Moradores da favela do Moinho celebram acordo para casas gratuitas

Governos federal e estadual decidiram que vão subsidiar imóveis de até R$ 250 mil. Ainda há incerteza sobre a sequência das demolições e sobre a presença da polícia na comunidade

Moradores da favela do Moinho celebram acordo para casas subsidiadas pelo governo | Foto: Catarina Duarte/Ponte Jornalismo

“O Moinho venceu!”, celebraram moradores do Moinho, a última favela do Centro de São Paulo, nesta quinta-feira (15/5). A comemoração ocorreu após o anúncio de que o governo federal e estadual irão subsidiar imóveis de até R$ 250 mil para a população que vive ali.

A notícia aliviou momentaneamente a tensão instaurada desde segunda-feira (12/5), quando a Polícia Militar paulista (PM-SP) passou a escoltar operários da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) para demolições, agindo com violência. Moradores relatam terem sido agredidos com cassetetes, socos e chutes. A ação policial inclui revistas nas mochilas de crianças e o impedimento do livre trânsito pela comunidade.

A notícia do acordo foi dada quando uma comitiva ministerial vinda de Brasília participava de uma reunião com a associação de moradores. O anúncio não foi feito ali, mas em uma entrevista coletiva da qual participaram o ministro das Cidades, Jader Barbalho Filho, e o secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação de São Paulo, Marcelo Cardinale Branco. 

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O encontro aconteceu após um imbróglio entre as esferas federal e estadual. No fim da terça-feira (13/5), o governo Lula (PT) emitiu um comunicado afirmando não mais autorizar a demolição de casas no Moinho, que já estava sendo feito desde o dia anterior pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos). A gestão federal afirmou, ainda, não compactuar com o uso da força policial contra a população. 

A festa pelo acordo, ao som do Rap da Felicidade, tomou as ruas da comunidade que, ao longo da semana, foi palco de violações e revolta. “Moradia não é mercadoria. A gente tem que ser exemplo para outras comunidades e para o Brasil inteiro. Que acontece isso com todas as pessoas pobres. É isso que a gente sempre cobrou, moradia com dignidade”, diz Yasmin Flores, presidente da Associação de Moradores da favela do Moinho.

Moradores celebraram acordo com festa pelas ruas da favela | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

Proposta para famílias mais vulneráveis

O governo federal vai subsidiar R$ 180 mil e o de São Paulo, R$ 70 mil, totalizando R$ 250 mil por família. “Dentro do Minha Casa, Minha Vida, nós vamos adquirir esses imóveis prontos ou aqueles imóveis que estão em finalização. As famílias vão ter oportunidade de procurar as suas habitações para que, ao final, elas possam ter a questão habitacional resolvida”, disse o ministro Jader Barbalho Filho.

A proposta do governo de Tarcísio era de um financiamento para os moradores. Os imóveis poderiam custar até R$ 250 mil se fossem localizados na região central. A crítica da associação de moradores à oferta era de que muitos moradores não teriam como pagar as parcelas do financiamento.

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“A gente queria uma resposta para as famílias mais vulneráveis que estavam na opressão. As famílias que estão aqui hoje são as que não conseguem pagar, por isso não saíram. A gente estava brigando por essas famílias. São famílias com maior número de pessoas, que não cabem nos empreendimentos que eles estavam dando e a gente estava alertando que eles não iam conseguir morar em um lugar insalubre porque não ia caber todo mundo”, conta Alessandra Flores, representante da associação. 

O acordo entre o governo federal e estadual também garantiu o aumento no auxílio-aluguel pago até que as famílias se mudem para os imóveis definitivos. O valor de R$ 800 será ampliado para R$ 1.200. Alessandra diz que hoje os moradores poderão dormir sossegados. Para ela, a comunidade conseguiu lembrar aos governantes de que eles também são cidadãos. “O Moinho conseguiu na luta. Brigando, tomando bala de borracha, bomba de gás lacrimogêneo, mas a gente resistiu e persistiu no que queria. A gente tem um ideal, quando você tem um ideal você vai atrás e luta.”  

Morador da favela do Moinho solta rojão para celebrar | Foto: Daniel Arroyo/Ponte Jornalismo

‘Não haverá violência’, diz ministro

Estiveram presentes na comunidade Kelli Cristine de Oliveira Mafort, Secretária-Executiva da Secretaria-Geral da Presidência da República, e Augusto Rabelo, secretário nacional de habitação. A Ponte questionou a ambos se o acordo firmado entre o governo Lula (PT) e a gestão de Tarcísio prevê o fim das demolições e da entrada da polícia na comunidade. As autoridades não souberam responder.

Durante a entrevista coletiva, o ministro Jader Barbalho afirmou que foi discutido com o governo de São Paulo o fim da violência e que o acordo ficaria inviabilizado caso novos episódios ocorressem. “O que foi discutido entre o governo de São Paulo e o governo federal é que não haverá violência. E ficou muito claro para ambas as partes: [mediante] qualquer tipo de violência que possa ocorrer nesse processo de transição, esse acordo obviamente fica absolutamente inviabilizado. Isso aqui foi um ponto pacífico entre todos nós. E quero fazer o registro: isso não partiu só do governo federal, mas também do governo do Estado, concordando imediatamente que isso é um ponto central, que sem ele não tem como haver negociação”, afirmou.

