Moradores de favelas que serão desocupadas revelam medo e caso de abuso policial

    Justiça decidiu pela desocupação da Favela do Sapo, Futuro Melhor e Favela da Mata, na zona norte de São Paulo, por risco de deslizamentos e enchentes

    Morador da Favela do Sapo abandonou o local após polícia invadir a sua casa | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Dona Aldineia de Almeida tem 62 anos, apenas dois deles não vividos na região do Peri Alto, zona norte de São Paulo. Na sua quebrada, três comunidades cresceram ao longo das décadas: as Favelas do Sapo, Da Mata e Futuro Melhor. É uma área de encosta, com morro e um córrego, cobertos por barracos – seja em cima da terra ou das águas correntes. A senhora, líder comunitária, verá três mil famílias serem retiradas do local por conta de uma decisão judicial.

    O juiz Randolfo Ferraz de Campos definiu a área como de alto risco na época de chuvas, sujeita a enchentes e desmoronamentos. Definiu a retirada das pessoas até 21 de dezembro de 2018, às vésperas do Natal, com promessa de resistência de que mora nas favelas e de violência do lado da Polícia Militar. Há relatos de moradores dizendo que o comandante local falou: “Nós vamos entrar sem conversa, e vocês sabem como nós entramos”, teria dito.

    A promessa não se cumpriu apenas porque, ao fim da tarde do dia 20 de dezembro, o próprio juiz Ranfoldo adiou a retirada das famílias e repassou a data limite para 11 de janeiro de 2019. Também repassou uma série de obrigações a serem cumpridas pela Prefeitura e Secretaria de Habitação (Sehab) de São Paulo, principalmente em ajuda não dada às famílias antes do dia 21 de dezembro.

    Comunidades cresceram sobre um córrego e um morro próximos ao trecho norte do Rodoanel | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    “Teve gente que pegou o carro e começou a dormir nele, como um rapaz que está quatro dias assim”, conta Aldineira, a Neia, líder comunitária da Favela do Sapo. “Não sabemos para onde todos vão, tem que arrumar um lugar. O jeito é falar com as igrejas para colocar as pessoas até resolverem suas situações”, continua.

    Ainda que considere ineficientes os esforços do poder público, a líder considera a decisão em retirar as famílias do local correta. E cita exemplos. “Uma criança morreu aqui. Foi em uma enchente a mais ou menos três anos. É muito perigoso, uma área de grande risco”, conta.

    O espaço com barracos e casas simples de alvenaria segue por uma reta de pelo menos 1km, sobe pelo morro e vai até o outro lado, onde há uma parte do trecho norte do Rodoanel. Tem casas próximas a um túnel da estrada. Barraco por barrado, funcionários da Secretaria da Habitação começaram nesta quarta-feira (26/12) trabalho de cadastramento dos moradores.

    Líderes comunitários estimam cerca de três mil famílias morando no local | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Uma das condições imposta pelo juiz Randolfo Ferraz de Campos aos agentes públicos é lacrar os locais apenas quando os moradores receberem parte do auxílio-aluguel, no valor de R$ 400, para conseguirem encontrar outro espaço para morar. O valor é um dos pontos criticados pela população.

    “Encontrar casa para alugar em São Paulo só acima de R$ 600 ou R$ 800. Com R$ 400, a gente mora na rua ou vai para outra favela? O que vocês querem? Nem todo mundo vai conseguir um lugar e, se conseguir, será de novo na beira do rio”, desabafou uma moradora, ao pegar o microfone do carro de som – onde representantes que evitaram a desocupação no dia 21 dividiam com funcionários da Sehab.

    Em seguida, uma funcionária da pasta respondeu: “Nós da Sehab dormimos e acordamos pensando em vocês, que foram convidados a se retirarem de uma área de risco. A secretaria e a prefeitura preferem que não haja mortes e seja resguardada a segurança de vocês. Não estamos aqui para fazer política”, retrucou.

