Misturando Slam com carimbó, poeta transmasculino Borblue apresenta seu novo disco neste domingo

    Expoente das batalhas de poesia falada de Belém, paraense resiste aos preconceitos e participa do festival online “Chama em Ação”, focado em artistas transmasculinos

    Borblue mistura Slam com carimbó, melody e tambor de umbanda em suas músicas | Foto: Arquivo pessoal

    Ádrian Lima das Neves, 25 anos, é o Borblue (em referência a “borboleta azul”) desde 2017, quando começou a recitar poesias em batalhas de Slam. “Borboleta é um dos meus orixás e porque eu gosto muito desse lance de transformação de lagarta para borboleta, minha vida foi assim, cheia de metamorfoses”, explica falando diretamente do distrito de Icoaraci, em Belém, capital do Pará. 

    Poeta, músico e artesão, Borblue se apresenta no Festival online “Chama em Ação”, que estreia neste domingo (25/4) e vai até quarta-feira (28/4). O evento é produzido pela organização não governamental Casa Chama, baseada em São Paulo, que dá suporte a pessoas trans e travestis nas áreas de cultura, saúde, jurídica, segurança, inclusão social e inserção no mercado de trabalho. 

    Para além da transexualidade, o artista enxerga também seus processos de metamorfoses ao transformar sua poesia em resistência aos preconceitos encarados cotidianamente, mantendo um estilo musical e de vida junto à natureza e ao culto à “pajelança, às entidades e energias das matas e dos rios”, como explica. Borblue será pai em breve. “Inclusive, o preconceito do momento é as pessoas questionando minha paternidade, para mim isso já é transfobia, quando é uma pessoa hétero e binária não se pergunta isso para te desmoralizar”.

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    Animado com o evento, o artista conta que a música entrou em sua vida aos 14 anos. “Comecei a descobrir minha sexualidade, foi aí que a poesia entrou na minha vida, junto com a música. E fez toda diferença, por muitos momentos escrever e cantar me salvou, em muitos processos e me levou a lugares que não imaginei chegar”. 

    Em 2017 uma amiga que conheceu no Rio de Janeiro apresentou Borblue ao Slam e às batalhas de poesia falada. “Os rolês acontecem pro centro [de Belém], mas a gente demora quase 1h30 para chegar lá, o movimento cultural aqui era muito fraco, era pouco valorizado, então eu conhecia quem tentava agitar um rolê. Numa dessas viagens de movimento estudantil eu conheci a Shaira Mana Josi, uma rapper, poeta e que tem uma carreira incrível. Depois de um tempo ela criou a batalha Dandaras do Norte”. 

    Borblue conheceu o Slam em 2017 | Foto: Arquivo pessoal

    Com o apoio da amiga, Borblue passou a se destacar na cena cultural da cidade. “Ela queria fazer uma batalha de Slam aqui em Belém e queria que fossem com as minhas poesias. Era isso que eu precisava, porque eu não sabia o que era Slam, eu escrevia poesia para mim, mas gostei da brincadeira”.

    Desde lá o artista começou a conhecer diversos estados do Brasil em competições de Slam. “Já fui para São Paulo em 2018 para representar o Pará no Slam, quando ganhei a final. Fui para o Rio de Janeiro, estados do Nordeste, Rio Grande do Sul. A poesia mudou a minha vida, ela abriu as portas, mas sempre voltei para Icoaraci”. 

    O pouco acolhimento e a culinária muito diferente são alguns dos motivos que o fazem voltar para a cidade natal. “Nasci em Icoaraci, quer dizer ‘de frente para o sol’, em uma língua indígena. Aqui ainda temos uma relação muito forte com a pesca, com a plantação, ainda temos o costume de plantar erva no quintal de casa para fazer chá, apanhar fruta do pé, manga, goiaba, de tudo. E eu vejo que, por mais urbano que a gente já esteja, ainda temos a nossa ancestralidade muito forte”. 

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    Icoaraci tem aproximadamente 400 mil habitantes, fica a 20 km de distância do centro de Belém e é um dos oito distritos do município. “Depois daqui só tem ilha, eu costumo dizer que Icoaraci é uma grande aldeia, um pouco urbanizada, mas temos muito essa característica de comunidade, de correr ali paro o vizinho, para a parteira, para o curandeiro, pajé”.

    Borblue vive com a mãe, o irmão e a companheira. A família simples, que tem ascendência de negros, indígenas e de portugueses, sempre acolheu sua transição de genêro, o que nem sempre aconteceu fora do lar. Ainda assim, ele trata a situação com tranquilidade. “Eu deixo eles no tempo deles, a galera está começando a me olhar e não estão enxergando uma mulher e fica constrangedor para eles me tratarem no feminino ou me apresentarem para outras pessoas como uma mulher”.

    Borblue conta que já foi impedido de cantar em uma batalha por conta de seu gênero e sua sexualidade. “Eu passei dois anos tentando cantar em uma batalha de rap aqui em São Brás, no centro da cidade, uma batalha majoritariamente de homens, a galera não deixava, eles não me davam o microfone. A galera que acompanhava pedia para eu falar, mas fingiam que não estavam ouvindo, por isso mesmo eu ficava”. 