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A fala contrastou com o discurso do governo de São Paulo. O secretário Marcelo Cardinale Branco chegou a dizer que o crime organizado estaria impedindo as pessoas de deixar o Moinho e que foi por isso que a polícia interveio. “A operação que nós fizemos na favela do Moinho foi para dar o direito de sair às pessoas que querem sair de lá, que manifestaram esse desejo por escrito para a CDHU”, alegou.

“Na segunda-feira, nós tivemos pessoas lá de dentro do crime organizado que estavam proibindo as pessoas de se mudarem da favela. Foi por isso que a polícia entrou, para garantir a essas pessoas o direito de sair assegurado. Então, agora nós imaginamos que cada vez menos vamos ter esse crime organizado impedindo as pessoas e, portanto, vamos poder fazer isso de forma mais tranquila”, completou o secretário do governo paulista.

Leia e Sidnei comemoram o anuncio do acordo para moradias gratuitas | Foto: Catarina Duarte/Ponte Jornalismo

Dia de festa e alívio

O casal Leia de Jesus Santos, 26, e Sidnei Alexandria, 45, não conseguia conter o sorriso. Logo que souberam do subsídio, foram para o campinho da favela celebrar com os vizinhos. A família vive há três anos no Moinho e se estabeleceu no Centro. Sidnei trabalha como serralheiro em Santa Cecília e Leia em um restaurante localizado a poucos metros do Moinho. As filhas deles, de um e seis anos, também estudam na região. As operações policiais dos últimos dias fizeram a família toda temer pela segurança. “As minhas filhas estavam passando mal, vomitando devido ao gás. Eu mesma desmaiei, estava apavorada, estava prestes a me mudar. Agora eu vou ganhar minha casa já com a chave”, diz Leia.

A autônoma Silvania Mendes Machado, 55, não conseguiu conter as lágrimas. Ela conta que a vida que levava foi interrompida em dezembro do ano passado, quando começaram as negociações para a saída do Moinho. “De dezembro para cá, nós não fizemos mais nada. Eu tive que parar minha vida. É difícil isso para a gente, ainda mais sair daqui para ir pagar, sendo que nós já gastamos o que podia e não podia para sair com uma mão na frente e outra atrás?”, conta.

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A maranhense Leidivânia Domingas, 30, estava “feliz da vida”, como ela mesma definiu. Na terça-feira, ela precisou correr com a filha, que ainda é uma bebê de colo, de apenas 1 ano e 11 meses, para escapar do efeito das bombas de gás. A criança tem asma e faz uso de uma bombinha para respiração. Apavorada com o bebê no colo, Leidivânia ainda ouviu de um PM que era para apressar o passo. “Sai da comunidade se não quer que as crianças morram”, teria dito o agente.

O acordo fez o semblante dela mudar. Depois de três dias de tensão absoluta, Leidivânia celebrou o fato de poder almoçar com calma, mesmo que muito depois do horário habitual. “Eu estou super emocionada”, contou. 

Renaci Marques de Brito, 46, mostra cicatriz da cirurgia que fez no coração. Ele foi agredido por policiais militares e preso | Foto: Catarina Duarte/Ponte Jornalismo

Violência policial

Os moradores da favela do Moinho tentam entender quando deixaram de ser cidadãos. Desde segunda-feira (12/5), o tratamento dado pela Polícia Militar tem provocado medo. Duas pessoas chegaram a ser presas acusadas de suposto desacato e agressão contra os policiais. Na terça-feira (13/5), o pedreiro Luís Clésio dos Santos Silva, de 47 anos, saiu de casa para comprar pão, como faz todos os dias pela manhã. Ele é pai de sete filhos e vive na comunidade há mais de duas décadas.

Os policiais da Tropa de Choque ordenaram que Luís voltasse para casa sem explicar o porquê. A ordem foi seguida por uma série de agressões. Primeiro, com cassetete desferido contra o pescoço de Luís. Depois veio o tiro de bala de borracha na perna direita. O pedreiro também tem marcas da violência no rosto – cortes na bochecha e na boca. “A gente acorda cedo para trabalhar e o café da manhã que a gente recebe é isso aí”, queixa-se Luis. 

Luís acabou preso em flagrante por desacato, o que nega ter cometido. O pedreiro foi libertado após audiência de custódia. “Agora eu tenho que ficar assinando coisas que eu não fiz. Eu sou primário, nunca caí preso. Falaram que eu agredi o policial, eles que me agrediram”, conta. 

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O catador de latinhas Renaci Marques de Brito, 46, também foi preso sem entender o motivo. Ele deixava a comunidade para acompanhar uma reunião entre os moradores e o CDHU, quando um policial o abordou e anunciou a prisão. Renaci foi agarrado pelo pescoço por um segundo agente. “Quase me matando enforcado, me levaram para fora da comunidade”, conta.