    Grafite do atacante Gabriel Jesus, cria do Peri e jogador da seleção brasileira, fica em frente ao campo de futebol das comunidades | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    A fala oficial dos representantes da pasta ressaltou que só sai quem receber o auxílio após serem cadastrados, com ação até o fim da semana. Depois disso, é necessário esperar o dinheiro cair – ainda que a liberação dependa de um decreto a ser assinado pelo prefeito Bruno Covas (PSDB). “Temos um cronograma até 11 de janeiro conforme decisão do juiz, com pagamentos até 31 de janeiro e, o que for remanescente, até 28 de fevereiro”, contou a funcionária.

    O prazo limite para o auxílio-aluguel é de 12 meses, prorrogável por mais 12. As pessoas terão direito a mudança gratuita, feita por 50 caminhões da Subprefeitura da Casa Verde, mas apenas para locais dentro da cidade de São Paulo.

    Rotina de medo

    As preocupações dominam a cabeça de quem mora próximo ou no entorno do Campo da Brahma, espaço de lazer das comunidades, guardado pelo menino Jesus – há um grande mural com o rosto do jogador de futebol Gabriel Jesus, da seleção brasileira, nascido no Jardim Peri. Ninguém sabe como será o dia de amanhã, com ou sem suporte do auxílio-aluguel.

    Moradores escutam atentamente os detalhes da desocupação, com vaias para o valor do auxílio-aluguel de R$ 400 | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    “Faz mais de quatro anos que perdi meu emprego, vivo de um bico aqui, outro ali. Divido dois cômodos e um banheiro improvisado com mais duas mulheres, é uma situação difícil. Assusta morar em um lugar desses e essa retirada nossa incomoda, ainda mais por ter tanta criança”, diz Marle Oliveira, desempregada de 40 anos, mas que trabalhava como professora de inglês.

    Aonde você anda, as dúvidas brotam. “Você sabe se minha casa está na lista? Não sei se saio ou se fico. Moro em cima do córrego, área que está afundando com a força das águas e do lixo que acumula. Tenho medo da chuva derrubar meu barraco comigo e minhas duas filhas dentro”, conta Leonora Pereira, de 49 anos.

    A mulher é mãe de duas filhas, uma de 28 e outras de 14. A mais velha sofreu um acidente no trabalho e tem limitações que a impede de fazer funções de grande esforço. A menor entrou no 1º ano do ensino médio. É a mãe quem as sustenta, mesmo sem trabalho fixo. Era faxineira, mas faz o que aparecer pela frente que renda o dinheiro necessário para o mês. “O governo não considera como gente uma pessoa que não tenha carteira assinada”, lamenta.

    Casas de madeira e alvenaria se amontoam ao lado e sobre o córrego | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Os relatos passam da falta de suporte do poder público para abusos cometidos pelo braço armado. Um morador, que pediu anonimato com medo de represálias, diz ter abandonado a Favela do Sapo depois que a polícia invadiu o seu barraco e revirou as coisas.

    “Estava tudo quebrado, as panelas e roupas no chão, as coisas revidas, fogão e geladeira quebrados… Sorte que eu nem meus dois filhos estávamos em casa. Os vizinhos contaram que os PMs entraram arrombando a porta, todo mundo viu”, conta o homem, que agora aluga uma casa.

    “A mulher disse lá no campo que a gente foi convidado a se retirar, mas eu não fui, me tiraram daqui na base do medo. E eu fui embora com meus filhos de 7 e 13 anos. Estou pagando um aluguel em outro bairro, vai quase todo o meu salário. Como é longe, ainda terei que pagar uma van para levar e buscar eles da escola”, continua.

    Morador filma a fala de uma das representantes da secretaria municipal de habitação | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

    Este não foi o único relato de ação policial nas comunidades. Vídeos e imagens obtidos pela Ponte mostram viaturas da PM, GCM (Guarda Civil Metropolitana) e até da Polícia Rodoviária nas ruas das favelas ao longo da semana que antecedeu o dia 21 de dezembro, uma sexta-feira. “Eles fizeram para intimidar, sempre vêm aqui com essa intenção. Não é novidade”, explica uma moradora, pedindo anonimato.

    Espaços são divididos por corredores estreitos | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

     

    Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo
    Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

     

    Reunião da Sehab contou com suporte da Polícia Militar paulista | Foto: Arthur Stabile/Ponte Jornalismo

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