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    Depois de tanto persistir, ele viu mudanças nas reações. “Era só homem, hoje tiveram que dar espaço. Mas já tomaram o microfone da minha mão em um batuque no meio da cidade, porque a minha poesia é muito forte”.

    Além dos desafios impostos por uma sociedade LGBTfóbica, Borblue também encara as condições difíceis de sobreviver como artista no Brasil. Para se sustentar, ele já trabalhou em oficinas de carro, supermercado, restaurante e até mesmo no jogo do bicho. Há dois anos ele vem recitando seus poemas nos ônibus em direção à Belém e passando o chapéu na esperança do reconhecimento em valor financeiro. “Se o dia tiver bom tiro R$ 50, se tiver mais ou menos de R$ 30 a R$ 40, trabalhando o dia inteiro”. 

    Com a pandemia as dificuldades aumentaram, mas mesmo assim ele busca o sustento na arte. “Aparece uma live aqui, outra ali. Eu trabalhei em alguns editais de cultura e isso segurou minha onda, mas agora acabou. A cultura é pouco valorizada”.

    Ele explica que são poucas as formas para se sustentar como artista em Belém: “Ou ganha edital, ou tem dois lugares para tocar carimbó, o resto é tudo na praça. O nosso rolê sempre foi sustentado por nós mesmos, só comecei a ganhar dinheiro com a arte ano passado. É difícil, só faz arte se tiver dinheiro, ou se for doido”, conta, em meio a gargalhadas. 

    “Por muitos momentos escrever e cantar me salvou”, diz o artista à Ponte | Foto: Arquivo pessoal

    Sobre a emergência de artistas trans, o jovem avalia o contexto atual com um certo receio. “Eu acho massa, apesar de que me parece conveniente as grandes mídias usarem nossa imagem para ganhar com a gente porque é o assunto do momento. Se aparecer uma ‘novidade’, sei que podemos ser esquecidos de novo. É bom que nós nos firmemos nos espaços, porque tudo é muito temporário”.

    É por esses e outros motivos que Borblue se apega a suas raízes regionais. “Uma roda de carimbó é uma confraternização, é uma comunhão. É um estilo de vida, ir lá pescar sua comida, tirar um tronco de árvore para fazer um tambor, pegar a cuia pra fazer maraca. É uma vivência em comunidade, o carimbó é isso”. 

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    No carimbó, a dança também faz parte da vivência. “Nas danças fazemos movimentos do cotidiano, como movimentos de remo, da saudação para a lua, de lavar a roupa. O que eu tento fazer nos meus trabalhos é levar o que vivo aqui para outros lugares. No evento do Chama farei o show do meu disco, que será lançado em maio”. 

    Diversidade com protagonismo transmasculino

    Focada na assistência psicosocial e jurídica a travestis, transexuais e transgêneros, a Casa Chama, organização não governamental fundada e coordenada por pessoas trans, apresenta o primeiro festival “Chama em Ação” a partir deste domingo (25/4).

    O evento será transmitido diariamente no canal de YouTube da Casa Chama até quarta-feira (28/4), com protagonismo de pessoas transmasculinas, agêneros e não-binárioa, com o objetivo de promover a visibilidade de artistas transvestigêneres nacionais e internacionais em linguagens culturais que incluem música, teatro e oficinas de serigrafia e costura. 

    São mais de 30 pessoas trans envolvidas na concepção do festival, incluindo 20 artistas do Rio de Janeiro, São Paulo, Ceará, Bahia, Pará, Espírito Santo e Paraíba, além de três artistas peruanos. O evento tem a curadoria de Digg Franco e Matuzza, fundadores da ONG, e coordenação de Leona Jhovs. A identidade visual do Chama em Ação é assinada pelo artista Marcos Vinícius. 

    A programação está repleta de shows, com participação confirmada dos artistas Flor de Muraré, Borblue, All Ice, Caio Transpoesia, Jackie Jean, Dan Abranches, Mascucetas, Kaique Theodoro, Seu Verciah, Rap Plus Size, Tiely, Julian e EME. O evento também traz mesas com foco em temas como aspectos jurídicos de direitos de homens trans, educação física escolar e transgeneridades e corpos não binários na sigla LGBTQI. 

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    Entre os convidados está o repórter da Ponte Caê Vasconscelos, quevai mediar a mesa de abrtura EnconTrans, reunindo todos os artistas do cronograma, neste domingo.

    Para Rodrigo Franco, 36 anos, fundador da Casa Chama e empresário, o momento será de encontro e fortalecimento dos homens trans. “ É uma tentativa de um encontro e também de colocar os homens trans como protagonistas para serem vistos, para a gente conseguir a partir disso entender nossas necessidades e nossas características em comum e se fortalecer”, diz.

    O projeto é realizado com recursos do Governo do Estado de São Paulo, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, do Programa de Ação Cultural de São Paulo (Proac), do Governo Federal e Lei Aldir Blanc.

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