As polícias Civil e Militar de São Paulo mataram 510 pessoas de janeiro a agosto deste ano, segundo dados divulgados pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) nesta segunda-feira (30/9). Isso significa um aumento de 56% no número de vítimas em relação ao mesmo período de 2023 sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) e de seu secretário da Segurança Pública Guilherme Derrite. Esse já é o nono aumento consecutivo desde dezembro de 2023.

Só em agosto, as mortes saltaram de 50 para 78 em 2024, representando também uma alta de 56%. É o maior número para o mês de agosto desde 2019 — quando o programa de câmeras corporais da PM ainda não havia sido implementado. Ou seja, mesmo com os equipamentos de gravação ininterrupta, os oito meses de 2024 quase superaram o ano inteiro de 2022, que contabilizou 570 vítimas e foi recorde em queda de letalidade policial, um dos resultados mais significativos do funcionamento do programa.

Um dos casos do mês é a morte de Danilo de Jesus Souza, de 30 anos, ocorrida em 3 de agosto, que só veio à tona na semana passada após a divulgação de um trecho da câmera que o cabo Rafael Castanho Freitas usava na farda, durante uma abordagem no bairro Pimentas, em Guarulhos, na Grande São Paulo.

A gravação mostra o homem negro rendido levando socos no rosto e no corpo por não permitir que o policial o algemasse. Ele repete por várias vezes “perdi, senhor” e chega a pedir socorro. O cabo grita: “Tira a mão da cintura, senão você vai levar um tiro”. Em determinado momento, o homem consegue pegar a arma do agente que, em seguida, a recupera. Então, atira duas vezes em direção à cabeça da vítima, que morreu após ser levado ao hospital. Um dos tiros acertou o homem na boca, segundo laudo do Instituto Médico Legal (IML) a que a reportagem teve acesso.

Não é possível ver com clareza na filmagem se Danilo tinha alguma arma consigo. O cabo alegou que o homem disparou contra ele, mas a munição picotou. Um revólver calibre 38, com quatro munições picotadas, além da pistola do cabo, foram apreendidas para perícia. Três especialistas ouvidos pela Ponte na ocasião consideraram a conduta do cabo abusiva.

Segundo o inquérito, o delegado Marcel Luciano da Silva, do 4º DP de Guarulhos, não pediu imagens das câmeras corporais e considerou que o policial agiu em legítima defesa em seu relatório final. Já o promotor Rodrigo Merli Antunes solicitou as imagens das câmeras, além da íntegra da apuração interna da PM sobre o caso, por entender que um arquivamento da investigação da morte seria “prematuro”. Essa é a movimentação mais recente do caso.

Ocorrências de mortes praticadas por policiais em serviço, como o caso de Danilo, aumentaram 78,5% de janeiro a agosto em comparação com o mesmo período de 2023, de acordo com os dados SSP. Já as mortes no período de folga caíram 13,7%.

A comparação acende um alerta, pois as ocorrências em serviço são as que, em tese, o Estado tem como controlar. E a atual gestão teve como marca duas operações extremamente letais na Baixada Santista, vistas como vingança após assassinatos de policiais: a Escudo, entre julho e setembro de 2023, que deixou 28 vítimas, e a Verão, entre janeiro e março de 2024, com 56 vítimas. Esses são os números indicados pela Secretaria de Segurança Pública como decorrentes dessas operações, mas na região as mortes pelas polícias foram muito maiores em cada período, como a Ponte mostrou.

Para Michel Misse, professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos mais importantes pesquisadores na área, a decisão pelo aumento da letalidade policial é política. “O que está acontecendo em São Paulo agora é a retomada de uma política que já estava superada no estado e voltou a ser praticada com o atual governador”, afirma.

Ele explica que a gestão tem aplicado concepções de segurança pública que não funcionam, como uma exacerbação do militarismo associada a um despreparo da polícia e um incentivo às mortes. “É um discurso muito comum da direita e da extrema direita afirmarem que vão resolver o problema da segurança pública dessa maneira. Eles não vão resolver. Só vão aumentar o problema da segurança pública, porque eles vão aumentar o volume da violência.”

