Números são do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta (20); estados não divulgaram dados completos, o que compromete políticas públicas, avalia especialista
Um jovem negro de 15 anos foi alvo de ofensas racistas em um grupo de WhatsApp criado por colegas de escola em Valinhos, no interior de São Paulo. O “Fundação Anti Petismo” surgiu logo após o resultado que tornou Luiz Inácio Lula da Silva (PT) presidente do Brasil pela terceira vez. Em entrevista à Ponte, a mãe do adolescente contou que ele foi colocado no grupo e xingado após alertar que o conteúdo compartilhado ali era crime. O caso registrado como racismo na delegacia do município não é isolado e esse tipo de violação cresceu no país no último ano.
O Brasil teve em média 6,7 casos de racismo por dia em 2022. No total foram notificadas 2.458 ocorrências do crime, número 67% maior do que o registrado no ano anterior. Também aumentaram os casos de injúria racial e de LGBTfobia na comparação entre os dois períodos (2021 e 2022). Contudo, o quantitativo deve ser maior, já que muitos estados não disponibilizaram dados sobre esses tipos de violações.
Os números foram extraídos da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgado nesta quinta-feira (20/7). O anuário trata de dados oficiais produzidos pelo setor de segurança pública sobre injúria racial, racismo, LGBTfobia e violência contra a população LGBTQIA+. O primeiro levantamento com este recorte foi publicado na edição 13ª divulgada pelo FBSP em 2019.
Nos últimos cinco anos, entendimentos jurídicos importantes alteraram penas e entendimentos acerca das violências cometidas contra negros e LGBTQIA+. Por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2021, racismo e injúria racial foram considerados equivalentes, o que tornou o segundo crime imprescritível. Já em janeiro deste ano, o presidente Lula sancionou a lei 14.532 e como consequência aumentou a pena para quem comete esse tipo de injúria — passou de previsão de um a três anos para de dois a cinco.
Juridicamente o racismo é entendido como crime contra a coletividade, diferente da injúria que é direcionada a um indivíduo.
Em relação à LGBTfobia, o avanço também ocorreu por meio do STF em decisão de 2019. Esse tipo de violação entrou no guarda-chuva da lei de racismo e passou a ter previsão legal de punição criminal. Diferente dos crimes raciais, até hoje não há uma legislação própria que puna quem comete esses atos.
Apesar da consolidação e divulgação das punições para esses tipos de violências, muitos estados deixaram lacunas abertas ao não disponibilizar dados. Esse fator preocupa e chama a atenção do pesquisador do FBSP Dennis Pacheco. A expectativa, conta, era positiva para este ano, mas além da inexistência de informação em muitos casos, houve ainda retificações negativas de números anteriormente divulgados.
“Os estados retificam os dados e isso é de certa forma normal, já que às vezes uma estatística ficou de fora ou estava em investigação e acaba sendo computada. Agora, a retificação negativa é digno de alguma atenção. O que a gente viu nos casos de racismo e injúria foram retificações muito mais negativas”, comenta.
Pacheco cita como exemplo o Rio Grande do Sul, que retificou sua série histórica sobre racismo. O que chama atenção é que até o ano passado a informação era de 4.132 registros em 2021, o que colocava o estado como o mais racista do país. Contudo, houve revisão e para a edição atual do anuário não foram disponibilizados dados.
O impacto disso é que o patamar dos números mudou significativamente no comparativo entre os dois anuários. No ano passado, considerando apenas os dados de racismo, foram 6.003 casos de racismo em 2021, quantidade que agora é de 1.464, considerando as retificações.
“Isso puxou o total nacional e a taxa para outro valor. Estaríamos falando de valores completamente diferentes hoje se esse dado do Rio Grande do Sul tivesse se mantido. Mais que isso, quando um estado tinha mais que o dobro do total nacional, se torna arenoso confiar nesses dados”, afirma.
Em São Paulo, onde existe uma Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), não há informação disponível sobre casos de racismo nos últimos dois anos. Quanto aos casos de injúria, só existem informações de 2021, quando 1.007 episódios foram notificados no maior estado do país.
Outro ponto de conflito é que o Tribunal de Justiça de São Paulo acatou em 2021 um pedido da Defensoria Pùblica do Estado para que nos boletins de ocorrência fosse incluído os campos “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Em resposta ao G1 na época da sentença, a Polícia Civil respondeu que desde 2015 registra BO com campo previsto para nome social.