O desespero tomou conta dos moradores que presenciaram a ação, já que Renaci passou há poucos meses por uma cirurgia no coração. “Eu falei para os caras [policiais] que ele era operado. Ele é cheio de operação e eles estão fazendo isso aí”, relata Nailton Pereira Damasceno, 54, que há 25 anos mora no Moinho. Um policial passou a arrastar o catador pelos pés da entrada da favela até o camburão.

Luis e Renaci passaram a noite no 2º DP (Bom Retiro). Os dois foram colocados em liberdade provisória após passarem por audiência de custódia na quarta-feira (14/5). “Eu tenho família, eu tive um infarto. Eu estou praticamente proibido de trabalhar, mas eu estou trabalhando, porque eu tenho minhas filhas e não sei o que pode acontecer com a minha família”, diz. 

A polícia esteve na favela do Moinho nesta quinta-feira (15/5). Pela manhã, duas equipes da Tropa de Choque ocuparam a entrada da comunidade. Operários do CDHU também foram escoltados pelos policiais durante a manhã em vistorias. Após o anúncio do acordo, não havia mais PMs no Moinho. No começo da noite, viaturas do 7º Batalhão de Ações Especiais de Polícia (BAEP) e unidades das Rondas Ostensivas com Apoio de Motocicletas (Rocam) estavam nas ruas próximas da favela. A Ponte questionou o motivo da presença para a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP), mas não houve retorno.

Remoção de moradores

Localizada na região dos Campos Elísios, a favela do Moinho abriga cerca de 800 famílias — a comunidade hoje se espreme entre trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), embaixo do Viaduto Engenheiro Orlando Murgel e na divisa com o bairro do Bom Retiro. A remoção dos moradores se insere no contexto da alegada revitalização da região central pelo governador: a comunidade está a menos de um quilômetro da Praça Princesa Isabel, para onde Tarcísio pretende levar parte da sede administrativa do governo.

Casa de morador do Moinho demolida pela CDHU | Foto: Catarina Duarte/Ponte Jornalismo

A gestão Tarcísio diz que os moradores vivem sob risco e em condições insalubres. Além disso, ela pleiteia a cessão do terreno pela União, onde prevê construir um parque. A Secretaria Nacional do Patrimônio (SPU), submetida ao Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos, emitiu uma nota técnica no último dia 14 de abril desautorizando demolições das casas e negando haver certeza de cessão do espaço ao Estado — um dos entraves ao processo era justamente a necessidade de ajuste no plano de reassentamento das famílias. Com o acordo estabelecido nesta quinta-feira, ainda não se sabe como ficarão as remoções.

Apesar da indefinição, o governo Tarcísio deu início no último dia 22 às saídas de quem aceitou a proposta de remoção, sob presença da PM-SP no local. Na ocasião, conforme mostrou a Pontefamílias relataram querer mudar justamente para escapar da truculência policial. Já no 12 de maio, foram iniciadas as demolições, ocasião em que o Estado disse estar amparado por um ofício da União.

Protestos anteriores de moradores

Em abril, moradores também protestaram contra a política de remoção de Tarcísio em pelo menos duas oportunidades. A primeira delas foi em um ato público no dia 15. Os manifestantes marcharam da favela até a Câmara Municipal gritando palavras de ordem contra o governador paulista e a favor do Moinho. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva também foi cobrado.

Já no dia 18, feriado de Sexta-Feira Santa, a Polícia Militar montou uma operação dentro da favela. Ao UOL, moradores relataram que os agentes chegaram pela manhã e jogaram bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta contra um grupo que estava em um bar. Ainda na ocasião, pessoas que vivem na comunidade protestaram contra a violência policial e chegaram a fechar temporariamente a circulação de linhas dos trens da CPTM que passam pelos trilhos à beira do local.

Uma pessoa foi presa por suspeita de tráfico de drogas durante a operação no feriado religioso, que teve policiais do Baep e da Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam). À Ponte, a SSP-SP atrelou a ação à época à desocupação do terreno. “Para o local, o Estado propôs o reassentamento de famílias da comunidade com o objetivo de levar dignidade e segurança a essa população, que vive sob risco elevado em condições insalubres, com adesão voluntária de mais de 87% da comunidade até o momento”, disse em nota na ocasião.

Violência policial recorrente

Os moradores do Moinho relatam que houve intensificação das operações policiais após o projeto de remoção se concretizar. Contudo, a violência policial contra quem mora ali não é novidade. A principal justificativa dada para a entrada dos agentes armados é o combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC), facção à qual supostamente a favela estaria submetida e que faria dela base para o tráfico de drogas na região chamada de Cracolândia — cena aberta de uso de drogas.

Ponte já denunciou diversas violações ocorridas contra os moradores sob esse pretexto. Em uma delas, de agosto do ano passado, policiais invadiram casas e revistaram até mochilas de crianças, segundo moradores. Em outro caso, dois policiais militares foram condenados por tortura contra um jovem — os agentes esfaquearam a mão da vítima, causando um corte profundo, durante operação em 2020. Na ocasião, eles ainda haviam cometido o crime ao invadir a casa dele.

*Com colaboração de Paulo Batistella e Daniel Arroyo

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