Ministério Público reage a norma da lei anticrime que travou apurações de violência policial em SP

    Para promotor Arthur Lemos, “a investigação não pode ficar na prateleira, no aguardo da presença do advogado” do policial militar

    Guilherme Guedes, morto em junho, David Nascimento, em maio, e Igor, em abril, foram vítimas da violência policial neste ano| Foto: Arquivo Ponte

    O Ministério Público Estadual de São Paulo emitiu uma nota técnica recomendando que policiais militares que matam e que não constituem advogados devem continuar a ser investigados e podem também ser denunciados na Justiça.

    O documento é uma reação a uma brecha legal usada nos inquéritos de mortes cometidas pela Polícia Militar, que ficavam paralisados sempre que um PM deixava de constituir um advogado para acompanhar as investigações. O estratagema se baseava em uma norma da lei anticrime (13.964, de 24 de dezembro de 2019), proposta pelo então ministro da Justiça Sergio Moro, do governo Jair Bolsonaro.

    Em março deste ano, uma reportagem da Ponte Jornalismo chamou a atenção para o risco de impunidade trazido pelo artigo 18 da lei anticrime, que modificou o Código de Processo Penal Militar, determinando que policiais investigados por mortes devem ser avisados do inquérito e constituir um advogado. Na semana passada, uma reportagem do Uol mostrou que mais de 300 inquéritos contra PMs estavam parados simplesmente porque os investigados não haviam nomeado advogados.

    Em entrevista à Ponte, o promotor e secretário especial de Políticas Criminais, Arthur Pinto Lemos Junior, que assina a nota técnica, juntamente com outros quatro promotores, afirma que as investigações devem ser concluídas, independentemente da nomeação de defensor pelos policiais. “A nota técnica fornece o posicionamento institucional da Procuradoria-Geral de Justiça e orienta o promotor de Justiça a formar sua convicção sobre o conjunto probatório, sem que o caso investigado fique parado na Polícia Judiciária ou na Corregedoria da Polícia Militar”, afirma.

    O promotor Arthur Lemos sustenta que “os atos policiais, cuja a presença seja obrigatória o defensor, não serão praticados”, mas que “a investigação policial não pode ficar na prateleira, no aguardo da presença do advogado”.

    A nota técnica recomenda que os inquéritos, mesmo sem conclusão, sejam enviados ao Ministério Público, que poderá decidir ou não pela denúncia do policial na Justiça. “Não havendo defensor, ainda que nomeado, para acompanhar o investigado em atos específicos (de presença obrigatória), a melhor solução nos parece ser a confecção de um relatório parcial do inquérito pelo seu presidente e encaminhamento dos autos para apreciação do titular da ação penal, que poderá: a) oferecer a denúncia; b) promover o arquivamento; c) propor ao investigado acordo de não persecução penal, desde que preenchidos os requisitos do art. 28-A CPP (Código de Processo Penal); d) e, por fim, devolver os autos à Delegacia de Polícia para novas diligências, nos termos do dispositivo em análise”, diz o texto.

    Lei anticrime ‘afronta a Constituição’

    O novo documento foi elaborado pela Secretaria Especial de Políticas Criminais e pelo Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público paulista. Em um dos trechos, os promotores pedem “que seja requerida pelo órgão de execução, de forma difusa, a declaração de inconstitucionalidade dos citados dispositivos”. O órgão também cita que os dispositivos presentes na lei em vigor há sete meses ferem o princípio constitucional da isonomia de que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

    Ouvida pela Ponte, a desembargadora Ivana David Boriero, do Tribunal de Justiça de São Paulo, concorda com o posicionamento do Ministério Público. Segundo ela, “o artigo da lei anticrime e do Código de Processo Penal Militar afrontam a Constituição Federal em vários sentidos, principalmente igualdade das partes”.

    A magistrada ainda explica que “a matéria de defesa ou falta dela só pode ser decidida pelo juiz de direito, ouvindo o MP (titular da ação penal) e não administrativamente”. Segundo ela, “todos os crimes de homicídio praticados por PMs são de atribuição da Polícia Judiciária para investigar e Justiça Comum para julgar”.

    Quem também enxerga possíveis benefícios na atitude do Ministério Público é a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, que analisa uma possível pressão na Polícia Civil para a continuidade de apurações paralisadas. “Com esse posicionamento, os casos parados na Polícia Civil vão andar porque o impacto político é grande. O MP reafirmou o que diz a lei, até porque o pacote anticrime estabelece a garantia de defensor pago pelo Estado pelo policial, não fala em suspensão de investigação. Quem fala de suspensão é apenas a PM”, completa.

    O documento expedido pela Promotoria foi encaminhado para todos os membros do Ministério Público, mas direcionado especialmente à Promotoria Militar e aos promotores da Justiça dos tribunais do Júri. Também foi direcionado aos juízes militares.

    Procuradas, a Polícia Militar e a Secretaria de Segurança Pública, do governo João Doria (PSDB), não se pronunciaram até a publicação da reportagem.

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