O avanço contrasta com o deserto de dados de crimes de LGBTfobia em São Paulo. “Fica essa lacuna em que não se sabe para que serve incluir esse campo se ele não será aproveitado. Esse fingir fazer é preocupante. Você inclui um campo que sinaliza transparência e atenção para esses grupos, mas que não vai gerar qualquer impacto. Não vai gerar diagnóstico porque esse dado não está sendo precisado e não vai ter impacto na produção de política pública”, argumenta Dennis Pacheco.
Ao todo, seis estados forneceram dados de forma parcial sobre os crimes de racismo e injúria — são eles Bahia, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Roraima, São Paulo e Tocantins.
Rio de Janeiro liderou casos de racismo e injúria
O Rio de Janeiro foi o estado com o maior número de casos de injúria racial e de racismo em 2022, com 1.902 e 322 registros, respectivamente. Na capital existe a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), o que na avaliação do pesquisador do FBSP Dennis Pacheco contribui para que denúncias sejam feitas, mas ele pontua ser necessária a profissionalização das polícias.
“Não necessariamente uma pessoa que sofreu caso de racismo deveria procurar uma delegacia especializada para receber tratamento decente. Simplesmente todas as delegacias deveriam contar com profissionais capacitados para atendê-la, não é mais nem menos trabalho para a polícia atender vítima de racismo”, diz Pacheco.
O pesquisador considera que as delegacias especializadas são “grandes difusoras” porque podem produzir protocolos e treinamentos a serem replicados em outros espaços.
“Eu acho que o caminho principal é a profissionalização das policiais”, comenta Dennis, que cita que ainda há em muitos casos um desestímulo por de delegados e integrantes da Polícia Civil em registrar notificações de racismo. “As polícias têm uma insensibilidade e uma disposição ‘anti antirracista’, se é que a gente pode dizer assim. Há uma disposição para manutenção do status quo, uma disposição para manter as coisas como elas estão e o estado atual é de racismo, de supremacia branca”, completa.
Sua avaliação é que o governo federal tem de agir e não só deixar a questão das polícias se concentrar nos estados. “O Executivo tem esse papel e potencial de coordenar, de articular e de orientar as políticas e os processos, e quando ele não exerce é como se estivesse se ausentando da responsabilidade de enfrentar esse problema”, comenta.
“Até porque a gente está falando de policiais que aderiram muito intensamente ao discurso e as práticas da extrema direita”, conclui. O estudo “Política e fé entre os policiais militares, civis e federais“, divulgado pelo FBSP em 2020, mostrou que 41% dos praças (soldados, cabos e sargentos) interagiam com grupos bolsonaristas.
Há movimentos do governo federal em relação à aplicação de ações que mostrariam resultados na diminuição da violência nos estados. Em junho, a Ponte adiantou a pretensão Ministério de Justiça e Segurança Pública em colocar câmeras corporais também nos uniformes dos integrantes da Força Nacional. A informação foi dada pelo secretário nacional de Segurança Pública, Tadeu Alencar, durante o 17° Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Na ocasião, Alencar também defendeu uma mudança interna nas polícias com foco na atuação visando respeito aos direitos humanos.
“A câmara sozinha não faz milagre. Ela tem que estar associada a uma mudança na matriz curricular. Você tem que formar as nossas polícias desde a academia sob uma nova ótica de respeito aos direitos humanos”, afirmou à época.
Homicídios dolosos contra LGBT caem
O anuário também traz dados sobre lesão corporal, estupro e homicídios dolosos contra a população LGBT. O último indicador teve queda de 7,4% na comparação entre 2021 e 2022 (176 e 163, respectivamente). O problema aqui é o mesmo apontado nos casos de racismo e injúria racial: faltam dados.
Acre, Bahia, Maranhão, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo não divulgaram dados sobre nenhum dos três crimes, o que pode ajudar a entender a discrepância entre as 163 mortes e os números divulgados pela Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e Grupo Gay da Bahia (GGB) sobre o mesmo período.
A Antra contabilizou 131 vítimas trans e travestis de homicídio e o GGB 256 vítimas LGBT de homicídio no Brasil. A discrepância entre os números do Estado e das organizações sociais demonstram a falha que esses dados têm em retratar a realidade da violência no país.
O resultado disso, sinaliza Dennis, é um país desigual e sem políticas públicas voltadas a cidadãos carentes de direitos básicos.
“No fim das contas o que a gente está observando é uma falsa produção [de dados] e a manutenção do mesmo modelo de atuação das polícias, das mesmas práticas de segurança pública que não olham para esses grupos vulneráveis.”