O aumento da letalidade também pode estar vinculado ao enfraquecimento do programa de câmeras nas fardas e dos mecanismos de controle da atividade policial. Em 2023, o governador Tarcísio deixou de investir de R$ 57 milhões ao transferir a verba para outras ações, como o pagamento de diárias de policiais.

Em maio, a gestão Tarcísio anunciou um novo contrato para substituir as 10 mil câmeras existentes por outras 12 mil. Na época, durante um evento em Campinas (SP) o governador afirmou: “Queremos uma população segura, e não um policial vigiado.”

Porém, tanto o edital quanto o contrato homologado foram alvo de críticas por retirar o recurso de gravação ininterrupta por uma manual, em que o PM escolhe quando começa a gravar a ocorrência — o que, na prática, inviabiliza o controle e o registro das ações policiais.

Uma das formas de medir o excesso da letalidade policial é comparar esse índice com o número de vítimas de homicídios dolosos. De janeiro a agosto deste ano, a proporção de mortes pelas polícias ficou em 23,1%. No mesmo período do ano passado foi de 15,5%. Só em agosto de 2024, chegou a 27,4%.

“27% é uma loucura”, enfatiza Misse. Estudos do sociólogo Ignacio Cano indicam que a proporção ideal é de 10% de mortes pela polícia em relação ao total de homicídios. Os do pesquisador Paul Chevigny sugerem que um índice maior que 7% já seria considerado abusivo.

Outra forma de medir a letalidade é a comparação entre o número de policiais mortos com as mortes praticadas pela polícia. Até a publicação desta reportagem ainda não havia sido disponibilizado o dado referente às mortes de policiais em agosto. Contudo, em julho, a Ponte mostrou que essa relação também estava desproporcional.

O pesquisador destaca que falta uma atuação mais efetiva do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), que tem a competência de fazer o controle externo da atividade policial. “Ele faz isso [fiscalização]? Mal. E por que faz mal? Porque o Ministério Público depende do trabalho policial de investigação das circunstâncias em que ocorreram as mortes. Ele não tem pessoal próprio suficiente para exercer essa fiscalização, um controle de forma eficiente”, aponta.

Como a Ponte revelou, das 28 mortes ocorridas na Operação Escudo, apenas quatro viraram alvo de denúncia do MP-SP contra oito policiais militares. As demais apurações foram arquivadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) a pedido dos próprios promotores.

Homicídios em queda

Enquanto isso, os homicídios dolosos no estado de São Paulo seguem em queda. Agosto registrou o menor número de vítimas para o mês na série histórica (206) e 2,8% a menos que em 2023, ainda que a capital paulista tenha uma alta de 53,1%, quando o índice passou de 32 para 49 em agosto.

Para Misse, não é possível atribuir esse resultado exclusivamente ao trabalho das polícias, como a Secretaria da Segurança Pública tem afirmado na divulgação das estatísticas. “Vários estudos demonstram que a redução dos homicídios dolosos em São Paulo resulta em grande parte do oligopólio do PCC. O fato de São Paulo não ter várias facções fortes disputando o controle entre si, nem ter milícias, faz com que as taxas de homicídio sejam muito menores, porque a política do PCC é evitar a morte exatamente para evitar que a polícia seja acionada”, explica o pesquisador.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre os indicadores. A Fator F, assessoria terceirizada da pasta, enviou a seguinte nota:

Os casos de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial (MDIPs) são consequência direta da reação de criminosos à ação policial. Todos os episódios são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário. Há investimentos permanentes na capacitação do efetivo, na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo e em políticas públicas voltadas para a redução da letalidade. Além disso, os cursos ao efetivo são constantemente aprimorados e comissões direcionadas à análise dos procedimentos revisam e aperfeiçoam os treinamentos, bem como as estruturas investigativas. A política de enfrentamento ao crime proporcionou quedas, tanto na capital como na Grande SP, nos casos de furtos, roubos (incluindo de veículos e de cargas) e de homicídios dolosos, que estão no menor patamar da história.

Também contatamos o Ministério Público estadual, mas a assessoria não deu retorno.

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